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A boa medida das coisas

Um novo olhar para o que possuímos, com mais reconhecimento e gratidão a tudo, a começar pela própria vida. É o que ensina o mottainai, a filosofia japonesa do não desperdício

A boa medida das coisas – Danilo Pimentel e Paola Viveiros
Você já se perguntou alguma vez por que procrastinou tanto a realização de uma tarefa e por que, quando o prazo para concluí-la estava chegando ao final, deu um jeito de, em poucas horas, concretizar aquilo que não tinha executado em dias? Para o mottainai, filosofia japonesa que preconiza o não desperdício, a resposta é uma noção invertida de valores: enquanto sentimos que temos um recurso sobrando, não damos o devido valor a ele e gastamos em demasia. Mas é só esse recurso começar a rarear que somos impelidos a utilizar o que resta dele – seja minuto, hora, conteúdo – muito bem.
“Mottai”, em japonês, significa digno. É um termo que tem origem no budismo e se refere ao sagrado em tudo que existe, à essência das coisas. “Nai” é negação. “Mottai”, digno, “nai”, negação. Portanto, ao não usarmos bem alguma coisa, não somos dignos dela. Em tradução livre, seria o mesmo que dizer: “que desperdício!”. O Japão desenvolveu esse conceito ao longo de sua história e a duras penas. Por ter um território fragmentado em ilhas, de relevo montanhoso e habitado em maior concentração nas planícies litorâneas, foi obrigado a conviver com a escassez de espaço e de recursos e a população teve que aprender a usar seus atributos da melhor forma possível, principalmente o uso da terra para o plantio, o uso da água e do espaço físico. Mas a filosofia do não desperdício vai muito além. Gastar energia alimentando ressentimentos, culpa ou outros sentimentos negativos, por exemplo, é mottainai por drenar um esforço que poderia estar sendo mais bem empregado em outra atividade. Manter o mesmo padrão de pensamento sem partir para a ação é mottainai por não dar frutos.
A empresária Raquel Rodrigues, de São Paulo, pode constatar que há muitos outros exemplos em praticamente tudo que nos cerca. Ela conheceu a filosofia no início de 2012 ao participar de um grupo de empresários que se reúnem para estimular negócios. “Fiquei curiosa com o termo e resolvi conhecer melhor”, conta. Participou de uma apresentação na qual aprendeu a identificar os desperdícios de recursos tangíveis e intangíveis nos âmbitos pessoal e profissional. “Posso dizer que os desperdícios
pessoais me marcaram muito, principalmente os intangíveis. Percebi que eu me desgastava investindo energia em tarefas que não estavam ligadas diretamente ao meu objetivo. Aprendi a priorizar o que deve ser feito para planejar o esforço necessário, e faço isso até hoje.”
De uma maneira prática, Raquel explica que sua carreira tomou um impulso quando ela decidiu aplicar três comportamentos guiados pelo mottainai. Um deles foi o de compreender a necessidade de estar inserida em um ambiente confiável. “Quando não confiamos em algo ou alguém há mais desgaste, até emocional, para solucionar o
que precisamos. Em ambientes confiáveis as soluções ocorrem de forma mais rápida e tranquila.” O segundo ponto foi usar momentos de escassez para despertar a criatividade e a inovação. E há ainda o que ela chama de ficar de “olho no vazio”. “Os vazios são espaços que podemos preencher com nosso conhecimento e experiência. Como gestor, você pode perceber quando alguém está indeciso, inseguro, e intervir. A intervenção ajuda no bem-estar coletivo, e é daí que surgem grandes ideias.”
De geração em geração
Para Tiemi Yamashita, descendente de imigrantes japoneses, nascida em São Paulo, o mottainai faz parte da sua história. Ela foi criada escutando os avós dizerem
“mottainai” quando deixava comida no prato. Naquela fase da vida, a repetição soava apenas como uma obrigação de comer tudo e não esbanjar. Anos depois, já em idade adulta, quando embarcou para o Japão para, como tantos outros decasséguis, trabalhar e juntar dinheiro, ela se viu diante daquelas palavras de outro jeito.
O terremoto que chacoalhou a cidade de Kobe em 1995 contribuiu para isso. “Fui para lá com a ideia de juntar dinheiro e ficar rica. Perdi tudo e descobri que a maior riqueza é a vida”, conta ela. A vivência trouxe consigo uma avalanche de reflexões. Tiemi percebeu que ao pensar única e exclusivamente em ganhar dinheiro, longe da família, fazendo algo de que não gostava, não estava sendo digna da vida que possuía. E a magnitude da palavra “mottainai” ganhou toda a extensão. “Senti que tinha que voltar ao Brasil e me dedicar para disseminar essa filosofia às pessoas. Queria dizer a todos que não desperdiçassem o que têm. Não queria que precisassem passar
pelo que eu passei para aprender o valor das coisas”, relembra a hoje estrategista social, como define o seu jeito de trabalhar, uma vez que cria soluções simples para as pessoas viverem com mais plenitude.
Tiemi cursou comunicação social para traduzir o mottainai para o público. E foi trabalhar no terceiro setor ao mesmo tempo em que realizava o sonho de ser mãe. Em casa, aliás, ela começou a transmitir o que sabia para as duas filhas. Mudou-se para uma casa menor, vendeu o carro e passou a valorizar as possibilidades de viver com menos apego material e mais liberdade. O dinheiro economizado com a manutenção de um veículo ou de uma casa maior passou a ser investido para ampliar seu conhecimento. Desde então já se vão 20 anos.
A lógica da gratidão
Para quem aplica mottainai no dia a dia, pensar na gratidão e no respeito a tudo que lhe pertence é algo que faz parte da rotina, como escovar os dentes. É por isso que deixar sapatos sem uso no armário representa um contrassenso. Da morte do animal que deu o couro ao tempo gasto de mão de obra e o impacto ambiental do transporte
até chegar à loja, houve esforço, dedicação, energia gasta. Deixar o par encostado, portanto, seria um desrespeito a todo esse ciclo. No mesmo raciocínio, tudo o que possuímos tem uma história que tem que ser reconhecida e valorizada. Roupas, sapatos, carros, tempo, saúde, tudo. Se há acúmulo e mau uso é porque não estamos reconhecendo essa cadeia precedente ou, no caso de bens abstratos, estamos simplesmente jogando fora. Inclusive, ao pensarmos com um pouco mais de profundidade
na gratidão expressa pelo viver mottainai, somos levados a enxergá-la como parte dos princípios fundamentais do budismo – tudo tem seu valor simplesmente pelo fato de existir; do cristianismo – ser grato à providência divina; e do xintoísmo – que vê Deus em tudo que há e, assim, devemos ser gratos à natureza, aos alimentos, às pessoas que nos cercam. A vida se transforma em um agradecer infinito.

Viver hoje contribuindo para o amanhã
Não é preciso fazer parte de uma família oriental para compreender como é valiosa uma lição como essa e o quanto é simples incorporá-la ao nosso dia a dia. Hoje há um movimento mottainai no mundo todo movido pela necessidade de não desperdício urgente por conta da sustentabilidade do planeta. A loso a já serviu também
como inspiração a um Nobel da Paz entregue em 2004 para a ambientalista Wangari Maathai, a primeira africana a ganhar o prêmio. Ela traduziu o conceito para a aplicação dos três “erres” da sustentabilidade: reduzir, reutilizar e reciclar. São denominações diferentes, dos três “erres” e do mottainai, para chegar ao mesmo uso racional de recursos.
Ao conhecer o estilo japonês, Nicole Fischer, empreendedora de São Paulo, também fez essa ligação com a sustentabilidade. “Passei a reparar em cada hábito meu no dia a dia, o xampu que era gasto à toa devido à abundância de um frasco cheio e, depois, quando já estava quase acabando, usado com moderação, provando que é possível, sim, usar menos”, conta. “Da mesma forma, tenho usado menos plástico, menos papel, apago as luzes com mais frequência. Estou construindo uma casa
que aproveitará não só a água da chuva como terá um sistema de tratamento de esgoto, no qual toda a água que vai para o ralo será reutilizada, nas descargas dos vasos sanitários e nos jardins, garantindo aproveitamento não apenas nos meses chuvosos.”
A prática da filosofia considera a valorização das coisas para além do aspecto monetário. Para uma roupa existir é preciso, por exemplo, que alguém plante o algodão,
alguém desenhe o modelo, costure. Já uma árvore têm um enorme valor intrínseco (pela simples razão de existir). Todos esses fatores se somam na estratégia de compreender a importância das coisas para evitar o desperdício delas. Para Tiemi, o momento atual de crise financeira pelo qual o país está passando é bastante auspicioso à aplicação do ensinamento que sua avó já trazia. “Quanta experiência tenho e não estou fazendo nada com ela? A grande sacada é olhar nosso recurso
intangível (o que sabemos profissionalmente, por exemplo). Muitas vezes estamos desperdiçando tempo e energia insistindo na mesma tecla: querendo um emprego que pague mais, que seja assim ou assado etc. Esquecemos que dá para usar essa sabedoria de outras formas. O que poderia gerar renda.”
Rompendo travas
Mottainai serve para nos fazer repensar recursos que temos (e não lembramos) e para redescobrir talentos. Primeiro porque ajuda a detectar o que está escorrendo por entre os dedos e lhe dar o devido valor. Em segundo lugar, porque estabelece o que é o mínimo necessário e o máximo suficiente para viver. E encontrar essa medida muda nossa relação com o dinheiro, liberta. Definir metas para consumo da pasta de dente, por exemplo, é uma forma de trazer o conceito para a prática. Vamos dizer que a pasta de dente precisa durar um mês. Toda a família deve estar consciente que antes de findar o período não será comprada uma nova.
Outro exemplo de postura positiva: ao invés de olharmos para o dinheiro e pensarmos: “Só tenho isso para usar”, o mottainai ensina a mudar a perspectiva e encarar com grata sabedoria o que há disponível. “Agradeço por ter esse dinheiro e com ele farei o melhor que puder”, é a proposta. O bonito ensinamento permeia tudo, é ilimitado, não tem contraindicação. Quanto mais praticado, mais soluções faz desabrochar. Melhor ainda: com o tempo de prática essa atitude tende a se tornar
um hábito. “Se cada um for digno de seus recursos, prosperaremos, seremos ricos de uma forma plena”, espera Tiemi.

Desperdício X Escassez

Uma coisa é evitar o desperdício e outra é viver na escassez, diferencia o terapeuta francês Luc Michael Bouveret, radicado em São Paulo. Segundo ele, “muito da escassez em que vivemos vem do medo inconsciente das pessoas de não merecerem ser prósperas. Uma vez que entendemos como funciona a prosperidade, ou seja, uma vez que superamos nossos medos e começamos a acreditar de verdade que merecemos a abundância, nós começamos a crescer na vida. Nesse momento passamos a dar valor a tudo, até ao mais insignificante grão de arroz, deixamos de consumir por consumir, e optamos por um consumo útil e necessário, alinhado a quem somos realmente, ao que buscamos, aos nossos propósitos”. O movimento – quando não está focado apenas no dinheiro – traz abundância. “A prosperidade não pode chegar se não assumimos riscos: de superar o medo de nos relacionarmos com as pessoas, de investir um pouco de dinheiro acreditando no projeto, de trabalhar sem receber por um tempo. É preciso superá-los e fazer tudo com muito amor.”

O verdadeiro espírito mottainai

Além de fechar a torneira para economizar água, de comprar apenas a quantidade de alimentos suficiente para o consumo da semana, há outras atitudes que elevam o aproveitamento de recursos e conservam energia:
Economize tempo: muitas vezes, quando estamos com a agenda repleta de obrigações é que mais nos perdemos. Foque no presente, planeje o que é prioridade, certamente esse recurso estará sendo bem utilizado.
Cuide realmente da saúde: ter um plano de saúde não significa que estamos realmente cuidando bem dela. É preciso, antes de mais nada, alimentar-se corretamente – sem excesso de gordura, calorias e açúcares e com maior aporte de verduras e frutas –, além de fazer exercícios físicos e ter espaço para o descanso. Um check-up pedido por um médico consciente também é recomendado.
Salve a energia pessoal: se for para concentrar nossa energia, que seja em sentimentos positivos. Não adianta martelar questões sem solução ou guardar mágoas
sem fim. E ao acessarmos as mídias sociais, cuidado: “Notícia ruim em excesso esvazia a energia pessoal. Ela vai fluir por onde nossa mente andar. Portanto,
atenção ao que tem olhado por aí”, aconselha Tiemi.
Poupe dinheiro: o uso do transporte público é algo bem mottainai porque contribui para reduzir a poluição, gera a economia de não ter que arcar com os custos de
um carro próprio e ainda permite que se façam amizades ao usar aplicativos de carona solidária, por exemplo. Outra atitude bacana é trocar livro com amigos,
porque é uma diversão gratuita que ajuda a enriquecer o vocabulário e a exercitar o cérebro – a custo zero.

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