Publicidade

O perdão traz uma leveza, limpa o coração e restabelece o fluxo do amor

Relevar ofensas é tarefa trabalhosa para a maioria de nós. Anos de dedicação interior podem ser necessários para que um ressentimento se dissipe, mas vale insistir

Mágoas que vão embora – ESTÚDIO ORNITORRINCO

Na tentativa de elucidar seus discípulos sobre a
natureza do perdão, um mestre taoísta propôs o seguinte experimento: pediu que
os homens gravassem em batatas os nomes daqueles que eles tinham sido incapazes
de perdoar. Em seguida, deveriam depositar os tubérculos num saco a ser
carregado por uma semana. Em pouco tempo, a carga começou a pesar e a
apodrecer, liberando desagradável odor. Convencidos do ônus de tal experiência,
os discípulos compreenderam que era melhor perdoar a carregar sentimentos
corrosivos dentro de si. Então, o mestre perguntou: “Se a mágoa são as batatas,
o que é o saco?”. E ouviu como resposta: “Aquilo que nos permite acondicionar a
negatividade. Ou seja, o nosso senso de autoimportância”. Para o tão, a
resistência interior desaparece quando conseguimos nos libertar da vaidade do
ego. Aí a raiva e o ressentimento não encontram guarida. Passam batido, já que
não há um “eu” cheio de si para se sentir agredido ou prejudicado, seja qual
for a circunstância.

Publicidade

O mais nobre gesto de todos requer, sem dúvida,
grandeza de espírito. Sobretudo em situações de extrema dramaticidade e
injustiça. Não é de estranhar que a maioria dos mortais tenha grande
dificuldade de relevar as falhas alheias. Afinal, como não se sentir lesado,
ofendido, magoado em face dos mais variados golpes cotidianos que nos acertam?

Embora tingido com fortes emoções, esse quadro pode ser
visto de um ângulo mais pragmático. Perdoar é, antes de tudo, questão de
inteligência, como rapidamente notaram os discípulos da fábula taoísta. Diversos
estudos enumeram os benefícios sociais, espirituais, psicoló gicos e até  fisiológicos de se desculpar o passado. Um deles,
encabeçado pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, reuniu cerca de
200 voluntários. Metade foi instruída a rememorar uma ofensa; a outra,
encorajada a perdoar o acontecimento. O balanço final mostrou que pessoas menos
rancorosas apresentam menor oscilação na pressão arterial. Ou seja, corações
compassivos funcionam melhor e ainda protegem o indivíduo dos males físicos e
emocionais causados pela raiva, entre eles insônia, depressão, enxaqueca,
úlcera, ansiedade, dores nas costas e câncer.

Podemos associar a descoberta científica à longevidade
do líder sul-africano Nelson Mandela. Certa vez, o ex-presidente
norte-americano Bill Clinton o questionou: “Em 27 anos de prisão, o senhor deve
ter sentido muita raiva dos responsáveis por seu cárcere”. O estadista
respondeu, sorrindo: “Sim, mas toda vez que esse sentimento tomava conta de mim
eu compreendia que, se continuasse odiando, eles me teriam como prisioneiro
para sempre. Preferi ser um homem livre. Por isso, deixei a raiva ir embora”.

Perdoar é libertar o outro e a si mesmo. Escolher
destrancar a porta do cárcere emocional e encontrar a paz de espírito do lado
de fora. Tarefa, aliás, que só cabe a nós e a mais ninguém. Aquela velha
recomendação cunhada pelo filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre:
não importa o que fizeram a você, importa o que você faz com o que fizeram a
você.

Publicidade

Lavando a alma
A absolvição do mal contra nós perpetrado corresponde a uma purificação.
Elimina-se o veneno que nos intoxica por dentro – contaminando o entorno e as
relações – em favor de uma existência mais leve, cristalina e autônoma, já que
abandonamos o papel de vítima e seguimos abastecidos com a altivez de quem arca
com as próprias escolhas. Mas, por mais que queiramos experimentar essa
alforria, não adianta acelerar o processo, muito menos deixar nas mãos do tempo
– curandeiro que para muitos dá jeito em qualquer coisa. A caminhada requer
dedicação ao espírito e ao autoconhecimento. E boas doses de desprendimento. “O
perdão não vem do esforço, e sim da compreensão do jogo do ego. Somente o
verdadeiro eu pode perdoar. Quando se vive pelo amor, o ego não entra. Nesse
momento, se abre a dimensão do perdão”, afirma Ian Mecler, estudioso da cabala,
do Rio de Janeiro, e autor de Aqui, Agora (ed. Record), entre outros títulos.
Ele também lembra que o ressentimento é uma espécie de autoflagelo que nos faz sofrer
no presente, mas que concretamente não existe mais. Trata-se de uma armadilha
da mente, que nos obriga a reviver os episódios doloridos do passado como se
estivessem acontecendo agora.

O entendimento do cabalista se afina à compreensão do
líder humanitário e mestre espiritual Sri Prem Baba, criador do Caminho do
Coração, método de autoconhecimento focado no descondicionamento da mente e na
manifestação de nossos dons e talentos em prol de um mundo melhor. Segundo ele,
são os jogos de acusação e os pactos de vingança que obstruem nossa capacidade
infinita de amar e perdoar. Acuados pela dor de nos sentirmos desconectados de
nossa essência divina, dizemos aos outros, ainda que de forma inconsciente:
“Você é o culpado pela minha infelicidade; eu quero que você sofra”. E assim seguimos
demolindo pontes em vez de construí-las. Mas esse círculo vicioso pode ser
interrompido, segundo o mestre. Espinhos sempre existirão, ele frisa. Cabe a
nós ampliarmos a consciência para livremente optarmos por não nos espetarmos
neles.

Publicidade

“Quando compreendermos suficientemente nossa história a
ponto de podermos olhar para os olhos de nossa mãe, de nosso pai, irmãos, e de
todos que de alguma maneira participaram de nossa educação, e dizermos de
verdade: ‘Muito obrigado; agradeço por absolutamente tudo’ – isso é sinal que
você perdoou e está livre das marcas e espinhos do passado. Isso é liberdade”,
ensina Prem Baba.

Compreender que muitas vezes somos vítimas de vítimas,
seres apartados de sua própria humanidade, ajuda a arrefecer a ira e o
inconformismo. Vamos aos poucos deixando que o amor ágape (doação, entrega de
si mesmo) se infiltre e se espalhe dentro de nós. É por isso que, na agonia da
cruz, Jesus rogou a Deus: “Pai, perdoa-lhes. Eles não sabem o que fazem!”. “Ele
mostra que não é pela vingança que se consegue a paz, e sim pelo amor. São
Francisco de Assis, ao dizer ‘é perdoando que se é perdoado’ em sua tão
conhecida oração, faz eco a essas palavras”, aponta Milton Paulo de Lacerda,
psicólogo clínico com formação em filosofia e teologia, autor de A Virtude do Perdão
(ed. Vozes). Sob tal perspectiva, perdoar é um presente de irmão para irmão. “É
o amor que releva, que reabilita o outro em sua dignidade, que o recoloca no
mesmo nível de comunicação para que possa continuar a fluir entre todos a corrente
divina que lhes deu origem”, entende Lacerda.

Publicidade

Somos todos falíveis
O arcebispo Desmond M. Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984, bem poderia ter se
vingado dos algozes que infligiram sofrimento a ele e a milhões de vítimas do
apartheid na África do Sul, mas escolheu uma premissa mais equânime do tipo
“somos todos falíveis”. “Cada um de nós já viveu tanto situações em que
precisou perdoar como situações em que precisou ser perdoado. E viverá muitas
outras”, ele sublinha na obra O Livro do Perdão – Para Curarmos a Nós Mesmos e
o Nosso Mundo (ed. Valentina), escrito em parceria com sua filha, a reverenda
Mpho A.
Tutu. Apoiado na própria experiência, o religioso afirma com notável
convicção: “Não há  nada que não  possa ser perdoado nem ninguém  que não mereça ser perdoado. Quando você  compreende que estamos todos unidos uns aos
outros – por nascimento, circunstância ou simplesmente por nossa humanidade
comum –, sabe que isso é  verdade”,
dispara.

A fim de estimular outros a alcançarem a mesma bênção,
a dupla apresenta o Quádruplo Caminho do Perdão , fundamentado nas seguintes
etapas: contar a história – juntar as peças do ocorrido é o primeiro passo para
decifrar nossas experiências e conferir sentido ao vivido; dar vazão à  mágoa – somente quando liberamos a dor
começamos a superá-la; conceder o perdão 
– é o momento em que abandonamos o papel de vítima e passamos a
determinar o nosso futuro; e renovar ou abrir mão do relacionamento na busca
por cura e transformação – restaurar um elo é um ato criativo. Aposta-se na
reinvenção do laço. No entanto, às vezes, a única coisa a ser feita é abrir mão
do vínculo. Segundo Tutu, uma importante questão a ser feita durante esse
processo é: “Sob o mesmo conjunto de circunstâncias, eu seria capaz de…?”.

O exercício do perdão não se presta somente às causas
magnânimas. Pelo contrário. Vale para os eventos mais corriqueiros: a fechada
no trânsito, a preferência do chefe por outro funcionário, a afronta do filho,
as decepções da vida conjugal – aliança que requer sucessivas absolvições para
que possa atravessar os anos com genuíno respeito e bem-querer mútuo. Em todos
os casos, nos vemos diante da mesmíssima bifurcação: perdoar ou nos ressentir?
Tutu nos aconselha a abraçar sempre a primeira alternativa. “O perdão é o modo
como impedimos nossa comunidade humana de se desintegrar”, garante.

Publicidade

Eu me perdoo e agradeço
Tão difícil quanto perdoar alguém é perdoar a si mesmo. Muitos se deixam
corroer em segredo pela culpa sedimentada por anos a fio. Martirizam-se e
condenam-se pela imprudência, pela ingenuidade, pela prepotência. Sofrem de
culpa contra si mesmo.

Voltar-se para dentro de si, mas de um jeito incomum,
faz parte das práticas preconizadas pelo ho’oponopono (ho’o = causa, ponopono =
perfeição – significa arrumar o que está desarrumado), processo de resolução de
problemas criado no Havaí e disseminado na segunda metade do século passado
pela sacerdotisa Morrnah Nalamaku Simeona. O sistema propõe, entre várias
ferramentas de cura, a mentalização das frases-chave: “Eu sinto muito. Me
perdoe. Eu te amo. Eu sou grato”. Dessa forma, o praticante é capaz de apagar
memórias armazenadas no subconsciente que, por sua carga emocional, atrapalham
o fluxo da vida. Esses “arquivos” podem estar ligados a acontecimentos da
existência atual ou a episódios de vidas pregressas. Não sabemos. “O importante
é agradecer as situações e as pessoas que nos contrariam de alguma forma, pois
elas estão nos dando a oportunidade de apagar uma memória que estava
atravancando nosso desenvolvimento espiritual”, explica o engenheiro Paulo
Cesar Namura
, representante brasileiro autorizado pela IZI (entidade criadora
do ho’oponopono, com base nos Estados Unidos). Nesse sentido, tudo o que nos
acontece é para o bem. Porque nós precisávamos daquela chance de interromper a
repetição de determinado padrão de funcionamento psíquico. De acordo com o
método, o perdão se converte em gratidão pelas pessoas e situações que, apesar
de nos abalarem, nos alçam a um lugar melhor. Onde o coração é mais cristalino.

Superando a dor maior

Em 2009, o filho caçula de Daisy Laurino, empresária de Indaiatuba, interior de
São Paulo, foi assassinado. A história a seguir conta como Daisy conseguiu
limpar o coração e recuperar o fluxo do amor.

“Rafael foi morto por um assaltante que invadiu nossa
padaria – posteriormente soube que ele precisava do dinheiro para pagar o
aluguel. Infelizmente, meu filho reagiu e levou um tiro à queima roupa. Era um
jovem de 25 anos. Meu companheiro e confidente. Um mês depois da tragédia, a
manicure que me atendia comentou que a mãe dela ajudava a família do criminoso
fornecendo alimentos. Fiquei tocada com a situação da mulher dele e de seus
filhos pequenos e passei a ajudá-los incrementando a cesta básica, mas em
segredo. Também conseguimos emprego para ela e creche para as crianças. O
assassino segue preso. Certo dia, uma desconhecida me procurou e me entregou
uma carta psicografada. Nela meu filho dizia que estava bem, que havia tido uma
atitude impensada e me pedia para perdoar o assassino, portador de uma alma
mais necessitada. Rafael estava certo de que esse gesto iria aliviar meu
sofrimento. Foi o que aconteceu. Descobri que a mágoa, tenha ela a origem que
tiver, só atrapalha o crescimento espiritual e material. E, se você começa a
perdoar quem o feriu, passa a enxergar situações em que magoou outras pessoas.
É como se livrar de uma pesada bagagem. Por isso, se você tem o coração
trancado por uma mágoa, troque-a por amor, por sentimentos de ternura e de
perdão. Você verá como a vida fluirá.”

Perdoar o outro e, especialmente, perdoar a si mesmo de
culpas sedimentadas por anos a fi o tira um peso das nossas costas. Mas, acima
de tudo, nos faz mais livres.