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Imensidão azul

Oceanógrafo, engenheiro costeiro e professor, David Zee ajuda universitários, empresários e governos a compreender o potencial da vida marinha. Na esperança de que, assim, ligados pelo afeto ao mar, todos possam respeitá-lo

David Zee – Cadu Pilotto
Jacques Cousteau, o cientista francês que ficou conhecido por mostrar as riquezas do fundo do mar em um programa de TV, dizia que só protegemos aquilo que amamos e só amamos aquilo que conhecemos. Daí o esforço de suas expedições para diminuir uma defasagem que continua gigantesca – apenas um terço da vida marinha é conhecida – e aumentar o encantamento que se reflete em proteção. Cousteau foi admirado por muita gente. Como o oceanógrafo e engenheiro costeiro David Zee, há 36 anos professor da Uerj e incansável na defesa da imensidão azul. “Muita gente diz que ama a natureza. Pois bem: o que você faz pelo seu amor?”, provoca. Nascido em Hong Kong, veio com a família para Porto Alegre aos 3 anos. Mudou para Curitiba, São Paulo e finalmente Rio. Fez mestrado na Universidade da Flórida, em engenharia costeira e oceanográfica, em seguida trabalhou simultaneamente na área de inovação da Bacia de Campos, lecionando à noite. “Minha intenção sempre foi fazer a ponte entre a ciência e a sociedade.” Cálculos, meio ambiente e um doutorado em geografia enriquecem sua visão de mundo e fazem de Zee um mestre entusiasta das coisas do mar. Do Museu do Amanhã, pousado na sofrida Baía de Guanabara, no Rio, ele nos deu a seguinte entrevista. De olho no futuro, sim, mas atenta às providências que precisam ser tomadas já.
O sr. concorda com a visão do oceanógrafo Jacques Cousteau de que só protegemos o que amamos e só amamos o que conhecemos?
Sim. O mar é maltratado porque não é conhecido. A imagem que temos dele é meio utópica, romântica. Nunca se olhou para o mar como um lugar que o homem também poderá ocupar no futuro. Mas tem que ocupar de uma maneira correta. Hoje em dia, pela falta de conhecimento da hidrosfera, as pessoas usam mal os recursos hídricos. A primeira coisa que se faz é lançar aquilo que não presta nas águas, como se fossem um grande lixão, um lugar de descarte. Não que o espalhamento de matéria orgânica, de resíduos, não seja um serviço que a natureza preste – ela ajuda, sim. Mas tem que lançar esses desejos de uma maneira palatável, na proporção exata da assimilação do mar. Como não conhecemos a medida dessa capacidade de assimilação, vamos apenas jogando tudo lá. Uma coisa é fazer isso no século XVIII, XIX, quando éramos 1 bilhão de habitantes. Hoje somos 7 bilhões.
Esse equilíbrio se tornou impossível de acontecer sozinho?
O homem vivia em tribos, era extrativista e, quando a caça começava a ficar difícil e frutas e vegetais escasseavam, ia para outro lado. Migrava. E o local anterior se recuperava. Então tínhamos recursos eternos. Só que hoje temos tamanha população sobre a Terra que essa recuperação não se dá mais. Diria que é uma questão ética. A nossa ética é humana, ou seja, pensamos mais numa relação do homem para o homem. Temos que elevar essa ética a um patamar ecocêntrico, ou seja, não apenas a relação do homem com o homem é que importa, mas do homem com a natureza. Por que se permite a redução dos golfinhos da Baía de Guanabara e das baleias, seres
que habitam aqui muito antes de nós?
É uma visão antropocêntrica ainda, de que o homem é mais importante…
Não podemos mais ter essa visão. Até por uma questão de sobrevivência. Na hora que estiver só o homem no planeta, nós vamos nos alimentar de quais fontes naturais? O grande segredo da sustentabilidade é tornar os recursos eternos, ou seja, você consome água e a natureza tem condições de produzir água limpa novamente para você
poder consumir de novo. Esse é o grande critério. É muito emblemático. E isso a gente observa muito bem ao longo das três conferências do meio ambiente. Em 1972, 92 e 2012.
Pode explicar melhor?
Em 1972, a primeira grande conferência mundial do meio ambiente, em Estocolmo, tinha o objetivo de conscientizar a sociedade a melhorar a relação com o meio
ambiente e assim atender as necessidades da população sem comprometer as gerações futuras. Na Eco-92, no Rio de Janeiro, a grande mensagem foi que o homem
também é importante. Em 2012, na Rio+20, chegou-se à conclusão de que é preciso dar viabilidade econômica. Ou seja, todo o desenvolvimento humano tem que
acompanhar a proteção ao meio ambiente – para que continue tendo recursos naturais, dando proteção ao homem, e não acabe.

Hoje as tecnologias mais caras focam esse objetivo. É necessário criar produtos mais duráveis e dar o rumo certo para o seu descarte.
Porque o planeta Terra continua com o mesmo diâmetro e a mesma disponibilidade de recursos naturais. Precisamos levar isso em conta e perceber de uma vez por todas que a nossa pegada de carbono não se sustenta. A pilha não está funcionando, a cápsula de café não está funcionando. Quem está por trás desses bens de consumo tem que ter a preocupação do berço ao berço, isto é, com todo o caminho de produção da matéria-prima até a sua reciclagem. Mas, veja, não são apenas os empresários que precisam se atualizar. A crítica que eu faço à sociedade é “me aponte um poluidor que eu te mostro dez patrocinadores”. É difícil mas necessário escolher melhor de
quem vamos comprar. E a população está crescendo muito. Quanto mais cresce a base, maior a pobreza. Como vou dizer para um retirante faminto que está com a família morrendo que não mate o último mico-leão-dourado? Não dá. Nós não podemos é deixar chegar nisso. Na nossa bandeira está escrito ordem e progresso. Nós pensamos primeiro no progresso. Só que precisamos fazer a ordem e, então, conhecer o progresso. Isso nos remete de volta aos oceanos.
Precisamos conhecê-los para, então, cuidar deles…
Sabe qual é o mérito do Jacques Cousteau? Ele trouxe o oceano para dentro da sala de estar. Ele defendeu o meio ambiente e deu viabilidade econômica a isso, porque com o patrocínio e o sucesso de seu programa conseguia fazer explorações curiosas e estudou o mar. Criou o Aqualung, equipamento de mergulho que substituiu os pesados escafrandos. Aí com isso começou a dizer para o homem como entrar no mar com segurança – tanto para ele mesmo quanto para o meio.
E como o Brasil tem se comportado?
Hoje o Brasil já tem domínio sobre 200 milhas náuticas ao redor do território, é uma zona econômica exclusiva nossa. Lá podemos explorar petróleo, retirar recursos naturais de pesca, minério, sal, algas calcárias, uma série de benefícios. Tudo isso é benefício. Muito bem, e quais são as responsabilidades? A ONU diz que cada país que quiser ter o direito sobre a exploração do mar também tem que ter responsabilidade sobre isso. Capacidade de proteger as águas e dar segurança a quem navega por elas (sem isso, acontece um naufrágio e você não salva ninguém). Para tudo isso tem que haver infraestrutura, investimento. Estou indo pra Brasília justamente falar da Amazônia Azul (essa área litorânea pertencente ao Brasil que é quase tão grande quanto a Amazônia, daí o nome). Eles estão maravilhados com os benefícios. Quero chamar a atenção para os compromissos. Até porque, enquanto for apenas extrativismo, sem conhecimento, não há viabilidade econômica.
O sr. costuma dizer que o fundo do mar é uma verdadeira cidade. Pode detalhar essa comparação?
Muito do que eu pesquiso sobre o mar não encontro a solução. Um dia caiu a minha ficha: a natureza demorou milhares de milhões de anos para se equilibrar. Eu não vou nos meus poucos anos de vida adquirir experiência parecida. Para ser inteligente, tenho que imitá-la. Então comecei a analisar como funciona um recife de corais. Um recife de corais é uma verdadeira cidade submarina. Existem vários personagens, vários segmentos sociais – moluscos, crustáceos, peixes –, todos convivendo
harmonicamente. Um trabalhando para o outro da colônia crescer. Uma das coisas que a gente percebe é que os corais se proliferam com mais vigor em locais onde as correntezas são mais fortes – elas trazem alimentos, água pura, recursos saudáveis. Lá dentro, ele consome o que precisa e excreta o restante. Ao excretar, a própria correnteza leva embora e espalha. Novamente vem a questão do infinito. Eu digo para os meus alunos: “Tenho um segmento de linha, como torno-a infinita? Unindo as pontas”. Temos que transformar os recursos naturais num contínuo.
É verdade que o mar produz metade do oxigênio que nós respiramos?
Não sabemos a quantidade exata, mas vários estudos sugerem que a maior parte do oxigênio não vem das florestas, e sim do mar. E um detalhe importante: a capacidade de produção de oxigênio depende da fotossíntese do fitoplâncton (vegetais marinhos, principalmente as algas minúsculas). Essa luz penetra numa faixa que vai
de 50 a 200 metros de profundidade. Abaixo disso é escuridão. Portanto, as algas e microalgas só processam a fotossíntese na camada superficial. Na hora que a gente estiver poluindo os oceanos, estaremos comprometendo a transparência dessa camada. Menos transparência, menos fotossíntese, menos oxigênio.
Esse é um dos efeitos colaterais dos derramamentos de petróleo…
Hoje em dia, o lançamento de gás carbônico na atmosfera é muito intenso. Na superfície do mar, quando esse gás carbônico chega, se combina com a água formando o ácido carbônico. Esse ácido corrói o cálcio, que é o principal composto das carapaças dos organismos marinhos, deixando-os mais vulneráveis. Soma-se a isso o aquecimento global que fez a temperatura das águas subir 0,85 grau. Com esse calor, as algas que habitam os corais começam a morrer e o que fica do coral é só o esqueleto. Por isso, os corais vão branqueando, ficando frágeis, morrendo. Não sabemos a real extensão das consequências disso…
Nem para o mar nem para nós mesmos…
Para as pessoas entenderem para onde estamos indo com isso vou usar uma metáfora: imagine uma rã dentro de um bule de água fria. Coloque o bule no fogo. Ela fica lá nadando tranquila enquanto a água vai esquentando. Chega um determinado momento, morre cozida. É bem diferente de jogar uma rã numa panela com água fervendo. Ela imediatamente reage e pula. Nós estamos como no primeiro exemplo, fazendo lentamente o nosso cozimento. E as pessoas não estão se dando conta.
O sr. defende que os oceanos são a próxima fronteira.
71% do planeta é coberto por água, 30% é de terra. Nós estamos nos 30%, e a população continua crescendo. Para onde vamos? Vamos primeiro pra Marte, Saturno? Ou para a fronteira mais próxima que é o mar? 
E temos conhecimento suficiente para isso?
Vou falar das deficiências de informação que temos no mar. A gente conhece só um terço dos organismos marinhos. Por que pesquisar mais? Porque eventualmente em algum organismo marinho está uma substância, veneno, princípio ativo que pode ser a cura pra determinada doença. Além disso, é importante estudar todos esses organismos para saber como eles se relacionam entre si. Se a gente quiser entrar no oceano precisa saber como fazer isso. Mas não podemos ficar só na pesquisa básica,
estudando o pelo da barata d’água. Você sabe que nos últimos três anos o Brasil sofreu a diminuição drástica da sardinha? Em vez de pesquisar o porquê disso, está-se indo pescar em outro canto. É preciso descobrir essa resposta. E, para isso, é preciso investimento e foco.
Por curiosidade, qual a diferença entre um engenheiro costeiro e um oceanógrafo?
O oceanógrafo é aquele que conhece o mar. Ele mergulha no ambiente, coleta o que precisa, analisa em laboratório. O maior sonho dele é que o oceano não morra. Mas alguém precisa dizer pra ele que, para que o oceano não morra, é preciso dar valor a ele. E como é que se dá valor a ele? Dizendo pro homem o que ele vai tirar de
benefício mantendo a saúde de mar. E, mais do que isso, como ele pode fazer isso de forma economicamente viável. O engenheiro costeiro já lida melhor com os números, sabe quais são as cargas das ondas, analisa qual é o processo de corrosão da salinidade do mar, só que ele ainda precisa entender como que ele perpetua e magnifica isso. Vou dar um exemplo: há uma erosão na praia e você precisa manter uma abertura entre o rio e o mar. Posso corrigir isso com concreto, ou, se for um engenheiro costeiro evoluído, com uma estrutura mole e viva, um manguezal misturado com pedras. Durante a ressaca, o mar erode a praia, mas, na época do
verão, quando a água está mais calma, constrói de novo. Isso demanda tecnologia, investimento em pesquisa e manutenção. O empresário ou o governo não sabem disso. Cabe ao engenheiro dar os cenários e explicar as vantagens. No cenário A, você gasta X e em três anos vai ter que recuperar e gastar mais X. No cenário B, você vai gastar 2 X, mas vai durar nove anos.
Qual a relação entre as sacolinhas plásticas e a poluição dos mares?
Vou explicar os malefícios do plástico no mar. É a transformação do plástico em microplástico. Esse é o principal problema. Como o plástico polui? Primeira coisa: a tartaruga marinha come água-viva. Quando ela vê um plástico flutuando na água pensa que é água-viva, come e morre. Essa é uma das causas do desequilíbrio dos
oceanos. A cada ano que passa os cientistas têm visto que a proporção de águas-vivas têm aumentado nos oceanos. Por quê? Porque muitos dos seus predadores estão desaparecendo. Outros organismos superiores também estão desaparecendo por causa da pesca predatória – quando se joga a rede e pega de tudo, filhotes, inclusive, por causa da malha muito fina. Ocorre também a sobrepesca (quando não se contenta em tirar dez, quer tirar mil). Ambas diminuem muito a população nos oceanos,
desequilibrando o ecossistema.
Só queria voltar um pouco para entender a transformação do plástico em microplástico…
O plástico se deteriora pela luz. Vai ficando duro, se partindo, até se transformar em minúsculas partículas. Não é biodegradável, tem vida útil muito longa e começa a entrar no fitoplâncton e matar esses vegetais minúsculos. Isso a gente não enxerga. Mas vemos a deposição de plástico no fundo do oceano. Há três séculos não havia. Começou a aparecer na era industrial e está aumentando porque a quantidade de despejos começa a fazer volume. Só para ter uma ideia, aqui na Baía de Guanabara, a taxa de deposição de resíduos diversos (de todos os tipos) chega a 1 centímetro por ano.
O que essa deposição implica?
Isso vai matar organismos e afetar a cadeia alimentar. Vai haver uma redução de pesca? Prejuízos na coloração da água? Lugares para turismo vão deixar de ser atrativos? Não sabemos as consequências. Temos que estudar. Não para apavorar a população, mas para que ela fique preocupada o suficiente a ponto de mudar seu comportamento. Como fizemos quando descobrimos que colesterol alto faz mal à saúde.
O sr. pode detalhar mais essa comparação?
Quando descobrimos que o colesterol alto faz mal, rapidamente a população reagiu positivamente. Por quê? Dizer que reduzir o consumo de hambúrguer faz você viver mais é falar de um benefício direto. Mas dizer “não jogue papel no chão porque deteriora o meio ambiente e isso vai diminuir a sua qualidade de vida e das outras gerações” é benefício indireto. Outro exemplo de como é difícil conquistar esse bem-estar: metade da conta de água que você paga está relacionada ao benefício de ter
água limpa. A outra metade está relacionada ao tratamento do esgoto. Estamos em crise, as pessoas não conseguem mais pagar a conta cheia de água. Se você pudesse decidir qual metade pagar, qual pagaria? A de água (benefício direto). Precisamos ter argumentos mais contundentes para convencer as pessoas de que o outro lado também impacta significativamente. Você sabia que o museu do Amanhã está pagando um ecoboat para tirar lixo do entorno? Senão, em vez de o museu apresentar uma esperança, daria a mensagem errada. E precisamos muito que essa esperança contagie as pessoas para elas se mobilizarem.
Resumindo, qual a solução?
Foco. É preciso saber utilizar o plástico e não permitir que ele se misture ao meio natural.
O que mais eu posso fazer pelo oceano dentro de casa?
Se fizer a reciclagem dentro do seu prédio ou falar para o seu síndico que existem cooperativas que catam esses resíduos, que basta ligar no dia tal e falar com fulano tal, já estará dando um passo. Seu prédio pode começar a ganhar dinheiro com isso, pode usá-lo como recompensa para seus servidores, que se sentirão estimulados a colaborar. Todos juntos reduzindo o lixo. Outra coisa é observar aquele esfoliante de pele feito com esferas de microplástico. Isso também vai parar no organismo
dos seres marinhos. Por isso eu digo, todos nós temos responsabilidade de ler o que estamos consumindo. Há muitos produtos químicos sendo liberados no mar. Se estivermos cientes desse conteúdo, poderemos fazer outras escolhas. Sem contar que, se faz mal para a natureza, vai fazer bem pra você?
Algum outro alerta?
Água é um bem superimportante. Não é admissível hoje que a gente escoe nossos desejos com água potável. A água com sabão pode ser aproveitada para limpar o piso. Você tem que segregar apenas a água com matéria orgânica. Porque aí, em vez de levar para tratamento 10 litros de água toda misturada, vai tratar 1 litro só. O que vai tornar o tratamento até mais eficaz. Tubulação diferenciada de descarga, de lavar roupa e piso pode fazer o apartamento custar 10% a mais, mas que se paga em dois, três anos com redução em condomínio. Um registro de água separado muda a percepção. É o consumidor pagador. O poluidor paga mais.
Uma palavra final…
Tive a oportunidade de aprender com gente muito qualificada em diferentes áreas. E só consigo enxergar um pouquinho mais longe porque estou me apoiando em cima desses gigantes. Talvez eles não apareçam no meu discurso, mas estão aí. O que eu faço é tentar espalhar esse conhecimento. Na hora em que sou generoso com o que
tenho e distribuo, exerço liderança; se sou líder, tenho responsabilidades. Se tenho responsabilidade, cumpri meu papel. Pense no que é possível para você, faça e contagie os demais.

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