Publicidade

Para começar, não chame mais o lixo de lixo

O desafio da atualidade é criar uma economia circular em que o resíduo volta à cadeia produtiva na forma de matéria-prima reciclada. A pesquisadora Gina Rizpah Besen fala sobre qual parte dessa responsabilidade cabe a cada um de nós

Gina Rizpah Besen – Nina Jacobi
Esqueça a ideia de ciclo de vida de um produto como algo que começa na extração de matéria-prima, passa pela produção na indústria, depois pela distribuição, comércio e consumo, e acaba no descarte. Esse sistema linear, conhecido como “do berço ao túmulo”, ficou obsoleto. Com mais consumo e produção industrial, as duas pontas dessa reta colapsaram: extrair cada vez mais matéria-prima passou a sair caro para o planeta, e dar conta do volume de lixo produzido tornou-se quase impossível – é só ver os rastros negativos que estão por toda parte. Atualmente, por uma questão de adequação, nem se usa mais a palavra lixo. “É melhor falar em resíduos, o que traz a ideia de algo que pode ser reaproveitado ou reciclado, num sistema circular que vai do berço ao berço”, defende a pesquisadora Gina Rizpah Besen, pós-doutora do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, onde desenvolve uma plataforma digital de indicadores de sustentabilidade para a gestão da coleta seletiva e de organizações de catadores. Para ela, que já atuou como consultora de gestão de resíduos sólidos em entidades como Fundação SOS Mata Atlântica, Natura, Instituto Akatu e Banco Interamericano de Desenvolvimento, melhorar tais processos passa por fazer a indústria pagar pela destinação adequada de seus resíduos, valorizar o trabalho dos catadores e ensinar o cidadão a incorporar algumas responsabilidades como parte da rotina.
Como seria um raio X dos resíduos gerados no Brasil?
Como qualquer país, produzimos diversas categorias de resíduos. Os sólidos urbanos, que geramos em nossas casas, comércios, escolas, os resíduos industriais, da construção civil, dos eletroeletrônicos, da mineração, de serviços de saúde, de atividades agropecuárias e os radioativos, vos, entre outros. Cada tipo requer uma gestão. De modo geral, um cidadão produz três deles: resíduos urbanos, eletroeletrônicos e da construção civil. Só de resíduos urbanos, geramos 180 mil toneladas por dia no país (em média, cada habitante gera 383 quilos por ano). Nos Estados Unidos, a média é de 734; na Suécia, 438; no Japão, 356. A questão é que, no Japão, 80% do lixo é reciclado.
Pode detalhar os resíduos urbanos?
Considera-se que 30% do total de resíduos urbanos são materiais recicláveis (papel, plásticos, vidro, metal etc.), que chamamos de resíduos secos, e outros 20% são rejeitos, isto é, sem possibilidade de reaproveitamento (como papel higiênico). É importante dizer que os outros 50% dos resíduos urbanos são de matéria orgânica,
ou resíduos úmidos (cascas e sobras de alimentos e podas de jardim, principalmente) e, no entanto, as pessoas ficam muito mais preocupadas com os impactos dos
recicláveis! É claro que é importante separá-los, mas é preciso lembrar que os orgânicos podem representar um impacto negativo ainda maior. Sua decomposição em aterros e lixões libera na atmosfera o gás metano, que é 20 vezes mais potente que o gás carbônico (CO2) e tem relação direta com o aquecimento global.
Para onde vai todo esse resíduo?
Em 2014, o Ministério das Cidades fez um levantamento que mostrou o seguinte: pouco mais da metade dos resíduos urbanos é destinada adequadamente a aterros sanitários (52%) e centrais de triagem e compostagem (menos de 4%). Mas 13% são encaminhados para aterros controlados (categoria intermediária entre o lixão e o aterro sanitário, não há impermeabilização do solo nem controle de captação de gases e, quando mal operado, facilmente vira lixão) e mais de 12% acabam em lixões a céu aberto. Nesses locais, o chorume (líquido que escorre do lixo, fruto da decomposição da matéria orgânica) penetra na terra, com substâncias contaminantes para o
solo e para o lençol freático. Com o passar do tempo, o local atrai insetos e ratos, aumentando o risco de contaminação, principalmente para aqueles que trabalham nesses espaços. Para piorar, ainda resta uma parcela de 18%, que não sabemos o que acontece. Esses resíduos sem destinação adequada contaminam rios, córregos e o solo e causam sérios impactos à saúde da população, além de enterrar recursos naturais.
Qual a saída para os orgânicos?
Em casa ou em condomínios, podemos separar os resíduos úmidos em um minhocário. Dá um pouco de trabalho até aprendermos a manejar, mas é uma saída eficiente, simples e de baixo custo. Tenho um na minha casa, com minhocas californianas (as mais indicadas), que produzem adubo e biofertilizante com mais rapidez. Eu
uso e distribuo no meu prédio e entre os amigos. Em condomínios, escolas e empresas, pode-se ter minhocários e composteiras coletivas, em que o adubo resultante é usado em jardins e vasos, doado e, por que não, até comercializado. Também faz parte dessa história combater o desperdício de alimentos, comprando-os na medida certa e consumindo-os integralmente.

Políticas públicas deveriam incentivar o uso de composteiras?
Daria para resolver uma parte significativa do problema, estimulando o cidadão a praticar a compostagem. Do contrário, fica muito mágico colocar os resíduos
na porta de casa e esperar que desapareçam e pronto. Também acho que o cidadão precisa pagar uma taxa justa que cubra os serviços de resíduos. As cidades que mais avançaram nessa área, como é o caso de São Francisco, nos EUA, que é hoje referência mundial, foram as que estabeleceram taxas. Quem produz mais, paga mais. Isso incentiva repensar hábitos para gerar menos resíduos, reutilizar e separar para a reciclagem, cuidar do ambiente e, com isso, receber uma conta menor.
Afinal, é preciso lavar tudo antes da coleta seletiva e separar por tipo?
Podemos resumir de uma forma simples. Em casa, podemos ter um recipiente único para colocar todos os materiais recicláveis. Eles podem ser misturados, sem problemas, pois serão separados por tipo ao chegarem à central de triagem. É importante, sim, dar uma enxaguada antes, para evitar contaminações que possam
comprometer a reciclagem. Para isso, o ideal é aproveitar a água da lavagem da louça para cumprir a tarefa sem consumir mais água.
Nem todas as cidades têm coleta seletiva…
Infelizmente. Dos 5560 municípios brasileiros, somente 1200 têm. Hoje temos a coleta feita por catadores formalizados, organizados em associações e cooperativas, mas é necessário incluir nesse processo os catadores avulsos, que trabalham na informalidade e fazem a maior parte desse trabalho. Veja só: fala-se em 365 mil catadores em todo o Brasil, mas no programa Bolsa Família há mais de 1 milhão de pessoas cadastradas como catadores. É por isso que é tão importante apoiar e valorizar esses trabalhadores, pois não haveria coleta seletiva no Brasil sem eles. Os catadores são agentes ambientais e, no entanto, ainda são muito explorados e mal remunerados.
Há algo que os cidadãos possam fazer para apoiar esses catadores?
Sim. Alguns condomínios contratam cooperativas para recolher os recicláveis que os moradores separam, por exemplo. Isso pode acontecer em empresas também.

Em 2010, após 21 anos de tramitações no Legislativo, o Brasil aprovou a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Houve avanços?
Sem dúvida. A lei dialoga com boas políticas internacionais e até avança em relação a muitos pontos. Ela determina, por exemplo, que os catadores de materiais recicláveis sejam incluídos nesse processo, algo que praticamente só ocorre aqui. Mas isso tudo ainda não acontece no ritmo e na escala que a lei estabelece. O fim dos lixões, por exemplo, uma das principais metas da lei e que deveria ter acontecido até o final de 2014, está longe de virar realidade. Ainda temos mais de 3 mil lixões no
Brasil, e agora temos um projeto de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados, para ampliar os prazos.
A nova lei instituiu o conceito de responsabilidade compartilhada. Como isso funciona?
O país assumiu que todos os agentes da cadeia produtiva são responsáveis pela gestão dos resíduos: o consumidor, o varejista, o distribuidor, o transportador, a
indústria, o importador e o poder público. Aí entramos numa seara complexa, que é a da logística reversa. O que é isso? É fazer com que a indústria que colocou um produto no mercado se responsabilize pelo descarte adequado. Em outras palavras, precisa recolher o produto usado ou oferecer locais para que o consumidor possa descartá-lo com a garantia de que retornará à indústria para ser reciclado, sempre que possível, ou que será descartado de forma apropriada. Isso já acontece, por exemplo, com os pneus e as embalagens de agrotóxicos.
Nesse sentido, as indústrias têm um desafio enorme pela frente, não?
A começar por serem mais responsáveis pelo design de seus produtos. De uma forma geral, hoje os produtos têm pouca durabilidade e os consertos são caros, o que leva
o consumidor a uma nova compra. Mas é possível reverter isso, e é o consumidor que tem o poder de pressionar o mercado e exigir produtos mais duráveis ou oferecer
opções mais amigáveis para o meio ambiente, como os refis de cosméticos e de produtos de limpeza. Quando o consumidor pede, o mercado muda. Um exemplo é o crescimento da oferta de alimentos orgânicos no país, e outro é o papel reciclado, que já foi mais caro e hoje custa o mesmo que o convencional.
O consumidor precisa ser mais consciente em suas escolhas, pressionar por mudanças no mercado, ter uma composteira, correr atrás de locais para levar suas
pilhas usadas, o óleo de cozinha…
De fato, são muitas atribuições. Mas é necessário. Só assim diminuiremos o desperdício e poderemos melhorar a qualidade do nosso consumo. Temos que dedicar um tempo para isso e incorporar nas tarefas do dia a dia. Quando se torna natural, fica fácil de administrar e vamos observando mais nossos hábitos. Quem faz reforma em casa precisa saber como destinar o entulho e, para isso, terá que pesquisar como esse serviço funciona em sua cidade. Saber o que acontece com o fogão, o celular, e é aí
que entra a indústria de novo. É papel dela fazer com que isso funcione.
A tal logística reversa…
A lei diz que a indústria precisa garantir a máxima recuperação dos resíduos. Essa é a ideia do termo “do berço ao berço”, que é fazer o resíduo ou o produto descartado ser reintegrado à cadeia produtiva, como matéria-prima. As empresas e indústrias de cada setor deveriam criar conexões entre si para garantir a coleta do produto velho no momento da entrega de um novo produto. Você compra um fogão e, quando o recebe, entrega o antigo para a mesma transportadora, por exemplo. E por que as empresas precisam pensar nisso juntas? Porque o consumidor compra um produto da marca X, mas devolve outro da marca Y, e isso não pode ser um problema, entendeu? Aí, as empresas pagam por esse serviço que atende todas as indústrias e incorporam essas despesas no custo de seus produtos. É complexo, mas precisa acontecer logo. Com isso, temos uma redução na exploração de recursos naturais para a geração de matérias-primas, sem que isso significa que menos qualidade
nos produtos. Para resumir, o consumidor não é o único responsável. A responsabilidade de dar a destinação adequada é da indústria, mas isso ainda não está acontecendo aqui no Brasil.
O que falta para isso acontecer?
A indústria não quer pagar a conta. Sou bem crítica, por exemplo, a um acordo setorial formalizado entre o Ministério do Meio Ambiente e uma coalisão de empresas, que, contrariamente ao que diz a nossa política, coloca o município e as cooperativas de catadores – e não a indústria – como responsáveis pela coleta e destinação dos resíduos. Em 35 países da União Europeia e no Japão, a responsabilidade é compartilhada e a indústria paga pela coleta das embalagens e garante a destinação correta. Aqui no Brasil, as mesmas indústrias multinacionais não querem pagar a conta.
Já que a sra. falou das embalagens, qual a sua opinião sobre as sacolinhas plásticas?
Hoje, o plástico nos oceanos é um problema enorme. Não há área que não esteja contaminada! A discussão é maior do que a sacolinha, ela abrange todos os tipos de plásticos. O problema, de fato, é o descarte. Então o importante é levar para as compras sacolas duráveis, de qualquer material, evitar o uso desnecessário de sacolinhas plásticas e, quando não houver outra saída, encaminhá-las para a reciclagem. Precisamos observar o ciclo de vida do produto, não deixar que ele vá parar em aterros ou, pior ainda, em um lixão. No Brasil, as empresas que produzem embalagens não recicláveis não são penalizadas. Isso tem que mudar! Em alguns países como França e Alemanha, as empresas arcam com os custos da logística reversa das embalagens. Aqui, não.
Dinamarca, Alemanha e Japão são exemplares na gestão dos resíduos.
Nesses países, o índice de reciclagem dos materiais é muito alto (em torno de 70%, 80%), porque o sistema de coleta seletiva funciona muito bem. E eles também contam com processos avançados para tratar os resíduos orgânicos. Porém, eles incineram os resíduos urbanos. Além do problema das toxinas geradas no processo de queima, prejudiciais à saúde, incinerar envolve tecnologias caríssimas e não incentiva as pessoas a reduzir a produção de resíduos. Também fica contraditório falar em lixo zero, quando o que ocorre, de fato, é a queima dos resíduos. O conceito de lixo zero, que está em alta, tem como meta reaproveitar ao máximo os resíduos (reutilizando e reciclando) e reduzir, até zerar, o encaminhamento para os aterros sanitários. Dinamarca e França já entenderam que incineração significa baixas taxas de reciclagem, o que é ruim. Na Suécia, para incentivar a população a reciclar 90% das embalagens foi criado um sistema em que o cidadão deposita latas, garrafas
de plástico e de vidro numa máquina própria e é reembolsado. Esse material é revendido aos produtores com o intuito de voltarem a reutilizá-lo. É um processo cíclico e o cidadão ganha talões de descontos (quanto mais reciclar, mais irá ganhar).

Já que a sra. citou o Japão, sabemos que lá a divisão dos resíduos engloba mais de dez categorias. Não seria bom repetir o modelo?
No Brasil, a separação é feita nas centrais de triagem e de acordo com o mercado de compra de cada cidade. Em geral, o papel pode ser separado em cinco ou mais tipos, o plástico, em sete. Aqueles que não são recicláveis ou estão sujos demais e não têm valor de venda (20% do que chega é rejeito) e até mesmo, em alguns casos, os que não têm mercado de compra (e também viram rejeito) devem ser destinados aos aterros sanitários. Se o cidadão separa em casa e depois vê que na coleta tudo é misturado novamente, fica desestimulado.
Quanto à cidade de São Francisco, nos Estados Unidos…
São Francisco é referência mundial. A cidade recicla 85% dos resíduos, um índice incrível. Também faz compostagem dos orgânicos por sistemas coletivos, incorporou catadores, definiu taxas para a população pagar pela geração de resíduos. Não há nenhuma mágica e nada que não possamos fazer aqui no Brasil. Temos tecnologia, gente capacitada e uma boa política nacional para o assunto. O que falta é justamente fazer acontecer.

Publicidade