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Monge do Mosteiro de São Bento fala sobre a rotina e os dias de hoje. Confira!

Desde a Idade Média até os dias de hoje, o modo de vida dos monges beneditinos garantiu a preservação da cultura ocidental e a difusão do conhecimento. Parte dessa história pode ser encontrada bem no centro da capital paulista, na biblioteca do Mosteiro de São Bento de São Paulo

581 títulos foram publicados entre os séculos 15 e 18 – Martin Gurfein
A entrevista com Dom João Batista Barbosa Neto começa às 15h de uma sexta-feira, ao som do sino do Mosteiro de São Bento, localizado no coração da maior metrópole do país. Ele conta que o badalar se repete toda semana nesse mesmo horário para lembrar a morte de Cristo. As badaladas também orientam a rotina dos 37 monges que ali vivem, marcada por oração, meditação e leitura. Os livros acompanham os moradores ao longo do dia todo, inclusive às refeições, sempre silenciosas, quando um religioso lê em voz alta uma obra selecionada pelo abade – o superior da casa. No almoço, a temática é livre, como história, filosofia ou biologia. No momento estão lendo A Igreja dos Tempos Bárbaros (ed. Quadrante), de Daniel-Rops. “É uma obra primordial para entendermos a história da Igreja na transição da Antiguidade à Idade Média”, diz Dom João. 
No jantar, o texto é mais espiritual, como a vida de um santo ou uma carta do papa. “O alimento não é apenas do corpo, é a alma também que se nutre com o conhecimento”, explica o monge. Dom João nos recebe na ala da biblioteca antes usada como dormitório de alunos do Colégio São Bento. Aos 32 anos, ele é responsável pela coleção de livros mais antiga da cidade – sem acesso direto ao público – que surgiu com o mosteiro em 1598, no espaço doado pela câmara de São Paulo. “O documento da época que se encontra em nossos arquivos diz que ‘o terreno mais importante da região pertence aos monges até o fim do mundo’,” conta ele.
Segundo Rodrigo Ricupero, professor doutor de História do Brasil Colonial, da Universidade de São Paulo (USP), nessa época o Brasil era uma faixa de terra litorânea e descontínua entre os atuais estados de São Paulo e Rio Grande do Norte, com poucos núcleos urbanos. “O único afastado do litoral era a vila de São Paulo onde as principais preocupações eram a exploração do interior e a ameaça de ataques indígenas”, situa o professor. Todo mosteiro beneditino é fundado com uma biblioteca por causa da Regra de São Bento – livro escrito pelo santo para organizar o modo de vida monástico: “Está no capítulo 48 da regra! Ele é muito importante porque nos incentiva a conservar as obras. Trata do trabalho manual e exige que tenhamos um momento de leitura”, explica Dom João. Segundo ele, a biblioteca do São Bento foi formada aos poucos, no decorrer de seus 416 anos de história: “Até o início do século 19, os livros eram adquiridos pela congregação portuguesa da Ordem de São Bento, na Europa. O mesmo acontecia em todos os mosteiros do Brasil.” Sem parar de crescer e demandar mais espaço, o acervo reúne atualmente cerca de 115 mil obras, parte delas de títulos raros, incluindo seis incunábulos – exemplares do início da imprensa, como uma Bíblia de Gutenberg, o inventor da tipografia, de 1496. “Temos 581 volumes publicados entre os séculos 15 e 18. São valiosos pelo teor histórico, claro, mas alguns também pelo seu conteúdo”, ilustra Dom João.
Antes dos incunábulos, quando os livros eram copiados à mão em pergaminhos, os monges foram vitais para a preservação da cultura ocidental. Com a queda do Império Romano, as cidades passaram a ser saqueadas por bárbaros, forçando seus habitantes a se mudarem para o campo. Nessa época, entre os séculos 4 e 5, surgem os mosteiros como fortalezas, protegidos contra eventuais ataques. Para lá, os monges levaram livros religiosos e pagãos, de autores gregos e latinos, protegendo-os dos invasores. Quando, raramente, um religioso deixava a clausura, em geral para visitar outro mosteiro, e encontrava um livro que não havia em sua biblioteca, prolongava a estadia e fazia uma cópia a mão para juntar ao seu acervo. “Todas as obras de Aristóteles e os diálogos de Platão passaram por mosteiros para serem traduzidas para o latim. Todas as obras desses filósofos que chegaram a nós, devemos ao trabalho de monges copistas.
Se não existissem esses livros, nós não pensaríamos como pensamos hoje”, avalia o monge-bibliotecário. Nessa época, o mosteiro funcionava como uma editora, com uma pequena equipe. O tradutor vertia do grego ou do árabe, em geral, para o latim – que era a língua da Igreja; o iluminador desenhava as letras capitulares; o curtidor preparava o papel e havia o copista. “Os copistas tiveram um papel fundamental na preservação da cultura. Graças ao tipo de livro que fizeram, à maneira de guardar os livros, é que eles existem até hoje”, afirma Plinio Martins Filho, professor de editoração e diretor-presidente da Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP).
Os livros raros ficam protegidos em uma sala climatizada. Dom João separou alguns deles para serem fotografados na ala mais antiga da biblioteca, protegida pela clausura dos monges. Ali mal se ouve o barulho da cidade e a luz da tarde chega por uma ou outra janela. Andar pelos corredores tomados por livros traz conforto e tranquilidade. Difícil explicar a sensação de ficar diante das Obras Completas de Aristóteles, de 1517; e da Bíblia de Lutero, de 1656. Dom João folheia as páginas furadas pelas traças e mostra seu bom humor. “Esses insetos são muito egoístas, querem o conteúdo só para eles e esse conteúdo deve ser compartilhado”, diz. O monge planeja digitalizar as obras raras da biblioteca e torná-las disponíveis para todos em formato digital, preservando os originais. Para isso, será preciso conseguir um patrocínio, dado o alto custo da empreitada. Enquanto os recursos não chegam, a equipe formada por dois monges, dois bibliotecários e um aluno bolsista continua a catalogação do acervo e atende pesquisadores e alunos da Faculdade de Filosofia e Teologia do Mosteiro, em uma sala fora da biblioteca.
“Geralmente os livros são procurados por tema. Nós selecionamos alguns títulos e marcamos um dia para que o pesquisador possa estudar estas obras. Caso ele precise de outros livros, procuramos na hora”, conta Dom João. A maior parte dos que nos procuram são acadêmicos, mas há também escritores, como Paulo Leminski (1944 – 1989), notadamente um grande frequentador da biblioteca. Hoje, a maior parte das obras está catalogada por autor em antigas fichas de papel. Por isso, quando a procura é feita pelo título, a localização é mais lenta do que em um sistema informatizado. Há 10 anos começaram a fazer o registro do acerno no software WinISIS, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), mas em função do grande número de obras, foi preciso migrar para um software mais robusto, o Sophia. Cerca de 20 mil títulos já estão no novo sistema e a expectativa de Dom João é terminar a catalogação em 15 anos. “Temos de acompanhar as mudanças”, resume o monge, sensível às transformações por que passa o mundo, cada vez mais digital e conectado ao usuário final. “A biblioteca de um mosteiro medieval possui o mesmo objetivo da biblioteca de um mosteiro contemporâneo: formar monges e preservar a cultura. 
Com o passar do tempo os recursos vão modificando e a técnica aprimorando. Nossa missão é propagar este progresso e perpetuar o bem e o belo”, afirma Dom João, que dá sequência à nobre vocação secular dos beneditinos.

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