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Quando alguém morre, um pouco de nós morre também. Entender que viemos do todo alivia a saudade

O avião caiu, Scavone morreu…Sai para o quintal dos fundos da casa. O céu estrelado cintilava. Ele era agora uma estrela, uma luz e mais nada

Monja Coen – Reprodução/ Facebook
A fumaça vinha do banheiro dos fundos do avião. Estava em chamas. Depois do acidente, souberam que alguém colocara um cigarro aceso na caixa de papéis sujos. A fumaça já chegava até a cabine do comandante. Ele pediu que todos usassem as máscaras de oxigênio. Assim foi feito. Um jovem que estava indo assistir ao show dos Rolling Stones correu e ficou com o comandante. Um comissário de bordo enfiou a cabeça numa privada e ficou dando descarga. Apenas esses sobreviveram. O oxigênio era gás letal. Todos morreram. Antonio Carlos Scavone, 33 anos de idade, comentarista da Globo, estava indo a Monza. Ele fora corredor de carros e era o grande fomentador da Fórmula 1 em Interlagos. Era o pai de minha única fi lha. Dois dias antes de viajar, veio nos visitar. Minha menina brincou muito. Ficava tão feliz ao vê-lo. Pulava no sofá, pulava no sofá. Ele havia me trazido uma blusa de veludo preto, cheia de pequeninos espelhos e fi os dourados. Raramente me dava presentes. Veludo preto. Saímos para dar uma volta de carro. Era um carro lindo, um Porsche, talvez. Nossa fi lha, no estreito espaço de trás, mascava os chicletes que ele trouxera.
Depois adormeceu. Paramos quase em frente a casa em que eu morava. “Venha comigo para Monza. Vamos voltar. Amo você.” Não era a primeira vez que eu o ouvia pedir que reatássemos. Pedia e depois desaparecia. Eu já não acreditava mais nesse amor. Havíamos nos separado durante a gravidez. Sua irmã, que eu considerava minha grande amiga, veio buscar as malas junto com ele. 
Eu tinha 17 anos, e ele, 24, quando a menina nasceu. Veio me visitar na maternidade com uma amiga. Não! Eu não queria ir a Monza, eu não poderia voltar. Então nos beijamos suavemente. Há anos não nos tocávamos. Foi um beijo longo, leve, macio, sem sensualidade. Um beijo de amor. Três noites depois, o telefone toca em casa. Era da redação do Jornal da Tarde, onde eu havia trabalhado. O avião caiu, Scavone morreu. Minha filha brincava. Não disse nada a ninguém. Saí para o quintal dos fundos da casa. O céu estrelado cintilava. Ele era agora uma estrela, uma luz e mais nada. 11 de julho de 1971, nos arredores de Paris, um Boeing da Varig. 
Quando alguém morre, um pouco de nós morre também. Mas muito de quem foi continua vivendo em nós. Como dar vida, em nossas vidas, para quem se foi antes de nós? Não há nada fixo, nada permanente. Tudo que começa inevitavelmente termina. Surgimos do todo, de inúmeras causas, condições, efeitos. Quando terminamos, voltamos ao todo. Lembre-se, porém, de que esse espaço entre o surgir e o desaparecer também é o todo manifesto.

Aprecie sua vida.

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