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Como é viver numa ecovila

As delícias e os dilemas de viver um cotidiano mais simples em uma comunidade sustentável bem pertinho de São Paulo

Como é viver numa ecovila – Divulgação
O casal de ex-publicitários Bruno Chimenti e Maria Alice Paulino, e o filho Caetano, acabam de se mudar para uma das 26 casas sustentáveis na cada vez menos escondida ecovila Clareando, em Piracaia, a 90 km da capital paulista. Bruno e Maria tinham emprego em grandes agências, ganhavam bem, dirigiam carrões e moravam em um bairro nobre de São Paulo. Mas trabalhavam como loucos, viviam estressados e não encontravam mais sentido no que estavam fazendo. Em 2012, decidiram mudar
o rumo da história. Maria fez curso de corte, costura e modelagem e criou a marca de saias Atelier Depano. Bruno aprendeu diversas técnicas de bioconstrução e gostou tanto da experiência que se tornou bioconstrutor. Complementou a formação com curso de pedreiro, eletricista e um intensivão com o mestre bambuzeiro Lucio Ventania, considerado um dos principais especialistas brasileiros no assunto. O casal comprou um terreno na ecovila e começou a fazer a casa, que vai utilizar bambu como matéria-prima principal, com as próprias mãos.
Com a mudança de estilo de vida, a renda familiar diminuiu em 50%. Mas o menor custo de vida, a intensa convivência com os vizinhos (sempre rola almoço
comunitário, festas), o maior tempo livre – no verão, durante as manhãs, Maria leva o filho para tomar banho no lago de água mineral – e a paisagem compensam. De alguns locais é possível avistar o contorno da represa da Cachoeira, uma das que compõem o Sistema Cantareira. Antes de o Sol se levantar, um leve nevoeiro dança sobre a copa das árvores. Perfume de flores e o canto dos pássaros – estima-se que haja mais de 120 espécies na região – estão inclusos no pacote.
A história de Bruno e Maria e a de outros 38 moradores fixos – e 15 flutuantes – que trocaram a cidade pela roça não são casos isolados. Existe até um termo acadêmico para definir esse movimento: os novos rurais. Um rápido censo pelas profissões originais dos moradores da Clareando revela um pouco desse fenômeno global. Ali mora médico, professor, publicitário, engenheiro, designer, jornalista (eu sou um deles), funcionário público, terapeuta, professor, engenheiro, revisora, aposentado, biólogo, empresário, instrutor de voo livre, estilista.
Com raras exceções, são pessoas urbanas, com formação universitária, que não tinham qualquer experiência anterior com a vida rural, mas optaram por uma vida mais simples (embora a simplicidade tenha um significado e dimensão diferentes para cada um) e estão trazendo novas práticas e vocabulário para o cotidiano:
permacultura, orgânicos, fitoterapia, agrofloresta.
A ecovila Clareando começou a surgir em 2001, quando a advogada Sandra Mantelli e o educador ambiental e engenheiro agrônomo Edson Hiroshi (foto acima), casados na época, compraram o terreno de 23 hectares (230 mil metros quadrados) em Piracaia para ser dividido em lotes. Era um pasto árido e desnutrido, mas que encantou Hiroshi pela possibilidade de provar que a intervenção humana nem sempre é prejudicial ao meio ambiente.
Para vender os terrenos, eles faziam piqueniques comunitários para apresentar o projeto aos demais. Hoje, pouco mais de 15 anos depois, mais de 5 mil mudas de árvores nativas da Mata Atlântica foram plantadas de forma planejada – e já estão com mais de 10 metros de altura. Sem o peso do gado, que compacta a terra e impede que a chuva a penetre, causando erosões e voçorocas, o solo se regenerou. Outras milhares de árvores nasceram espontaneamente: sementes são carregadas pelo vento ou simplesmente ficam adormecidas, esperando as condições ideais para germinar. Os bichos reapareceram: tucanos, maritacas, macacos bugios, lobos-guarás, esquilos,
porcos-espinhos. Com a vegetação ao redor revigorada e protegida, as cinco nascentes (duas delas abastecem as casas) que estavam quase mortas se recuperaram.
Uma análise em laboratório revelou que a qualidade da água mineral é de primeiríssima qualidade. Um dos primeiros conselhos que Hiroshi costuma dar aos interessados em morar na ecovila é beber muita água de lá. “Aí, se fizer sentido para você, depois de um tempo, seu corpo, que é formado de 70% de água, vai se sentir
fazendo parte daqui também”, brinca.
Cada ecovila une de 50 a 2 mil pessoas em torno de um propósito comum, geralmente baseado numa visão ecológica, social e espiritual. Na Clareando, a bioconstrução é o principal cartão de visitas. Todas as casas utilizam materiais que agridem o mínimo possível o meio ambiente, captam água da chuva em cisternas, instalam placas de energia solar e tratam o próprio esgoto.
O engenheiro agrônomo Ângelo Negri construiu sua casa de 120 metros quadrados em dez meses, com a técnica de superadobe. A parede não leva tijolos, e
sim sacos de ráfia recheados de terra compactada com um pilão, o que lhe dá uma espessura de 30 centímetros. O reboco é feito de terra, cal, areia e esterco bovino
(que perde totalmente o cheiro característico quando misturado à terra). As tintas são criadas com cal, óxido de ferro, argila, quartzo e mica. No telhado verde, Negri
plantou boldo e um pé de maracujá, que ajudam a reduzir o calor nos dias quentes e o retém nos dias frios, além de evitar as periódicas manutenções por conta dos
ventos fortes que costumam soprar por lá. Outro diferencial da casa dele e dos demais que habitam esse reduto de Piracaia é o saneamento básico. Em vez de fossas
– muito comuns em sítios, mas que contaminam o lençol freático –, todos são obrigados a fazer tratamento do esgoto de forma natural. Quem vê os sistemas, como
o Lavoisier e o Bet (bacia de evapotranspiração) em funcionamento, se pergunta por que não há campanhas do poder público para estimular seu uso em larga escala,
já que os detritos se transformam em nutrientes para as plantas. “Aprendemos que o esgoto é sujo e deve ser descartado o mais longe possível. Mas, na verdade, ele
é riquíssimo em fosfato, nitrogênio, ureia e, se tratado corretamente, pode ser usado para a adubação”, detalha o agrônomo.
Mas não tem mar de rosas Para o professor de economia Michel Renteria “morar na ecovila é um acelerador de processos”, diz ele, que, para a construção
de sua casa adotou um modelo realizado por voluntários, que recebem alimentação e hospedagem em troca do esforço. Quem vier com a ideia romântica de “paz
e amor” vai se surpreender. O contato profundo consigo mesmo é inescapável e, mesmo estando numa paisagem paradisíaca, pode-se viver o inferno. Não à toa
alguns casamentos já foram desfeitos. Tão rico quanto esse processo de autoconhecimento é a vida comunitária que envolve desde o mutirão para o plantio de
mandioca ao revezamento de mães para cuidar de crianças menores, jantares comunitários, cantar em volta da fogueira.
A economia colaborativa ensaia alguns movimentos. Já são feitas trocas de serviços, produtos e alimentos produzidos localmente. Uma aula de dança pode valer
três queijos de cabra; uma massagem, um pão integral e uma dúzia de ovos caipiras. A intenção não é determinar o quanto a mercadoria vale, mas o que cada um pode
oferecer de útil ao outro.
O cotidiano, no entanto, não impede que haja conflitos. A Associação de Moradores criou um Manual de Acordos Comunitários para facilitar a convivência e realiza uma reunião mensal para discutir pautas que vão desde temas relevantes como ter uma escola para a primeira geração nascida ali até discussões sem fim para decidir se a porta do centro comunitário deveria ficar trancada ou aberta. Os moradores têm feito esforço para exercitar a escuta. Nas reuniões, aquele que estiver com a palavra não deve ser interrompido enquanto expõe seu ponto de vista. Os que escutam se comprometem a prestar atenção na fala. Simples assim. Difícil também. “Hoje as pessoas estão com pouca disposição para ouvir verdadeiramente o que o outro tem a dizer”, afirma a coach Fatima Helou, moradora que realiza a Oficina Despertar da Intuição.
Como Fátima, outros moradores conseguem seu sustento oferecendo o que sabem aos vizinhos. Sempre quem decide se mudar para uma comunidade dessas já tem um plano B na manga para fazer a transição. Pode ser algo que permita flexibilidade de horário e não exija presença física permanente. Ou que permita exercer
a mesma profissão na cidade ou em outras maiores da região, como Atibaia ou Bragança Paulista. Desde setembro do ano passado, um grupo se reuniu para oferecer um calendário de vivências aos finais de semana e feriados, aproveitando as vocações de cada um. As oficinas mostram que é possível plantar a própria comida sem agrotóxicos, construir a própria casa com materiais disponíveis no entorno, cuidar da saúde com remédios caseiros. Ao final de cada uma, quando é feita uma roda de encerramento, os depoimentos dos participantes emocionam, principalmente porque se percebe que é possível viver outro estilo de vida em uma comunidade que está
longe de ser perfeita, mas que está buscando colocar em prática soluções reais para preservar a natureza. Andar descalço na terra faz um bem danado…

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