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A pródiga leveza do bom humor

Ver graça no mundo não é apenas uma forma de dissipar tensões e ganhar paz de espírito, mas uma questão de escolha. Se tudo parece difícil e confuso, pode acreditar, melhor é relaxar e rir

A pródiga leveza do bom humor – Shutterstock
“Dinheiro não traz felicidade. Então me dê o seu e seja feliz.” A frase escrita no para-choque de um caminhão quebra a rotina das estradas e deixa a viagem de quem a lê mais descontraída. Assim é o bom humor. Tempera a vida com leveza, nos desarma de qualquer sentimento ruim e nos faz sorrir mesmo quando não estamos nos nossos melhores dias. Se observarmos bem, ele está em toda a parte. Nas falas divertidas dos feirantes, nos almoços de domingo, nos memes espalhados pela internet, nas
conversas de velhos amigos, em vários cantos da nossa memória. Pode durar um instante, mas é o suficiente para tornar tudo tão encantador como quando éramos crianças. São momentos em que somos surpreendidos por algo engraçado, e simplesmente rimos, sem pensar em mais nada.
Quem não gosta de ter por perto pessoas de bem com a vida, repletas de boas histórias para contar? Se a presença delas tem o poder de nos abastecer de energia, melhor ainda é ser bem-humorado e se revestir dessa energia o quanto possível. Essa é a maneira de inventar um mundo cheio de graça e magia, com cores mais vibrantes e sem os limites férreos da realidade. E ainda ser capaz de transformar obstáculos em conquistas, lágrimas em sorrisos e ganhar uma chave especial para abrir portas e corações.
Não encarar a vida com tanto rigor é a primeira lição da cartilha do bom humor e, consequentemente, da felicidade. Confiar que para cada tropeço ou impossibilidade que se coloca no nosso caminho há uma cartola ao alcance da mão para tirar uma boa solução nos faz ser mais otimistas. E essa solução passa por algo que era corriqueiro na nossa infância: brincar.
Gostamos de cenas cômicas porque elas tiram o peso da existência. Nelas, tudo parece uma grande brincadeira. O que dá errado não traz consequências indesejadas e sempre é possível fazer tudo de novo. Não há quem nunca tenha dado boas gargalhadas vendo Carlitos, o personagem desajeitado, de roupas surradas e andar cambaleante de Charles Chaplin. Pode passar o tempo que for, o espírito irreverente do bom humor continuará sendo um elixir contra as agruras da vida. É por isso que grupos de stand-up comedy como o Porta dos Fundos são um fenômeno. Em suas esquetes, aniquilam a seriedade em assuntos do nosso dia a dia, como política, vida a dois, mundo corporativo.
Para Abrão Slavutzky, psicanalista e autor do livro Humor É Coisa Séria (Arquipélago Editorial), bom humor é exatamente isso. Uma forma de ver o mundo através de uma janela maior do que a que gente usa para enxergar a realidade. “O bem-humorado tem uma visão de mundo que eleva e enriquece o espírito. É aquele que vê as coisas com uma certa distância e tem a capacidade de rir de si próprio.” Em outras palavras, sabe não se levar tão a sério. Alguns porque nasceram com essa habilidade,
outros porque a foram adquirindo aos poucos. E, com isso, estão conseguindo encurtar o espaço do sofrimento, não se assombrar com as tempestades que formam
em nossa vida e não depender dos momentos de calmaria para ficar bem.
Mas isso não significa que devemos fazer de conta que os problemas não existem. Abrão afirma que brincar é uma forma lúcida de aliviar as dores, diminuir as angústias, não sentir tanto medo nem ter a sensação de estar desamparado. Mas é um treino. E a primeira regra é deixar de ver o mundo somente como um lugar perigoso. “Se o olharmos como um jogo de crianças, será possível se divertir”, aconselha o especialista.
Brincadeira de gente grande

Você pode achar a frase que abriu esta reportagem engraçada ou não, mas certamente já chorou de tanto rir ao ouvir uma boa piada.
Osho (1931-1990), filósofo e mestre espiritual indiano, certa vez ouviu de um aprendiz: “Por que o senhor não diz algo sério?”. Porque ele vivia brincando e contando piadas, ao mesmo tempo em que passava seus ensinamentos. Ele criava o discurso em torno da piada, e não poderia ser diferente. Rir é uma maneira de sair da mente. É uma espécie de libertação. Joga para fora tudo o que há de ruim em nós, mesmo que por um instante. E a soma de muitos desses instantes de limpeza emocional é capaz de trazer diversos benefícios para a nossa saúde. Recentemente, o neurocientista cognitivo Scott Weems quis entender mais a fundo o porquê disso. Em seu livro Ha! e Science of When We Laugh and Why (A Ciência de Quando Rimos e Por Quê, sem edição em português), ele diz que, assim como os exercícios físicos fortalecem o corpo, o humor é uma ginástica para o cérebro, pois aquece a mente para produzir pensamentos profundos. “Somos por natureza criaturas geradoras de hipóteses. Estamos sempre tentando adivinhar o que temos que fazer ou dizer. Algumas vezes erramos em nossas avaliações, mas isso é uma coisa boa. Porque é detectando erros que nossos cérebros transformam conflitos em recompensas.” As recompensas viriam em forma de neurotransmissores indutores de prazer, como a dopamina, que são liberados quando o conflito é resolvido. E um ótimo jeito de fazer isso é contando piadas.
Quando vemos alguém contando uma anedota na tela do cinema ou da TV ou mesmo na rua, pode parecer algo muito fácil. Mas não é. Principalmente se esse alguém
estiver tentando ser original. Fazer associações rápidas e inteligentes e buscar respostas para os dilemas do momento requer uma boa dose de criatividade e improviso,
de acordo com Scott. Saímos da zona de conforto e travamos uma longa batalha cerebral entre emoções e pensamentos opostos. É nessa confusão que o riso e o bom humor entram em cena e trazem as soluções que buscamos. Eles nos fazem construir raciocínios sofisticados, ter insights que ninguém teve antes. Como se soubéssemos
dançar tão bem a música dos acontecimentos que sobrasse segurança para arriscar um passo mais elaborado. “O humor é uma forma de comunicação interpessoal. É como dançar com o parceiro e, de repente, dar uma pirueta. Uma boa piada dá tempero à conversa”, afirma.
Uma dose da melhor terapia
Impossível não se emocionar com as cenas do estudante de medicina que tenta curar adultos e crianças com brincadeiras no filme Patch Adams – O Amor É Contagioso
(1988). Mas, além de enternecer nosso coração, a história real inspirada nas experiências do médico que empresta o nome à película mostra o efeito poderoso do bom humor em situações difíceis e dolorosas. O dia a dia do ator e bailarino pernambucano Ronaldo Aguiar é parecido com o de Patch Adams. Ele faz parte da equipe de palhaços-doutores da ONG Doutores da Alegria há 14 anos. Ronaldo queria ser bailarino. Só percebeu sua vocação para palhaço quando revisitou o passado e se lembrou que desde menino tinha facilidade para rir e fazer as pessoas rirem. Era o palhaço da família. “Vejo as pessoas na rua e acho tudo engraçado. O espetáculo do circo, a velhinha que passa o batom errado, o taxista que perde passageiro ou erra o endereço e fica doido, as pessoas que não conseguem controlar o próprio cachorro na rua. Se a gente se sentar no banco da praça, parar de se preocupar tanto com os problemas na hora do engarrafamento e olhar à nossa volta, vai rir bastante.”
Foi assim que o jovem feliz e cheio de amigos decidiu usar seu dom para alegrar a vida de crianças doentes. Duas vezes por semana, ele entra em hospitais públicos paulistanos com o nariz de palhaço, vestindo jaleco e carregando uma porção de objetos inusitados, além de um repertório de piadas prontas e muita disposição para improvisar. Chega preparado para atender os pacientes mais exigentes. Doutor Charlito, como é conhecido, costuma dizer que palhaços são os únicos que aceitam ouvir “não”. Se ele abre a porta e a criança fala que não quer vê-lo, ele fecha e volta com um chapéu diferente e expressão de pedinte, à espera de aprovação. Repete as entradas e saídas até a criança sentir que a vontade dela é respeitada e, mesmo internada, querer brincar. Ronaldo coleciona histórias envolvendo pacientes, pais e funcionários dos hospitais. Uma vez, um paciente que ele estava atendendo havia um bom tempo faleceu. Ronaldo falou: “Estou alugando o meu ombro pra você desabafar e a minha bunda pra você chutar, caso tenha raiva”. A atitude dele não diminuiu a perda da família nem a frustração da equipe médica. Mas foi uma forma de
oferecer apoio e aliviar um pouco a dor de quem estava lá.
O papel dos palhaços-doutores é mostrar para as crianças que o quarto hospitalar não precisa ser uma tortura 24 horas por dia. Que, apesar das dores, o espaço pode e deve ser visto como um lugar de brincadeira, um universo maior e mais divertido do que veem os olhos mais concretos – até porque o riso, comprovadamente, consegue minimizar a dor. “Quando temos bom humor, não significa que não somos pessoas sérias. Mas tudo pode ser de uma maneira mais agradável. A gente pode, sim, rir das derrotas e celebrar as vitórias. Saber que a gente vai aprender com as quedas e se superar. E rir de tudo depois”, diz. Ao término das duas horas de atendimento,
Ronaldo sai cansado, mas inspirado. Ele não se imagina fazendo outra coisa na vida. Passa por altos e baixos no seu cotidiano, como todo mundo. Mas aposta no bom humor para nunca perder o encanto pela vida, e também para criar laços e potencializar as relações, seja com quem for. É uma fórmula que tem dado certo. Tanto
que seu círculo de amigos inclui alguns ex-pacientes e seus familiares.
Diversão para ir além
Quando Marcel Milani, professor de geografia do cursinho Objetivo de Campinas, entra na sala de aula é uma festa. Cerca de 180 alunos, a maioria entre 16 e 18 anos, esperam ansiosos por uma aula dinâmica, divertida e, principalmente, fácil de entender. Afinal, com vestibulares cada vez mais concorridos, a aula precisa ser muito
boa para ninguém correr o risco de ser vítima do temido “branco” quando receber a prova. E o bom humor, para Marcel, é um recurso didático indispensável nesse caso. Muitas vezes entra na sala de aula, apelidada por ele de “Nosso Maracanã”, com um violão debaixo do braço.
O instrumento é utilizado para reproduzir a melodia de músicas conhecidas que ele usa para explicar os assuntos da disciplina. Em uma dessas aulas, o professor canta uma versão própria deWhisky a Go Go, do Roupa Nova, com a letra falando sobre taylorismo e fordismo, sistemas de administração industrial. Em vez de “Foi numa festa, gelo e cuba libre. E na vitrola whisky a go go. À meia luz o som do Johnny Rivers. Aquele tempo que você sonhou”, ele entoa “Taylor trabalho dividiu na empresa, o empregado superexplorou, mas Henry Ford viu com mais clareza, e o seu mercado potencializou”.
Em outras aulas, ele relaciona algum acontecimento engraçado de sua vida ao conteúdo, como contar sobre o seu medo de voar para abordar o tema do transporte aeroviário. Também caçoa de suas manias e sotaque interiorano, sem o receio de parecer ridículo ou ser motivo de riso. Sua postura espontânea e engraçada leva os alunos ao delírio. De tão acostumados que estão com o jeito bem-humorado de Marcel, uma vez demoraram uns cinco minutos para acreditar que o professor tinha desmaiado na sala. Pensaram que ele estava fingindo. “É preciso sentir a turma e ter o timing certo para encaixar uma boa piada, uma boa história. Se a gente abrir
mão do conteúdo e ficar só no oba-oba, acaba gerando mais ansiedade nos alunos. Por outro lado, em uma aula maçante, pesada e sem descontração,
eles ficam tensos.”
As brincadeiras feitas pelo professor extrapolam as dependências do cursinho. Sempre foi carismático e popular na sua turma de amigos. E assim conquistou muitas coisas na vida, inclusive sua mulher. “Ganhei o coração dela quando tirei dela um sorriso. Digo sempre que sou a parte divertida e ela é a parte bonita. Somos de universos diferentes. Ela é do meio executivo e eu uso camiseta e All Star”, diverte-se.
Sem perder o essencial
Rir desmonta a rigidez, deixa as pessoas porosas para o fluir da vida. E todos merecemos desfrutar desse agente poderoso contra os males do mundo. Basta perder o medo de brincar, deixar as tristezas, o orgulho, o pessimismo, as desconfianças e o perfeccionismo um instante de lado e se arriscar mais para espiar o lado positivo da vida. Pode não ser fácil no começo, mas o esforço vale a pena.
No texto A Revolução: Conversas sobre Kabir (ed. Academia de Inteligência), Osho passa a maior mensagem sobre a importância de cultivar o riso: “A vida inteira
é uma grande piada cósmica. Não é um fenômeno sério — leve-a a sério e você continuará a perder o essencial. Ela só é compreendida por meio do riso. (…) É só o homem que pode rir; é o pico mais alto do crescimento. E é por meio do riso que você alcançará a Deus — porque é só por meio do mais alto, que está em você, que você pode alcançar o supremo. (…) Ria no seu caminho para Deus. Eu não digo ore no seu caminho para Deus, eu digo ria no seu caminho para Deus! Se você puder rir, será capaz de amar. Se puder rir, será capaz de relaxar. O riso relaxa como nenhuma outra coisa. Assim, todas as piadas para mim são orações —é por isso
que eu as conto”.

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