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A felicidade se acha é em horinhas de descuido

O escritor Guimarães Rosa preconizou: o nosso estado de plenitude não pode ser programado. Ser feliz é uma questão para aqui e agora

A felicidade se acha é em horinhas de descuido – PeopleImages / iStock
Muitos entre nós vivemos em um estado de tensão constante, sempre tentando controlar situações de modo a que somente coisas boas nos aconteçam. É um esforço para que nada saia “da linha” e a vida siga conforme planejada e idealizada. A frustração – que inevitavelmente acontece – gera ansiedade levando-nos a redobrar o empenho
para controlar ainda mais as rédeas da vida. Um acontecimento repentino, sério e desastroso não apenas nos tira do prumo mas, devido à nossa insistência para que nossos desejos e planos sejam realizados, nos exaure. Enquanto isso, inconscientes do que provocamos com nossos complexos e do que a vida oferece ao largo, perdemos novas oportunidades, diferentes das sonhadas, mas que poderiam nos surpreender enriquecendo muito nossa qualidade de vida e bem-estar.
Afinal, é isso o que todos buscamos. Mas os caminhos para viver mais feliz com o que temos e sabendo quem somos nem sempre acontecem ao acaso. É necessário estar atento para percorrer a estrada do autoconhecimento. Questões simples, mas não superficiais, como “Quem somos nós?”, “Qual o sentido da vida nesse planeta?”, devem ser tratadas com profundo respeito. Vale ainda uma primeira instrução: “As pessoas podem ser felizes se abandonarem as ilusões”, afirma a psicóloga junguiana Denise Gimenez Ramos, professora titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP.
Segundo ela, por meio de ações singelas podemos mudar o nosso contentamento diário e ficar mais satisfeitos com a vida. Ações simples são atividades que nos colocam em paz e harmonia com a gente mesmo, em primeiro lugar. Para algumas pessoas, um momento de profunda paz interior é ir buscar o lho na escola. Para
outras, arranjar a agenda de forma a poder tomar o café da manhã e ler o jornal antes de partir para o trabalho. Há ainda quem escolha fazer um curso de literatura, bordado, cuidar do jardim.
Saber o que coloca você nesse movimento de fluxo consigo mesmo é de grande ajuda. E não é difícil. Denise conta que para se conhecerem é preciso que as pessoas saiam de um circuito fechado e pequeno em que vivem e que julgam como a única realidade existente. Nesse espaço que criamos,não temos consciência de que o
que nos cerca é infinitamente maior. “Ficando nesse mundinho, as pessoas pensam que é tudo sempre igual – o que, de fato, acaba sendo, porque nos repetimos neuroticamente”, aponta. Ao permanecer nessa pequena área, repetitiva e pouco criativa, nós não achamos saída para os nossos sofrimentos e acabamos nos deprimindo, sofrendo de ansiedade, de insônia, ou de problemas somáticos.
Mas tem um jeito de sair desse modelo engessado. Em primeiro lugar, parando de idealizar a felicidade como algo que ainda virá ou que já passou. Frases como “quando eu fazia aquela atividade é que eu era feliz” ou “quando eu emagrecer vou alcançar a felicidade” tendem a levar à autossabotagem frequente. Sem contar que
também são uma forma de se desresponsabilizar pelo ser feliz hoje. A vida não acontece em um ponto de chegada de uma corrida, onde estacionamos depois dos desa os. A vida é toda a trajetória, do começo até o m da partida, e em cada momento desse caminho é possível sentir-se bem. Aliás, o que é mesmo felicidade? Muitas vezes mitificamos esse sentimento, sem saber ao certo defini-lo. Viver com bem-estar e saúde e com liberdade de expressão, se encaixa lindamente nesse contexto.
Viver o presente
Focar no presente é vital. Por quê? “Porque é a única realidade que a gente tem”, destaca Denise Ramos. Do passado só temos a memória, e o que ca nela são apenas aqueles momentos em que houve emoção – o resto se perde no caminho. Do futuro possuímos menos ainda. A grande verdade é que só o presente nos pertence e nós usufruímos muito pouco dele. Passamos um tempo enorme idealizando, rememorando, e esquecemos que a felicidade só é real no aqui e no agora.
Para quem fica pensativo, questionando se não existem desvantagens em viver demasiadamente no presente, sem nostalgia daquilo que foi bom ou sem planejar o futuro, a psicóloga recoloca a questão: “Depende de que presente estamos falando”.
Obviamente, não devemos viver para ser felizes apenas no futuro, mas é preciso planejar o que fazemos da nossa vida a partir de desejos que temos hoje. “Por exemplo, eu não vou gastar todo o dinheiro que eu tenho em um só dia, porque eu preciso garantir casa e comida nos próximos. Vou me programar com base nas minhas condições para viver hoje e amanhã com o maior conforto possível”, diz Denise. Pensar nesse futuro é pertinente. Já o futuro que não merece ser vivido é aquele das
possibilidades incontroláveis, do medo e da angústia. “Jung dizia que as pessoas que vivem bem são aquelas que fazem planos de coisas boas que elas gostariam que acontecesse a elas no futuro: ‘Eu quero viajar’, ‘Quero comprar uma casa’, ‘Quero ter um filho’. A vida baseada em fantasias e no ‘só vou ser feliz quando (…)’ é a grande questão a ser evitada”.
Idealizar demais é ir na contramão da felicidade. É tirar do mundo concreto as ações necessárias para essa sensação de bem-estar vir de fato a acontecer. Além disso, se só fazemos planos e colocamos neles altas expectativas, nos predispomos a frustrações muito recorrentes. Podemos até adoecer por não saber lidar com o fracasso – alta da pressão, infarto, gastrite são algumas das respostas. Imprevistos – há os ruins, mas também os bons – acontecem o tempo todo. De banalidades como um carro que travou o seu no estacionamento, até uma doença grave ou briga familiar. A repercussão desses acontecimentos sobre nós pode ser temperada com uma mudança
de prioridades e perspectivas. “Às vezes, por um problema pontual as pessoas entram em uma tortura sem fim, sem perceber quantas bênçãos elas também têm”, destaca a psicóloga. Durante a vida, sacrificamos os finais de semana trabalhando para acumular dinheiro que só será gasto na aposentadoria, deixamos de comer coisas que amamos para atingir um padrão de beleza que não corresponde à natureza do nosso corpo, abdicamos de estar com as pessoas queridas por exaustão.
Passamos pela vida mornos, correndo atrás de um prêmio que talvez nem faça mais sentido quando alcançado. É claro, dar nossos pulinhos para alcançar um objetivo, enfrentar algum risco, dá, inclusive, tônus à nossa jornada. E é vital. Importante, no entanto, é manter bem calibrados os mecanismos que levam à busca da estabilidade.
Como? O princípio é claro: você não deveria ir contra a sua qualidade de vida. Para Denise Ramos, aqueles desejos que não podem ser realizados não precisam ser reprimidos, mas sim transformados, repensados ou reorganizados para manter nosso equilíbrio. E tudo bem vir um pouco de frustração de vez em quando.
Curioso é o exemplo que ela traz para destacar o quanto uma boa dose de decepção faz bem. Quando cumprimentamos um aniversariante, desejamos a ele “que só coisas boas lhe aconteçam”, mas, pense bem. De verdade, só queremos o belo, o fluido, o bom na nossa vida e na de quem queremos bem? Isso é felicidade?
Por que não desejamos boas experiências, desa os, descobertas? Outro cutucão importante: essa mensagem pasteurizada de que tudo vai bem e que enviamos uns aos outros diariamente, principalmente pelas redes sociais, não agrega muita coisa ao relevo da vida. Mas diz muito sobre como a concepção estreita que temos
da felicidade. É por isso que, em tempos de respostas imediatas, banalização dos afetos e dependência de aprovação da nossa imagem, o autoconhecimento se faz tão relevante.
Na busca de quem somos
Uma das vivências trabalhadas por Denise Ramos em seus cursos fala de sonhos. Segundo a psicóloga, eles trazem informações preciosas que servem de guia para o autoconhecimento. Certa vez, uma paciente disse ter sonhado que estava dirigindo um carro em alta velocidade e que passava entre duas leiras estreitas, batendo em todos os lados, amassando o carro, mas sem conseguir parar. “O sonho mostrou que ela estava fazendo algo muito inadequado, se machucando e que, se não revisse sua postura, algo grave poderia acontecer”, disse.
A máxima “Só sei que nada sei” é também muito adequada para quem está em processo maduro de autoconhecimento. Quando pensamos que já nos conhecemos o suficiente, podemos cair na armadilha da arrogância. Melhor ser humilde e manter o processo em evolução constante. Quanto mais nos conhecemos, mais sabemos que somos falíveis. E isso assusta menos. “A felicidade para mim é um estado muito calmo, pacífico, tranquilo”, conclui Denise. Parar de correr atrás dessa felicidade parece, paradoxalmente, atraí-la. Um descuido esperto.

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