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Corre-corre no trabalho. Até quando?

De tempos em tempos, somos chamados a uma certa aferição da vida que adotamos, inclusive no que tange à carreira escolhida. Estar em sintonia com as demandas internas ajuda a encontrar soluções para esses dilemas profissionais

Corre-corre no trabalho. Até quando?
Corre-corre no trabalho. Até quando? – Foto de Andrea Piacquadio no Pexels
Teresa tinha 43 anos quando deixou a carreira bem-sucedida na área de recursos humanos de uma multinacional onde trabalhava havia quase 20 anos. A decisão de mudar
ganhou força após ela tomar consciência da necessidade de recomeçar a atuar na área clínica, sua maior paixão desde a época da faculdade de psicologia na PUC de Campinas.
Não, essa não é mais uma daquelas matérias que buscam convencer o leitor a jogar tudo para o alto e mudar radicalmente de vida. Talvez isso aconteça naturalmente, como consequência de um processo, mas a intenção aqui é chamar a atenção para as nuances da satisfação pessoal. Não podemos ignorar que há momentos em que a vida nos pede uma mudança de postura. Segundo estudos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, quando adentramos na segunda metade da vida (que se inicia aproximadamente aos 35-40 anos), é natural sentirmos um chamado para escutar nossas demandas internas, aquela vontade quase atrevida de ser feliz. “Se seguirmos na mesma diretriz da primeira metade da vida, de busca incessante de sucesso e reconhecimento, provavelmente vamos desenvolver um desconforto, algum sintoma angustiante que nos avise que talvez não seja esse o caminho”, alerta o especialista em terapia junguiana Marcelo Jordão.
Esse processo, muitas vezes, afeta a vida profissional. Marcelo conta que, em seu consultório, relatos de ansiedade em relação ao futuro da carreira e ao acúmulo material, o medo de perder o emprego, são muito frequentes. Problemas de relacionamento no ambiente de trabalho, como a dificuldade de lidar com o chefe ou os colegas (especialmente os mais novos), são ainda mais mencionados por pacientes que estão nesse momento de transição ou que já se encontram na segunda metade da vida.
Etapas da vida
No livro A Natureza da Psique (ed. Vozes), Jung descreve as nuances psíquicas ao longo da vida. De acordo com o pai da psicologia analítica, há um intenso processo de transformação quando atingimos os 35-40 anos – tão intenso que pode ser comparável à variação da intensidade solar na passagem do período da manhã para a tarde. “Precisamente ao meio-dia, o Sol começa a declinar, e esse declínio significa a inversão de todos os valores e ideais cultivados durante a manhã. O Sol torna-se, então, contraditório consigo mesmo. É como se recolhesse dentro de si seus próprios raios, em vez de emiti-los”, metaforiza o teórico.
A manhã – leia-se, a primeira metade da vida – se caracteriza pelo desenvolvimento do indivíduo. Há uma sede por conquista e reconhecimento nessa fase. A pessoa procura ser funcional e útil para a sociedade. E a mensagem predominante pode ser traduzida como “vá e conquiste”. “Os sonhos dessas pessoas jovens, inclusive, costumam expressar um chamado interno para que esse indivíduo vá para o mundo, faça coisas, conquiste”, relata Marcelo. Ao mesmo tempo, dúvidas muito profundas do tipo “será que eu devo?”, segundo ele, podem indicar medos de enfrentar o mundo, encarar desafios ou assumir compromissos. Já a segunda metade exige uma nova postura psicológica. “Sentimos a necessidade de olhar para dentro e identificar quais são as outras aventuras a serem vividas, especialmente do mundo interno. Isso não é uma regra ou exigência, mas tende a acontecer”, esclarece o especialista junguiano. Também nessa fase, é frequente a ânsia por resolver questões que foram deixadas de lado durante a primeira etapa. A mensagem desse período pode ser sintetizada pelo mote “avalie e reconsidere”. Portanto, cautela e capacidade de reflexão são as qualidades da vez para serem colocadas em prática.
A travessia
Mas, claro, as etapas não são estanques. As necessidades de expansão e introspecção coexistem durante toda a vida. O que acontece é uma ênfase maior em um desses aspectos a cada fase. “Completamente despreparados, nós damos o passo em direção à tarde da vida. Pior ainda, nós damos esse passo com o falso pressuposto de que as
nossas verdades e os nossos ideais vão nos servir como nos serviram até hoje. Mas não podemos viver na tarde da vida de acordo com o programa da manhã da vida. O que foi ótimo na parte da manhã, será muito pouco à tarde, e o que de manhã era verdade, à noite terá se tornado uma mentira”, alerta Jung em trecho da célebre obra citada anteriormente.
A transição não é abrupta, e muito menos imposta. “O indivíduo naturalmente vai sentir vontade de se desenvolver em outros assuntos”, esclarece Marcelo. No âmbito profissional, isso não quer dizer que há necessidade de pedir demissão, mas talvez seja hora de uma revisão de valores a ponto de o desenvolvimento profissional e econômico se tornar menos importante. “É comum pessoas que não querem parar de crescer profissionalmente ou que desejam sempre chegar mais longe apresentarem sonhos compensatórios nos quais há um pedido para elas desacelerarem”, revela o especialista.
Como exemplo, ele nos conta o caso de um alto executivo do setor financeiro que começou a ter um sonho repetitivo a partir dos 45 anos. Nele, descia até um porão de sua empresa (que não existia na vida real) e encontrava uma criança que cava muito feliz em vê-lo, pois estava presa havia muitos anos. “Durante o processo terapêutico, o homem notou que essa criança era ele mesmo quando mais jovem e percebeu que um potencial seu, profissional, estava reprimido. Havia a necessidade de resgatá-lo e integrá-lo ao seu dia a dia”, analisa o terapeuta. O medo do fracasso ou do julgamento alheio é, muitas vezes, um dos fatores que mais pesam para as pessoas não atenderem a esses chamados internos. Também os valores predominantes na sociedade relacionados ao sucesso material e ao status social dificultam a busca por caminhos mais coerentes com as demandas internas.
No caso da Teresa, que conhecemos no início deste texto, a transição não culminou na mudança de profissão, apenas numa adequação de sua área de atuação. Mas é cada vez mais frequente encontrarmos pessoas que desejam ou que já mudaram de carreira e estão satisfeitas com a decisão: advogada que virou artista; arquiteto que se tornou engenheiro; jornalista que agora é chef de cozinha. Há uma infinidade de exemplos, o que evidencia que há também in nitas possibilidades de caminhos. A escolha de qual trilha seguir é sempre uma resposta individual às vontades, por vezes, mais profundas de cada ser. Nesse sentido, é sempre reconfortante lembrar a fala do personagem Riobaldo na obra Grande Sertões Veredas, de Guimarães Rosa: “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
 
Mapeando o sofrimento
Os conflitos podem surgir de um descompasso entre a mudança das necessidades internas e a continuidade das cobranças externas (ou até internas). Pesadelos, angústias, ideias obsessivas e pensamentos negativos constantes podem ser indícios desses embates. “As pessoas tendem a reprimir esses sintomas. Mas, em vez de reprimi-los ou ignorá-los, é melhor procurar entender o que eles estão querendo dizer”, aconselha Marcelo. “Essa é uma tarefa hercúlea, porque ninguém gosta de saber
os aspectos conflitantes que estão dentro de nós. Preferimos acreditar que estamos bem sempre”, diz ele. Apesar do alto grau de dificuldade de nos depararmos
com os conflitos, é ainda mais arriscado colocar debaixo do tapete algo que já começou a apresentar problemas. “Provavelmente, a pessoa vai perder a vontade de trabalhar ou até ter um colapso de tanto reprimir os elementos contraditórios dentro dela”, alerta o especialista.
Se você está realmente disposto a desvendar esses sintomas, uma primeira atitude pode ser tomada em casa. Marcelo indica parar cerca de dez minutos por dia e tentar mapear essas angústias. “Podemos nos perguntar: ‘Como estou me sentindo? O que aconteceu para eu me sentir dessa forma?’ E anotar tudo, porque o ato de escrever nos permite ir mais a fundo em nossos sentimentos e conflitos”, recomenda. Escrever aumenta a nossa concentração e diminui a autocensura – que tenta, por exemplo, nos fazer acreditar que o motivo de nosso mal-estar é o trânsito ou uma comida estragada. “Essas são tentativas internas de bloqueio daquele assunto incômodo”, avalia o terapeuta. Se o seu desejo for realmente mudar de carreira, a sugestão é tentar perceber e compreender o que está causando sofrimento na sua atividade atual e buscar respostas para alguns questionamentos: “Como posso equilibrar minhas contas? Que tipo de carreira pretendo desenvolver?”
“Essas perguntas não são feitas com o intuito de descobrir a resposta certa, mas abrir portas a um exercício de sempre se questionar e estar em sintonia com as demandas internas”, diz Marcelo. “Esse ato de reflexão nos ajuda a ter insights importantíssimos que nos levam a novas posturas e caminhos”, complementa. É o primeiro passo de um processo profundo, que pode ser demorado e, em algum momento, exigir um acompanhamento terapêutico até. “A psicologia decepciona bastante os mais práticos e sempre vai decepcionar, porque ela trata do mundo interno. Costumo brincar com os clientes que, se eles estão pensando em uma utilização imediata do que vai ser aprendido na terapia, estão tomados por uma sede de poder”, avisa o especialista que ministrará o curso Desafios Psicológicos do Mundo do Trabalho na Segunda Metade da Vida, a partir de 12 de setembro na Associação Palas Athena, em São Paulo.
Sol-te
A Teresa, que estava desmotivada com seu trabalho e cansada das longas jornadas, ficou satisfeita com suas novas possibilidades. Ela queria continuar atuando na psicologia, então, alugou uma sala para atender e deu início a vários cursos para aprimorar o conhecimento sobre o novo ramo. É bem verdade que o caminho ainda apresenta alguns percalços. Para complementar a renda, ela precisa se dedicar a outras atividades paralelamente ao trabalho clínico. Mas, muito além das vantagens na área profissional, Teresa considera que a mudança foi positiva e trouxe outros benefícios, como poder dedicar mais tempo a suas duas filhas e ter maior autonomia no dia a dia com horários flexíveis.
Curiosamente, um dos maiores encantos de Teresa quando deixou a multinacional foi a redescoberta do convívio com o Sol. Seguindo a metáfora de Jung, a profissional já não mais se assemelha ao Sol que queima ao meio-dia, mas certamente se sente mais confortável com sua luminosidade. “Depois de haver esbanjado luz e calor pelo mundo, o Sol recolhe seus raios para iluminar a si mesmo”, conclui Jung. E que bonito é poder vivenciar e apreciar um belo entardecer.
Angústias e insights
O terapeuta junguiano Marcelo Jordão indica questões que podem nos ajudar a iniciar o processo de autoconhecimento. Escolha o sintoma que mais o incomoda e siga o roteiro das perguntas propostas. E, lembre-se, o resultado é muito mais se, em vez de simplesmente refletir a respeito, você se concentrar para escrever as respostas.
Sintoma: Dificuldade em sair da cama para ir trabalhar
Reflexões: Isso sempre foi assim? Estou desmotivado? Tenho o mesmo problema nos nais de semana? Há algum problema com meu chefe? Será que estou cansado de alguma atribuição? O que eu gostaria de fazer nessa empresa se pudesse escolher qualquer coisa?
Sintoma: Ansiedade para que o tempo voe dentro do local de trabalho
Reflexões: Estou arrumando qualquer desculpa para as pausas (café, banheiro, cigarro, redes sociais)? Estou descontando na comida na hora do almoço? O que será que me falta? Convívio entre amigos? Mais diversão? Sempre me comportei assim? Consigo associar essa ansiedade com alguma atribuição recente que não me sinto confortável em executar? Por quê?
Sintoma: Angústia com o futuro profissional
Reflexões: Estou pressionado pela competição? É a competição dos mais novos? Quais são minhas prováveis de ciências profissionais? Elas sempre estiveram
presentes ou já me senti confiante antes? O que mudou? O que teria de mudar para que essa angústia desaparecesse? Estou exagerando em minha dedicação porque estou angustiado?
Sintoma: Dificuldade em parar de trabalhar (pessoas consideradas workaholics)
Reflexões: O que realmente aconteceria se eu tivesse de desacelerar? Será que estou querendo compensar alguma de ciência com tanto esforço? Será que evito a vida familiar e social com essas longas horas no escritório? Noto algum orgulho quando reclamo para os outros sobre o quanto trabalho? Como será quando me aposentar? Tanto esforço pode esconder um medo da velhice?

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