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Quando as cartas falam

Ao abrir o coração para a energia feminina e para a história oculta das mulheres no misticismo, Elisa Riemer criou o Nosotras Tarot, um jogo interpretado por Paula Mariá que pede o exercício de um olhar atento, para fora e para dentro

A Imperadora revela a simbologia escondida da águia – Elisa Riemer

“A fuga de si é uma ilusão. Conscientes ou não, manifestamos em cada um dos nossos atos a nossa essência.” Com essa mensagem, Elisa Riemer inicia a pequena cartilha que acompanha a sua nova e mais forte criação: o Nosotras Tarot – Uma Viagem ao Útero Cósmico, com foco na ancestralidade e no feminino. Diferente de outros baralhos, este não nos recebe com dados históricos sobre o surgimento do tarô, nem com estatísticas sobre o crescimento do interesse por assuntos místicos na década atual, mas com uma lembrança simples porém árdua de encarar ao longo da vida. “Você é quem é e não há máscara capaz de te livrar disso. Você transparecerá nas pequenas expressões, nos atos falhos, no sintoma físico de uma doença que vem te lembrar de sua sombra, nas cartas, na mesa”, provoca o livreto em sua introdução. Elisa, artista gráfica e colagista de Paranavaí, interior do Paraná, construiu sua arte nesse tarô em meio à própria autodescoberta, passagem que levou dois anos de concepção artística e de contato com as cartas e com ela mesma. “O processo de criação desse baralho foi de muita transparência e paciência, uma viagem para dentro de mim e das minhas próprias limitações. As cartas foram se abrindo a seu tempo e, conforme me permitiam criar [por meio de tiragens mensais], eu construía”, conta. A jornada, feita ao lado da jornalista, astróloga e taróloga Paula Mariá – que traduziu em palavras as ilustrações –, deu origem à primeira edição do Nosotras Tarot no Brasil, formada pelas 22 Arcanas Maiores, expressões que compõem a Jornada do Herói no tarô sob a ótica feminina. Como resultado, cartas que expressam respeito e devoção à arte do tarô e à origem do mundo: as mulheres. 

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A jornada “O tarô é um espelho e reflete seu mundo interior. Você não pode fugir dele. As cartas não falham e nunca mentem, até mesmo diante da maior inocência ou do desconhecido”, afirma Paula Mariá. Ao se deparar pela primeira vez com um baralho de tarô, muitas dúvidas podem surgir. Como se abrem as cartas? Com qual mão? Dá sempre certo mesmo? De acordo com a taróloga, não há uma maneira errada de tirar tarô, pois as cartas se comunicam de forma intuitiva com quem as consulta e sempre irão refletir sua verdade interior. A grande questão é saber se a pessoa está pronta para olhar para si. Não importa se é abrindo um completo e complexo jogo de tarô, se é virando apenas uma “carta conselho” ou se é jogando o clássico esquema de três cartas com passado, presente e futuro: em todas as formas é preciso coragem e honestidade para lidar com um reflexo sincero da própria alma. No início, é importante procurar referências e interpretações (algumas são encontradas na cartilha de Nosotras) para ajudar no princípio da jornada interior. Mas, de modo geral, cada um dos simbolismos que existem nas cartas já traz em si o caminho para decifrá-las em suas mensagens ocultas, lembrando que o jogo não determina ou influencia o rumo dos acontecimentos, mas indica aquilo que, de acordo com as circunstâncias, é mais provável que aconteça. “O tarô, em cada uma das suas cartas, alterou minha relação com meu inconsciente e com minha intuição”, conta Elisa, que, antes de iniciar sua jornada com as cartas, não havia tido nenhum contato mais estreito com a espiritualidade em geral. “Sou uma pessoa naturalmente cética e, por isso, sinto como se o tarô tivesse me escolhido, e não o contrário”, considera. O primeiro contato da artista com as cartas foi em 2014, quando estava ao lado de um amigo muito importante em sua vida. “Na minha primeira vez tirei A Lua e fiquei hipnotizada, extremamente curiosa com as imagens e com tudo o que ela envolvia.” Na interpretação de Paula Mariá, em Nosotras, essa carta está ligada ao inconsciente e seus segredos, à necessidade de olhar para dentro e navegar por entre a escuridão, trazendo seus medos, desejos e sentimentos ocultos para a luz. No segundo e no terceiro mês, Elisa tirou A Lua novamente. “Nesse momento, me dei conta de que precisava me render a essa energia tão forte e comecei a criar a primeira arte do baralho: A Lua.” Depois disso, passou a produzir as outras cartas seguindo sempre o caminho que lhe surgia e, de forma involuntária, compreendeu que era o início da sua jornada. Da Lua, Elisa foi para O Mundo, e se viu chocada, pois esta carta trouxe a conexão de uma mulher tranquila, dançando no centro de tudo, com todas as forças que regem o universo: sabedoria, emoções, matéria e espírito. Nesse momento, a artista percebeu que não poderia intervir no tempo e que precisava valorizar sua intuição e perder um pouco o controle de tudo. Sentiu que sua grande missão com o tarô era materializá-lo de uma forma que nunca havia sido feita: “A minha forma”, esclarece, passando a criar suas cartas conforme apareciam. Em jogos, sonhos e associações espontâneas, os símbolos foram se revelando em uma sintonia mágica entre arte e artista e o projeto tomou forma vagarosamente. “A criação demorou justamente porque eu esperei que todas as cartas viessem até mim para que eu pudesse vivenciar, de fato, cada processo. Respeitei, antes de tudo, o tempo do tarô”, afirma. Uma das cartas mais marcantes durante sua jornada foi A Dependurada, que está ligada aos sacrifícios necessários, aos carmas e às paralisações frente aos desafios. Um dia depois, quando ainda estava se preparando para descobrir como seria viver aquela mensagem, Elisa quebrou a mão. “Tenho um pouco de medo da Dependurada”, confessa. A jornada trouxe à artista um contato maior com suas emoções e fragilidades, ou, como ela própria diz: “Uma aceitação de mim”.

O tarô e as mulheres Todas as cartas de Nosotras Tarot falam sobre o arquétipo feminino, e isso tem razão de ser. Ativa no cenário atual de militância feminista, Elisa Riemer coloca em suas imagens toda a sensibilidade da arte de adentrar seu próprio universo. “O baralho fala sobre o feminino e o que é ser mulher, mostrando quem fomos, quem somos e quem seremos daqui para a frente. É um resgate do papel da mulher na história da arte”, explica. Suas cartas celebram a ancestralidade e as primeiras mulheres que trabalharam com o ocultismo e com a própria arte do tarô, conhecidas como fortune tellers (leitoras da sorte ou da fortuna). Entre as nascentes que envolveram esse trabalho, está a vida da artista plástica Pamela Colman Smith (1878-1951), responsável pelos leves e luminosos desenhos executados no tarô inglês de Arthur Edward Waite (1857-1942), um dos mais conhecidos baralhos contemporâneos. “Sinto uma grande paixão pela Pamela Smith. O que ela concebeu mudou totalmente a história do tarô. Quem era aquela mulher que criou um baralho dentro de uma sociedade totalmente machista, em uma época com grandes personalidades no meio esotérico? Pouco se falava sobre ela, mas me infiltrei em sua vida e virou inspiração”, afirma Elisa, que descreve uma história em sua cartilha: “Desde a inquisição, os conhecimentos das mulheres têm sido perseguidos e marginalizados em uma tentativa de exterminar o que há de mais poderoso em nós. Éramos deusas. Glorificadas pela nossa capacidade de gerar vida, de dar aos campos fertilidade, de cuidar, curar e criar. Era nossa a medicina natural, vivência artística e conhecimento dos mistérios do universo. Aos poucos, fomos afastadas umas das outras e,consequentemente, de nós mesmas. Hoje traçamos lentamente o caminho de volta à nossa verdade interior”. Para ressignificar esse universo e as estruturas contempladas por ele (tivemos Imperadoras, tivemos Papisas!), a artista busca fundir em suas imagens as nuances entre masculino e feminino e representar as energias que coabitam os corpos de cada ser. “O equilíbrio entre o feminino e o masculino é a principal mensagem que desejo transmitir na utilização desse baralho”, comenta. Embora recente, a luta de Elisa pelos direitos das mulheres no mundo já levou sua arte a expandir fronteiras, sendo capa do livro francês Histoire de l’Art d’un Nouveau Genre, de Anne Larue, e da edição italiana Come as You Are – Risveglia e Trasforma la Tua Sessualità, de Emily Nagosky. Além disso, seus trabalhos têm sido utilizados em eventos de ginecologia natural, entre outros projetos nacionais e internacionais que envolvem o princípio feminino, o universo místico e seus efeitos nas relações humanas. No tarô, a mensagem de Nosotras é clara: uma viagem ao útero cósmico, aquele que dá a vida e que também oferece retorno. Cada carta é um nascimento concebido pelas mãos de uma mulher e gestado pelo contato com muitas outras mulheres, tanto as que vivem fora quanto as que pulsam dentro de cada uma de nós.