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Resgate de utopias

O desejo de transformar o mundo por meio de ideias, gestos e atitudes não é novo. Está na gênese humana a vontade de melhorar o lugar em que vivemos. Chegaremos lá?

Resgate de utopias – Intervenções fotográficas: Dandara Hann
Para que servem as utopias? Foi essa a pergunta que o escritor uruguaio Eduardo Galeano e o diretor de cinema argentino Fernando Birri escutaram de um jovem colombiano durante uma palestra em uma universidade de Cartagena.
De maneira pedagógica, Birri falou que a utopia é como a linha do horizonte. A cada dez passos que damos em sua direção, ela se afasta dez passos de nós. Damos mais dez passos, mas o destino desejado, sempre fugidio, segue à mesma distância. Para que as utopias servem, então? Para nos fazer andar.
Há tempos, no entanto, parece que uma densa névoa feita com a brutalidade do dia a dia obnubila nossos sonhos. Não é preciso explicar a frustração geral das pessoas com sua própria vida e com nossas perspectivas como sociedade. De mudanças no clima à corrupção, de desigualdade social ao fundamentalismo religioso, da solidão à intolerância política, são tantas e tão complexas as questões que nos afligem que é mais fácil enxergar um céu cinzento repleto de problemas do que um horizonte pródigo em esperanças.
Na perspectiva de que “está ruim e não vai melhorar”, cresce o desânimo e a indiferença, e é comum abandonarmos as utopias. Mas esse é o momento em que elas se fazem ainda mais necessárias. Precisamos delas para não paralisar ou enfraquecer diante das decepções do presente e para satisfazer a exigência incurável do ser humano que consiste em acreditar que o futuro será melhor. “É uma força sedutora, uma necessidade fisiológica e psicológica universal”, diz Basilio Pawlowicz, filósofo e educador, cofundador da Associação Palas Athena.
 “Um mapa do mundo que não inclua a Utopia não merece uma olhada sequer porque omite justamente o país em que a humanidade está sempre desembarcando”, escreveu o irlandês Oscar Wilde.
O que são as utopias
“As utopias são idealizações da vida em sociedade. Elas imaginam ‘civilizações perfeitas’ e, portanto, relações humanas capazes de construir uma cidade provedora
das necessidades de seus habitantes”, explica o professor George Barcat, da Associação Palas Athena. Do grego topos, que significa lugar, e com o prefixo u, que quer dizer nenhum, utopia indica algo que acontece em um espaço e tempo que não existe (ainda), ou que não conseguimos alcançar (ainda). Pode ser um futuro a ser buscado, um sonho ainda não realizado, uma fantasia, uma esperança muito forte.
O termo foi cunhado pelo escritor inglês Thomas More (1478-1525) para intitular um livro no qual idealiza um país (chamado Utopia) onde todos os cidadãos vivem em cooperação. More se inspira em A República, de Platão (380 a.C.). “Na obra, o filósofo grego imagina uma civilização rigidamente estruturada em classes (artesãos, guardiões etc.) e governada por um rei-filósofo dotado da capacidade de materializar na cidade as ideias de Bem e Justiça”, destaca Barcat. Da mesma forma, More
concebe uma sociedade alternativa à encontrada na Inglaterra governada por Henrique VIII. Essa nova sociedade seria regida por um Parlamento ocupado em garantir ao povo os benefícios da paz e do que hoje chamamos justiça social. “Nessa configuração, era necessário interditar a ganância e a paixão pela glória militar, também seria preciso rever as ideias de propriedade individual e do dinheiro e, sobretudo, combater a intolerância e o fanatismo religiosos”, esclarece o professor.
Idealizações que nos definem
Em nossa sociedade ocidental, temos um conjunto de utopias (ou idealizações) que define quem somos. O mito de criação do mundo monoteísta, do pecado original e a expulsão do paraíso, por exemplo, carrega uma carga simbólica que impacta diretamente nossa personalidade social. Assim como a noção de céu e inferno, crença de que teremos uma eternidade de deleite ou sofrimento de acordo com as nossas ações no presente. Diferentemente do hinduísmo, por exemplo, que acredita que reencarnaremos sucessivas vezes, nas tradições monoteístas teremos apenas uma chance para acertar ou errar. E é nessa única chance que decidiremos nosso destino.
Outra idealização contemporânea a que fomos submetidos é a de que o desenvolvimento tecnológico resolveria todos os problemas humanos, sem afetar nossas ambições. Criaríamos mecanismos e sistemas que fariam toda a parte desagradável e burocrática da vida, ampliando o tempo livre para nos dedicarmos a prazeres como viajar, conviver com aqueles que amamos, descansar, refletir e criar. Em suma, colocaríamos as máquinas para trabalhar por nós. Mito poderosíssimo,
que nos impulsiona a avançar tecnologicamente a uma velocidade extravagante. Ao que parece, contudo, não estamos preenchendo o tempo economizado a partir
dos avanços tecnológicos com os deleites da vida,
e sim com mais trabalho.
Já idealizamos pelo caminho errado. O filósofo alemão Walter Benjamin identificou alguns movimentos “de avanço” do mundo material como o oposto da utopia. A capacidade de detonar bombas só pode representar uma evolução que caminha para o desastre. Assim como quando a história tenta provar a hegemonia de uma raça. Essa antiutopia, uma ficção que representa a antítese da utopia, em geral, é representada pelo totalitarismo e pelo autoritarismo. Utopias são construídas com a matéria-prima da nossa realidade, mas a transcendem e também são uma forma de poder, pois encantam – às vezes para o mal. “Muitos desses projetos utópicos levaram a
loucuras coletivas. Mas não podemos nos esquecer dos muitos outros que zeram contribuições altamente benéficas, despertando as sociedades de sua letargia”, conta Pawlowicz.
A unidade na convergência
Sonhar é uma habilidade que se aprende, um músculo que se fortalece com o treino. Além de trazer esperança, torna mais robusto o senso de comunidade. Grupos que se sentem ameaçados encontram uma unidade e uma sobreposição da convergência sobre a divergência, inexistente antes do risco.
Talvez seja o combate ao aquecimento global a utopia coletiva do século 21. As previsões do que o aumento da temperatura tende a provocar no planeta demanda de nós a redução no consumo e a mudança de hábitos e valores. Um sonho que batalha contra a visão individualista de felicidade como fruto único e exclusivo do trabalho individual. Muitos pensadores, intelectuais e filósofos dedicam-se, com paixão, a estruturar sonhos a partir da busca por valores e princípios que nos engrandeçam.
Construir narrativas e histórias sobre modelos emergentes de desenvolvimento e equidade social, novos modelos de negócios colaborativos e sustentáveis e novas
formas de participação política são os que tecem um horizonte de destino mais desejável.
Outras pessoas atuam pela porta dos fundos da filosofia, como define o professor Basilio ao se referir a místicos, espiritualistas e mitólogos que alimentam o espaço dos sonhos com aquilo que está “quando cessam os excessos da fé e da razão”. “A minha utopia é que os sábios e os santos voltem a caminhar entre nós”, costuma dizer. E faz seu exercício nesse sentido. Pois, assim como nós, as utopias que não se movimentam adoecem. E são os aprendizados do percurso que as movem para o novo.
“Imaginada ou praticada humanamente, [a utopia] pode nos ensinar o valor duradouro do amor, do respeito e do indivíduo, do excêntrico e do incomum. Abusada, revela paixões sombrias, e pode testemunhar uma massa enfurecida, estimulada por uma ideologia de igualitarismo extremo vingativo, capaz de um derramamento de sangue”, afirma Gregory Claeys no livro Utopia – A História de uma Ideia (Edições Sesc).
Há muitos mundos no mundo. E, nesse, já se disse, há um outro possível. Em nosso socorro podem vir as coisas que ainda não existem. Bússolas a nos guiar em busca de terra melhor.
O professor Basilio Pawlowicz vai ministrar o curso Utopias Modernas, em agosto, na Associação Palas Athena. Visões mitológicas e religiosas que asseguram a necessidade desse pensamento hoje.
Para saber mais: palasathena.org.br

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