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Essa música é meu mantra

Invisível e ao mesmo tempo onda física, a música acaba se tornando um delicioso meio de transporte. Transcendemos a realidade ordinária das coisas e viajamos no espaço e no tempo até pousar no colo dos dias e lugares mais felizes

Essa música é meu mantra – Getty Images
A música embeleza a nossa vida. Algumas têm o poder de transformar o dia e até mudar o nosso humor. Às vezes, ao primeiro acorde. Muitas são trilhas sonoras de nossas histórias demonstrando na seleção de temas por quais caminhos andamos até chegar aqui. Representantes de um tempo, ajudam a dar mais vida aos personagens e ao enredo de um filme. Contam as emoções que aquela pessoa já viveu – silenciosa ou escancaradamente, como no filme O Casamento do Meu Melhor Amigo, quando Ruppert Everett começa a cantar I Say a Little Prayer for Y You para a personagem de Julia Roberts e o restaurante inteiro onde estão é contaminado pela canção e faz coro com ele.
Música é ritmo, um-dois, um-dois, um-dois, por isso organiza e faz a gente ir encontrando o próprio ritmo. Pela capacidade de nos tocar tão profundamente, relaxa, acalma e ajuda a diminuir o estresse, estimulando o cérebro a produzir endorfinas, substâncias que promovem a sensação de bem-estar.
Cerca de 2,5 mil anos atrás, o filósofo grego Platão já frisava a virtude dos sons ao aprimorar o caráter, a saúde e o raciocínio. Mas, de acordo com o professor Raul Brabo, coordenador dos cursos de graduação e pós-graduação na FMU em São Paulo, a única faculdade de musicoterapia da cidade, as primeiras pesquisas feitas sobre
o efeito terapêutico da música em nossa vida surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial. Médicos americanos notaram que os soldados feridos que ouviam música se recuperavam mais rápido do que os que não ouviam. Havia rádios ou mesmo profissionais da área da saúde que tocavam instrumentos para os pacientes traumatizados
e feridos. Assim, ao final da guerra, os Estados Unidos iniciaram uma investigação mais criteriosa e embasada sobre a forte influência da música em nosso estado emocional e como usar isso a favor da saúde.
“A audição é o primeiro sentido a interagir com o mundo externo. É por volta da metade da gestação que o feto passa a ouvir sons filtrados pelo líquido no qual está envolto”, afirma Brabo. No nascimento, além de sair do conforto do útero, o bebê muda sua audição: sai do meio líquido e passa para o meio aéreo e assim muda a
sua percepção. Por isso é popular a teoria de que é bom para o bebê a mãe colocá-lo apoiado ao colo e cantar para ele. “É próximo ao colo que está o timbre da mãe, som de sossego, segurança. Sinal de que tudo está bem”, continua o profissional.
Com o tempo, essa identidade sonora vai sendo diversificada, ganhando significado. Conheço quem aperta os olhos e abre um sorriso imenso toda vez que ouve a guitarra de Pepeu Gomes no arranjo de Menino do Rio que fez para Baby cantar. Ocorre um “calor que provoca arrepio”, como diz a canção. Também vejo os olhos de uma geração se encherem de recordações ao ouvir “O meu pai era paulista / Meu avô, pernambucano / O meu bisavô, mineiro / Meu tataravô, baiano / Vou na estrada há muitos anos / Souumartista brasileiro”, letra de Paratodos, de Chico Buarque. Um pouco mais além, a mesma letra ainda dá a receita do que a música pode fazer por nós: “Creia, ilustre cavalheiro / Contra fel, moléstia, crime / Use Dorival Caymmi / Vá de Jackson do Pandeiro”.
Contra a exaustão e a tristeza, o fim de um relacionamento, ou o pior dia da nossa vida, quando tudo, tudo dá errado, desde o chuveiro que quebrou ao celular que pifou, também é possível apelar para o poder regenerador da música. Como um mantra, ela vibra dentro de nós, oxigena o espírito e nos transporta instantaneamente para lugares mágicos. “Sem música, a vida seria um erro”, disse Friedrich Nietzsche. Afim de sabermos um pouco mais sobre essa arte de nos transportar para um estado mais feliz, entrevistamos alguns adictos musicais:
Música: Qualquer uma dos Beatles
Quem diz: Alexandra Spallicci, estilista e proprietária da Honey Pie, 26 anos
Por que essas músicas são um mantra em sua vida? Como típica geminiana, não tenho uma música só como mantra. Às vezes passo alguns meses sem ouvir, mas quando coloco para tocar é sempre a mesma sensação deliciosa. Acho que a banda me marcou bastante pois comecei a gostar quando era adolescente e fui crescendo ouvindo todas as músicas dos dez discos que tenho deles. Gosto muito da evolução que eles tiveram conforme os anos de banda foram passando, gosto desde a fase mais pop com letras simples até as maluquices do final. Talvez seja a diversidade de estilos e letras que eles têm na discografia que me atrai tanto, tenho um “mood” para cada música. São tantas sensações quando ouço que não consigo descrever, só sei que é bom!

Música: Não sei se poderia dizer que existe “a” minha música-mantra, pois seriam várias, mas uma canção que se encaixa bem nesse sentido é Oração do Tempo, de Caetano Veloso
Quem diz: Lauro Henriques Jr., escritor, 43 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Porque me acompanha como um bom amigo que está sempre a meu lado quando preciso. A principal sensação é uma mistura de calma e confiança, de que tudo na vida tem seu tempo. Estes versos resumem bem essa sensação: “Peço-te o prazer legítimo / E o movimento preciso / Tempo, tempo, tempo, tempo / Quando o tempo for propício / Tempo, tempo, tempo, tempo”.
Música: Ain’t No Mountain High Enough, de Marvin Gaye
Quem diz: Soledad Cifuentes, designer, 35 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Ela me traz alegria e esperança. Costumo dizer que a ouço desde que estava no útero da minha mãe porque meus pais colocavam a música para a “barriga” dela escutar, quando estava grávida. Além disso, desde cedo com meu avô, que era músico jazzista, aprendi a viver a música na
alma e criar a trilha sonora da minha vida.

Música: Paradise City, do Guns’n Roses
Quem diz: Daniel Motta, diretor de arte, 35 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Outro dia eu estava assistindo a um documentário de um músico que gosto bastante e ele explicava seu amor por astros do rock como Chuck Berry e Little Richard – que surgiram quando ele era um adolescente. Ele disse que nenhuma música vai te trazer mais conforto na vida do que aquela que você conheceu quando tinha 12 ou 13 anos. Eu comecei a ouvir Guns n’ Roses um pouco antes disso, quando tinha uns 11 anos. Nessa época, eu e meu irmão almoçávamos cedo, por volta das 11h30, porque estudávamos no período da tarde, morávamos em Moema e a nossa escola cava na Aclimação, então esse trajeto
tomava quase uma hora. Nós fazíamos o prato e sentávamos na frente da TV pra assistir a Clip Trip, programa que exibia clipes antes de a MTV chegar ao Brasil. O problema é que eles passavam qualquer coisa. A gente tinha que amargar um bloco inteiro de New Kids on e Block e A-ha para chegar ao que realmente interessava: Guns n’ Roses! Todo mundo cria pequenos hábitos para se sentir confortável – três gotinhas de adoçante no café, o caminho mais agradável até o trabalho, filé com fritas na hora do almoço. É normal, todo mundo precisa de uma dose de acolhimento por dia. Quando eu tenho que enfrentar uma situação nova, ainda desconfortável,
eu acho bom ter algo familiar por perto. Tem gente que tatua alguma coisa para nunca se esquecer de um sentimento ou pessoa. Eu ouço Paradise City. Aliás, hoje devo ouvi-la em algum momento porque é o meu primeiro dia em um trabalho novo e, provavelmente, vou precisar de um pouco de conforto.
Música: Chega de Saudade, de João Gilberto
Quem diz: Kiko Perrone, 45 anos, cantor e músico
Por que essa música é um mantra em sua vida? Todas as músicas que o João Gilberto cantou e gravou na primeira fase da sua carreira, entre 1958-1962, são mágicas para mim, pelos arranjos minimalistas do Tom Jobim. Mas essa é especial. Me traz paz de espírito. Já ajudou a aliviar muitos momentos de depressão, angústia e ressaca.
Música: Eu Sei Que Vou Te Amar, de Tom Jobim
Quem diz: Claudia Troncon, designer de luminárias, 64 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Desde que conheci a bossa nova, Tom Jobim sempre me trouxe ternura.
Música: Comptine D’un Autre Éte, de Yann Tiersen, muito conhecida por quem assistiu e gosta do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
Quem diz: Thaysse Bettin, atriz, 28 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Várias músicas fazem parte da minha vida e marcaram grandes fases ou momentos. Elas me inspiram, curam, me conduzem a sensações que eu quero relembrar ou experimentar, sejam “boas” ou “ruins”. Essa, em especial, tem o som do piano. Ele dá vida a uma melodia que, pra mim, é uma das mais bonitas e inspiradoras que eu já escutei. Algumas pessoas podem achá-la triste. No meu caso, transmite paz e inspiração, típica de quando você se conecta consigo mesma e com o Todo, em um momento de meditação. Ela também aciona a liberação de uma dose de alegria e gratidão que nem sempre encontro naturalmente no dia a dia. De alguma forma inconsciente ela me diz: “Thaysse, a vida é linda”.
Música: O Sol Nascerá, de Cartola
Quem diz: Verônica Valença, dona da pousada Vila do Patacho, 47 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Me traz a sensação de juventude, força para recomeçar e desejo de oferecer alegria. Lembro de quando eu parti para
Nova York, deixando amigos, amores, salário digno… para voltar a ser estudante aos 30 anos, dividindo um pequeno quarto com outra pessoa que eu não conhecia
e com a neve até o pescoço, sem roupas adequadas… Ahhh, cantei bastante o refrão: “Finda a tempestade / O sol nascer / Finda esta saudade / Hei de ter outro
alguém para amar… A sorrir / Eu pretendo levar a vida…”. Nada como um sambinha genuinamente brasileiro para espantar o medo de regularmente recomeçar.
Música: Gtmnopédies, de Erik Satie
Quem diz: Adília Belotti, jornalista, 61 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Gosto da calma minimalista das Gymnopédies. Das pausas. Da forma como Erik Satie parece tocar todas as possibilidades de cada nota, como se saboreasse cada uma. Até desse nome eu gosto! Não sou nenhuma entendida em música erudita, mas ando em um momento
de turbilhão. Tantas coisas acontecendo, umas por cima das outras, Satie me ajuda a encontrar um centro com espaço dentro de mim onde posso descansar.
Música: Better Man, do Pearl Jam, e várias do Radiohead (Paranoid Android, High and Dry, Karma Police e Fake Plastic Trees).
Quem diz: Samuel Segatelli, publicitário, 33 anos
Por que essas músicas são um mantra em sua vida? Eu tenho várias músicas para vários momentos. Na verdade, entendo a música como o momento que estamos. Praticamente todas do Radiohead me levam de volta ao tempo que morei em Londres e tive uma experiência incrível de vida. Se for para escolher, diria que as mais representativas são Paranoid Android, High and Dry, Karma Police e Fake Plastic Trees. Já Better Man, do Pearl Jam, é o som que ouço quando preciso de motivação, porque me faz ir adiante, muito mais pela melodia do que pela letra. Mas todas elas me trazem uma sensação de profundo contato comigo mesmo, algo como um entendimento maior entre os vários eus que existem dentro de mim.

Música: Om Mani Padme Hum (é um mantra mesmo)
Quem diz: Sonia Hirsh, escritora, 69 anos
Por que essa música é um mantra em sua vida? Há mantras específicos para certas situações e recorro a eles. Evoco algum invariavelmente quando preciso de equilíbrio interno.
O som nas religiões
A espiritualidade cristã afirma que, “no princípio, era o Verbo”, a palavra criadora de Deus. Também na espiritualidade indiana, o Aum ou Om, o Som Primordial, é considerado a primeira manifestação do divino. Não se trata, é claro, do som articulado e audível, que necessita de um meio material para se propagar. Esse é
apenas o quarto e último estágio do som. Aum ou Om é o primeiro. Não é a voz de Deus, mas a própria divindade em vibração. Pela repetição dessa sílaba, o iogue sintoniza com o divino. Por isso, quase todos os mantras começam com Aum ou Om. O xamã antigo também tinha suas canções de poder, transmitidas pelos sons da natureza (o pio da coruja, o farfalhar do pinheiro etc.). No candomblé afro-brasileiro, cada orixá é convidado a descer ao terreiro com um toque específico do atabaque. E os padres do Monte Atos, na Grécia, até hoje alcançam o transe místico sincronizando a recitação da frase “Kyrie eleison” (“Senhor, tende misericórdia”) com o ritmo respiratório. Procedimento semelhante ao adotado por cabalistas judeus e sufis muçulmanos.

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