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Vida de perfumista

Há 13 anos a rotina de Verônica Kato é se encantar pelo aroma das flores, frutas, madeiras e tudo o mais que seja capaz de fisgar o nariz. Seu ofício, é combinar essências, dar-lhes corpo e criar fragrâncias adoráveis

Verônica Kato – Arquivo pessoal

No quarto de Verônica Kato não há aromatizador de ambientes, embora ela os desenvolva. Também não há velas perfumadas ou cheirinhos de qualquer espécie. O máximo do aroma possível é o do amaciante usado nas roupas de cama. “Em casa de perfumista, o olfato precisa ser desestimulado”, diz a expert formada em bioquímica. Pelo mesmo motivo – não atrapalhar a criação de nenhuma outra fragrância –, após o banho ela só usa hidratante sem perfume da cintura para cima. 

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“Preciso de um intervalo sem qualquer incitação olfativa. E minha casa é o único lugar em que isso acontece”, conta ela, cuja rotina, logo após o café da manhã, é sair da capital paulista em direção ao laboratório, em Cajamar, interior paulista, onde fica até as 20 horas.
Parte do tempo, Verônica está em sua sala, repleta de vidrinhos contendo essências de pesquisa. E o restante das horas, passa no laboratório. Os antebraços riscados com caneta esferográfica azul, curiosos aos olhos leigos, demarcam as áreas em que a concentração de um componente aromático é maior ou menor. Assim dá para saber ao longo do dia qual delas fica mais agradável no contato com a pele. É assim que a perfumista percebe se o aroma deixa rastros. E é assim por meses, até que se tenha o veredito final sobre a fórmula de um novo perfume – o que pode durar de um a três anos. 
Agora, por exemplo, ela está animada com um novo óleo essencial extraído de uma flor da América Latina que tem um lado floral bem solar e “um toquinho de mel, daqueles que atraem abelhas”, brinca. Da pataqueira, uma florzinha odorífera que os nativos da Amazônia usam para perfumar a roupa no último enxágue, surgiu um novo óleo essencial que levou esse mesmo nome. É um perfume floral com toque especiado que lembra o tomilho, o orégano.
E são tantas as inspirações para a criação de cada perfume. Pode vir da sensação causada pela leitura de uma poesia, do cheiro de um lugar, uma imagem, um desenho. Ou de um bom prato. “Estamos estudando um ingrediente muito aromático da culinária que está em voga nos restaurantes de São Paulo e que, acredito, vai ficar muito bem em um perfume”, diz Verônica fechando prazerosamente os olhos. 
As pesquisas já percorreram o caminho inverso. Depois de a empresa em que Verônica trabalha descobrir uma raiz amazônica chamada priprioca, apresentaram o ingrediente ao mundo da culinária. E hoje a raiz é usada na alta gastronomia por chefs como Alex Atala.
 Até um momento de descontração pode disparar um processo criativo. “Recentemente descobri o Aperol Sprtiz, que é feito com pedaços de laranja, champanhe, soda e aperol. Essa experiência cítrica e um tanto amarga e sparkling é muito interessante aromaticamente. Anotei o que senti, as impressões, os ingredientes e pretendo usar em algum perfume futuro”, diz a intérprete de odores. Na sua sala já existem centenas de vidrinhos resultantes dessas experiências e que ficam lá à espera de uma oportunidade para encabeçar uma nova fórmula.
 “Quando a gente cria uma roupa, primeiro aprende a riscar a peça – vestido, calça, blusa. Aí escolhe o tecido, corta, e finalmente acrescenta os detalhes – um bolso, uma manga, um decote. Na perfumaria também seguimos esse caminho”, revela a profissional. “Aprendemos a desenvolver primeiro a estrutura (o caminho olfativo) – se é cítrica, frutal, floral, amadeirada, chipre e depois incluímos os acessórios.” Uma dose de lichia com rosas, ela sabe, é doce como as adolescentes gostam, um pouco de grapefruit pode tornar a fragrância propícia ao verão, e um toque de musk é perfeito para trazer sensualidade. 
Todos meios para “fisgar o nariz”, a exemplo das primeiras frases, notas de uma música ou imagens que, segundo conta Jean-Claude Ellena, o principal criador de fragrâncias da França, no seu livro Diário de um Perfumista (ed. Record), são artifícios inventados para cativar a atenção do leitor e incutir nele a vontade de seguir adiante e prolongar o prazer. 
O gosto por compor essa “vestimenta” olfativa é o que move Verônica. Sua paixão vem carregada de relações afetivas, lembranças poéticas, viagens pelos campos de flores e frutos para conhecê-los de perto e se aproximar das pessoas que extraem os valiosos óleos essenciais. Recentemente ela esteve nos campos de rosas da Turquia. Em 2013, na cidade de Kerala, na Índia, viu como se processa a extração do óleo essencial de jasmim sambaqui (que entrou na composição do perfume flor de Luna, da Natura). Foi lá também que conheceu o sândalo indiano e se apaixonou por ele e sua história. 
“Leva-se de 70 a 100 anos para poder retirar o óleo do sândalo da forma tradicional, quando a árvore cai naturalmente e se pode extrair o óleo essencial do tronco. Tão puro e precioso que é vendido a peso de ouro”, conta a viajante. Segundo ela, antes de haver essa consciência ecológica, o sândalo foi praticamente extinto devido à derrubada da árvore para obtenção da preciosa substância. Mas, agora, um manejo sustentável está em desenvolvimento. “Indianos e australianos estão conseguindo retirar a essência dos galhos e das folhas. É tão puro que se você o toca fi ca com o aroma o dia inteiro.
” Uma pausa para o café, o aroma preferido da perfumista, e a jornada pelo mundo dos aromas volta um pouco no tempo, na época em que ela começou a trabalhar na Natura. “Era o começo da linha Ekos, e a marca queria um ativo que refletisse algo bem brasileiro. Foi uma feliz coincidência quando chegamos à pitanga, minha fruta preferida. Nasci em Bastos, interior de São Paulo, e a primeira árvore que plantei na vida, no quintal de casa, foi uma pitangueira”, rememoriza. 
Na sequência, Verônica conheceu seu Ivo, cuja fazenda fica logo depois de Santa Bárbara, interior de São Paulo. “E lá que a gente descobriu a pitanga de duas cores – uma delas fi cava roxa – e tivemos a ideia de fazer o sabonete com cheiro de pitanga negra”, recorda.
 A fazenda de seu Ivo, aliás, é um tipo de incubadora. “Se sabemos que uma planta dá um óleo essencial interessante, pesquisamos quanto tempo leva para essa plantação crescer. Se é uma árvore, que demora 15 anos para estar pronta, se é um arbusto.”
Plantar, esperar crescer, investigar de que parte se extrairá o aroma, se o cheiro fi cará diferente ao longo do ano e em qual momento é melhor fazer a extração, é um processo que começa muito antes de uma fórmula ficar pronta. Mas que igualmente desperta o interesse de nossa pesquisadora, acostumada a todos os caprichos que a natureza é capaz de fazer com o nosso nariz. 
Grande sábia, a natureza mantém-se, para Verônica, eterna fonte de admiração. “Dentro de uma rosa há mais de mil componentes aromáticos. É um perfume perfeito feito por Deus. Como não me encantar?”, derrete-se ela. 
Cercada por cerca de 3 mil ingredientes em seu laboratório, Verônica explica que as fórmulas de um perfume podem incluir até 200 componentes. Um dado concreto da complexidade de seu trabalho, que envolve muitos testes, tempo, criatividade, um nariz bem-treinado e, acima de tudo, muita sensibilidade e erudição. 
O Retrato de Dorian Gray, um de seus livros preferidos, poderá, um dia, se transformar em uma fragrância masculina sofisticada, a exemplo do personagem de Oscar Wilde. Mas o perfume que ela sonha criar é um que desperte a plena felicidade, como acontece na obra O Perfume, de Patrick Süskind. Qual é a sua fragrância predileta? “Nunca tive uma para chamar de minha”, responde. “Em vez disso, sou apaixonada pela capacidade que os perfumes têm de melhorar meu astral. Se eu estou feliz, se estou triste, o perfume será um acessório para combinar com o que estou sentindo.” É assim desde muito tempo. 
Lembra de pequena sentir o cheiro do talco de bebê que nunca faltava em casa. Basta fechar os olhos para sentir também o aroma do xampu de maçã verde que usava na adolescência, do perfume Musk, que começou a usar na adolescência e pelo qual é apaixonada até hoje. Ou o Anaïs Anaïs, com bouquet de flores brancas, rosas e gardênia, que conheceu aos 15 anos. 
O prazer aromático se estende pelos passeios à feira nos fi nais de semana. “São lugares de diversidade olfativa muito rica. Mergulho e me deixo embrulhar por eles”, conta. 
Como escreve Jean-Claude Ellena, profissional da Hérmes, todos esses prazeres roubados do cotidiano, banais, como o sabor das ações repetidas, nos tranquilizam. “Não levá-los em consideração significaria privar-se dessas alegrias que tornam a vida suportável.” Por sorte, Verônica os reconhece, coleciona e compartilha.