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Autorretrato

O caminho do autoconhecimento não é uma complexa jornada de provocações, muito menos um privilégio de iniciados. A resposta para a questão “Quem sou eu?” mora na simplicidade, nos sonhos da infância, no ato de respirar fundo e na coragem de dizer que somos falíveis

Autorretrato – Nick Dolding/Getty Images

Em dezembro de 1927, o romancista francês Romain Rolland, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1915, escreveu ao amigo austríaco Sigmund Freud sobre o que chamou de sentimento oceânico, uma espécie de imensidão interior que parece permear a existência humana, como se cada um de nós fosse maior que si mesmo. Naquele início de século 20, Freud, discordando do romancista francês – para quem tal percepção provaria um elo com o eterno, a espiritualidade – respondeu que essa sensação, na verdade, não tinha caráter transcendental, ou seja, possuía causa bem humana. O fio da meada começaria nos primórdios da infância, quando a criança passa a perceber que ela e a mãe não são um ser único. Segundo o pai da psicanálise, surgiria ali uma vontade permanente de saber, afinal, quem somos. “Sou aquilo que acontece no período pós-dependência absoluta da mãe, quando tenho que lidar sozinho com os primeiros desafios”, responde o psicanalista José Henrique Pereira e Silva, coordenador do Espaço Winicott de Psicanálise, em São Paulo e Manaus. “Sou, portanto, alguém que experimentou algumas perdas, mas que pôde seguir em frente. Sou esse amadurecer para a realidade e para as relações com os outros; alguém que, com sorte, soube o que fazer com o amor e a agressividade, dando a eles destinos adequados na vida.”

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Você e os outros
Nesse caminhar com as próprias pernas, cada um vai acrescentando à jornada não só os aprendizados como também um pedacinho das pessoas e dos lugares que se aconchegaram no íntimo ao longo dessa andança. Os pais e a casa, os amigos e o bairro, os professores e a escola, os amores e as viagens, os colegas, o trabalho. E, então, o “quem sou” se transforma em uma eterna colagem de referências. “Seus pais, por exemplo, escolheram seu nome, depois transmitiram valores e regras para a convivência em sociedade, mostraram perspectivas de futuro”, avalia Matheus Henrique Kunst, psicanalista e psicólogo clínico em Santo André e Mauá, em São Paulo. Tudo isso formou camadas que, pouco a pouco, moldaram a sua personalidade, o seu ego.
Nesse contexto, a profissão que você escolheu pode ter muito das expectativas de seus pais, e não suas. O seu ideal de felicidade também, porque ele espelha valores recebidos. Um exercício bacana para desvendar essa influência é perguntar-se qual é a sua visão de sucesso e comparar com o que seus pais pensam sobre o assunto. Eles acreditam que ser bem-sucedido é ter muito dinheiro, enquanto você já fi caria contente com o sufi ciente para viver? Eles querem vê-lo presidente de empresa, e sua vontade maior é conseguir tempo para conviver com quem você ama? Quando se começa a reconhecer quais são seus próprios desejos e quais são os dos outros, surge a possibilidade de separar quem você é daquilo que as pessoas acham que você deveria ser.
Essa autodescoberta, tão valiosa, geralmente se dá em um momento difícil, como a perda de um emprego ou de uma paixão. Quando a vida recebe um tranco, aqueles personagens que criamos – o funcionário dedicado, o amante perfeito – e que sustentavam o nosso dia a dia desmancham. E fi ca evidente que você não é nem o empregado nem o par romântico. Você é…
Uma das formas de começar a responder a esse dilema e entender a construção da sua história pessoal é voltar à infância e olhar com sinceridade e maturidade aquele ser que a princípio só sabia se ver com os olhos dos pais e, depois, pelo julgo dos parentes, amigos e professores. Pergunte à criança que você foi o que realmente importa para ela, do que gosta, o que a faz feliz. Reflita também sobre as fantasias que ela criou e que não fazem mais sentido. Todas essas informações serão úteis na sua montagem interior atualizada. A conversa é com você mesmo, mas também pode funcionar pedir ajuda a um amigo ou recorrer a um terapeuta. Falar sobre anseios e sofrimentos é escutar a si mesmo. Para os psicanalistas, avançamos nos nossos questionamentos até onde o consciente nos permite. Com o auxílio de um par que sirva de ouvinte e condutor, podemos ver apontamentos que ainda não são claros, porque estão no inconsciente.
O trabalho, no entanto, não termina nessa autoanálise. O educador físico Marco Schultz, coprodutor do filme Eu Maior, sobre autoconhecimento e a busca da felicidade, acredita que o caminho se aprofunda quando, depois de tudo o que descobrimos sobre nós mesmos, nos calamos. Porque no silêncio mora a nitidez que nos falta na turbulência dos dias.
Você e o silêncio
Um jovem procura o mestre em busca de respostas para seus problemas. Na presença dele, começa a falar, falar e falar. Comenta sobre a escola, a família e os amigos, expõe suas inquietações. O mestre, percebendo o estado mental do discípulo, começa a colocar chá na xícara do rapaz e vai deixando a bebida transbordar lentamente até derramar sobre a mesa. O jovem continua falando e, tão absorto que está em seus vários dilemas, só percebe o que está se passando quando o chá quente derrama sobre suas pernas. Dá um grito, então, e pergunta se o mestre não percebeu o que fazia. “Você é que não está percebendo nada”, pondera o mestre. “Chegou aqui como esta xícara cheia de chá: não há espaço para nada em sua mente. Nenhuma resposta vai caber para você enquanto sua mente não se esvaziar.” Quem conta essa parábola é Sandro Bosco, professor de meditação e ioga, palestrante e autor do livro Meditação para Quem Acha que Não Consegue Meditar (ed. Matrix). Ele acrescenta que o autoaprendizado é tão simples que parece complicado. “A gente precisa de respostas complexas para justificar as nossas dificuldades. Somos levados por pensamentos cartesianos, em que dois mais dois resultam em quatro. Mas entender racionalmente quem somos é só uma parte do processo, só um nível de percepção”, diz. O estágio mais profundo dessa descoberta não está nas palavras. “Quando você pergunta a um professor ou mestre de artes marciais ou ioga como desvendar o ‘quem sou eu’, ele diz: ‘Se há dúvida, fica em silêncio e observa a tua respiração’. A resposta não é verbal, é um sentimento interno. Para quem está confuso, com a mente cheia de problemas, essa resposta nunca vai parecer sufi ciente”, explica Bosco. Na verdade, isso significa que o autoconhecimento não é privilégio daqueles que seguem alguma filosofia espiritualista. Prestar atenção ao ato de respirar não requer regras. Dá para fazer isso na mesa do escritório, passeando no parque, antes de dormir. O importante é desenvolver o hábito de, todo dia, perceber o ar entrando, circulando e saindo. É assim que se retoma a intimidade com quem você é. E essa intimidade é que ajuda a distinguir seus contornos.
Claro, algumas técnicas de meditação e posturas aprimoram a prática. Servem de facilitadores, ainda mais em um mundo hiperconectado, em que a quantidade e a velocidade das informações que chegam mantêm o cérebro atuando em alta frequência. Para minimizar a ansiedade e o estresse – duas emoções que sobrepõem véus entre você e seu eu –, existem inclusive pousadas e hotéis dedicados ao silêncio. Alguns têm regras rígidas, como em um retiro, e definem que não se pode conversar por 15 dias. Outros são apenas lugares projetados para isolar barulho e manter o hóspede na calmaria da mente. De qualquer forma, a falta de mestres ou de templos não precisa virar mais um porém nesse caminho. Às vezes, tudo de que você precisa é pisar descalço na grama.
Você e o infinito
Existe algo de místico na natureza, um saber universal e democrático que nos liga a quem somos sem que a gente tenha a necessidade de explicações. “Do mesmo modo como a Terra gira em torno de si mesma e em volta do Sol, gerando as estações, não precisamos pensar para respirar. A natureza do ego é querer e querer mais: quando você chega a uma resposta, quer outra”, diz Bosco. O autoconhecimento nunca acaba. É como uma bússola que está em constante ajuste. E que depende da nossa sensibilidade e autenticidade; inclusive para reconhecer que, em certos momentos, precisamos abandonar a ideia de corresponder a expectativas para ser quem realmente somos. Chega uma hora em que nem precisamos fazer esforço para observar esse movimento acontecer.
Lembre-se das vezes em que você contemplou o mar por longos segundos, ouviu o cantar dos pássaros, pisou a areia molhada. A sensação é de que esse contato leva a um estado mais ancestral, e permite silenciar barulhos, ter mais clareza da sua essência. É que a natureza guarda uma sabedoria milenar que nos conecta a ela. Como somos parte desse imenso todo, temos em nós um infinito. Alguns dão a isso o nome de Deus, espiritualidade. Outros reconhecem ali coerências científicas. Não importa qual caminho você escolha. Se mais Freud, se mais Rolland. “O importante é perceber que o autoconhecimento  é uma trajetória em direção àquilo que existe antes e além de você mesmo”, diz Schultz. “Não há um outro lado nessa jornada. Existe um caminhar em que o menos importante é o ponto de chegada”, acrescenta Silva.
Quando a gente começa a trilhar o caminho do redescobrimento, é comum alimentar a expectativa de que vai desbravar todo o território, do núcleo até as bordas que separam o eu do resto. Mas não. Na realidade, acontece uma expansão de fronteiras. Imagine que você é uma ilha que, pelos seus cálculos, tem 10 metros quadrados. Depois do início da busca, suas descobertas o levam até os seus extremos. E então fica evidente que seu tamanho é maior: uns 50 metros quadrados, talvez. Ao chegar até esses novos limites, percebe-se que são mil, 10 milhões, 100 bilhões de metros quadrados… Na imensidão de quem você é, sempre haverá mais para conhecer.