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Quem mergulha na leitura jamais volta vazio

Ler nos faz sentir mais humanos e compreensivos. Pelas histórias que os bons livros contam, elucidam e enriquecem, e também pelo bem que fazem à mente, à saúde e às emoções

Quem mergulha na leitura jamais volta vazio – Arte: Danilo Pimentel
Ao longo da vida, quantos livros passam por nossas mãos sem jamais nos abandonar posteriormente? Podem fisicamente regressar para a estante, mas não se retiram
do nosso imaginário e do nosso coração. O mágico gesto de parar, silenciar, abrir um livro (ou ligar o tablet) e mergulhar em um universo paralelo, tão ou mais vivo que a própria realidade, representa a possibilidade de a alma dilatar. E de o mundo nos parecer muito mais vasto do que supúnhamos.
Quem lê uma boa história, daquelas que nos arrancam do chão batido, voa. Aporta em terras com idiomas, gente, sons, aromas e dramas próprios, mas que tantas
vezes remetem aos nossos próprios anseios e desafios. Por isso, volta-se maior. Mais nutrido, mais sabido. Mais humano. Basta lembrarmos da riqueza poética e linguística da obra do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), que inventou palavras para melhor nos transportar para o íntimo do povo sertanejo nos clássicos Grande Sertão Veredas e Sagarana. O local se conectando com o universal. O longe se achegando para perto.
O argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), grande leitor, além de exímio escritor, disse que o paraíso deveria se parecer com um tipo de biblioteca. Com a mesma
devoção, o angolano crescido em Portugal Valter Hugo Mãe garante que possui muitos livros entre seus melhores amigos, e reconhece ter construído importantes
relações de afeto a partir da paixão compartilhada por certos volumes.
Não é difícil entender o porquê desse amor derramado, indispensável para a felicidade de muita gente. (Publicado este ano, um estudo da Universidade de Roma III
realizado com 1100 pessoas comprovou que os leitores são mais felizes e encaram a vida de forma mais positiva que os não leitores). Façamos um breve giro pelo maravilhoso mundo da imaginação. Graças à inventividade de certos autores, algumas obras-primas nos arrebatam pelo texto, primeiramente, e também pela edição que receberam. O Jogo da Amarelinha, do argentino Julio Cortázar (1914-1984), grande nome da literatura latino-americana, é exemplo de engenhosidade. Lançado
em 1963, o romance com 155 capítulos, que se passa na França e tem como protagonista um casal a debater as grandes questões da vida, revolucionou a forma de narrar uma história, mostrando-se aberto a múltiplas leituras. Ao escolher a ordem dos capítulos que deseja ler, o leitor cria um tipo de fim de acordo com esse traçado.
Estratégia semelhante já havia seduzido o escritor russo Nikolai Gogol (1809-1852), autor de Avenida Niévski. Nessa obra, duas pessoas falam sobre sua vida enquanto andam pela avenida que dá nome ao livro. Por isso, este foi escrito em duas direções, como a própria via: no sentido normal da leitura, Gogol conta a história de quem estava indo. E, invertendo o livro, é possível ler outra história pelo ângulo da pessoa que passava pela rua no sentido oposto ao da primeira personagem. Como em milhares de outros escritos que transformam o leitor em cocriador. O que torna a experiência literária ainda mais instigante. Por tantos méritos, é uma lástima que
44% da população brasileira não tenha o costume de ler, como aponta a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em maio deste ano pelo Instituto Pró-Livro.
Devemos insistir na democratização do hábito. E quanto mais cedo, melhor, pois o apreço pelos livros adquirido ainda criança tende a se manter ou se expandir no decorrer da vida
Bem que não se acaba
Segundo a escritora americana Susan Reynolds, especializada em livros de neurociência aplicada, a leitura de imersão – diferente da leitura fácil e rasa – se solidi ca quando nos deparamos com uma linguagem rica em detalhes sensoriais, com complexidade ética e emocional, além de alusões e metáforas muito bem desenhadas, elementos responsáveis por gerar aquele fascínio que não nos permite desgrudar de determinados enredos. “Esses elementos ativam regiões do cérebro como se o leitor estivesse vivenciando aqueles eventos”, ela destaca. Quanto mais fundo vamos, informa Susan, mais análises e impressões pessoais adicionamos ao que está sendo lido. Logo, expandimos as molduras que antes enquadravam nossa visão de mundo, das pessoas que vivem nele e de nós mesmos.
Em um cenário de estímulos incessantes como o que conhecemos atualmente, muitos deles rápidos e rasteiros, como posts, mensagens de texto e tuítes, ter bons livros
por perto não é só prazeroso. “A equação menos TV, videogame, redes sociais e mais poesia e ficção resulta em uma capacidade imaginativa e inventiva muito maior, além de uma concepção do belo que parte da escrita e se estende não só para outras artes como também para as relações humanas. Quem se sensibiliza lendo passa a enxergar beleza na própria humanidade”, opina Paulo Roberto Laubé, professor de língua portuguesa e redação nas redes pública e particular de São Paulo. Apreciadores de textos caudalosos que requerem vagar, foco absoluto e predisposição para se aprofundar na trama, ao contrário das leituras de superfície, que
rapidamente são esquecidas, gozam da vantagem de se expressar melhor, tanto por meio da fala quanto da escrita. Com o passar do tempo, essas pessoas vão expandindo o vocabulário e acumulando um diversificado arcabouço de construções sintáticas. Daí a desenvoltura nos dois tipos de comunicação. O que, é bom ressaltar, atinge o âmago dos relacionamentos: a capacidade de se expressar com clareza, minando conflitos desnecessários.
Melhor ainda quando a objetividade no trato se soma à sabedoria emocional. Um estudo da Universidade de Toronto, no Canadá, conduzido pelo psicólogo e romancista
Keith Oatley, mostrou que quando lemos ficção regularmente nos tornamos mais aptos a compreender as pessoas e suas intenções; em outras palavras, ficamos mais
empáticos. Afinal, quantas situações e perfis humanos passamos a conhecer com intimidade após sucessivas leituras ficcionais? Segundo Oatley, esse conhecimento pode parecer teórico, mas não é. Ele de fato nos ajuda a lidar com outros seres humanos no plano concreto. Com base nesses registros, podemos formar ideias sobre as emoções, as motivações e os pensamentos dos outros. E agir de maneira mais acertada. A complexidade encontrada no papel ilumina a complexidade da vida real.
E, uma vez que a leitura nos obriga a construir mentalmente as imagens sugeridas pela trama, ela também acaba a ando a concentração e a memória, que podem ser aprimoradas, segundo o neurologista Paulo Bertolucci, chefe do setor de neurologia do comportamento da Universidade Federal de São Paulo. “Quando o indivíduo lê, ele forma novas conexões entre os neurônios. É por isso que a leitura regular tem grandes chances de adiar o aparecimento dos primeiros sinais da doença de Alzheimer em pessoas com essa predisposição”, assegura. Outra pesquisa realizada pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, acompanhou por 12 anos leitores assíduos
– que leem em média 30 minutos por dia – com mais de 50 anos. O resultado apontou que o hobby reduziu em 20% os riscos de mortalidade dos participantes, descontados os efeitos de alguns fatores que influenciam a longevidade (tais como câncer, depressão e diabetes, estado civil e condição econômica). O dado mais curioso revelado pelo estudo é que, além dos benefícios já comentados aqui, a leitura regular estimula comportamentos mais saudáveis e reduz o estresse. “Quando lemos uma obra prazerosa, adentramos o mundo do imaginário onde não há muita chance para aborrecimentos. A mente se ocupa com outra coisa mais aprazível”, esclarece Bertolucci.
A neurocientista carioca Suzana Herculano-Houzel que o diga. Ela jamais se esquecerá da noite que passou em claro com Harry Potter, o bruxo criado pela escritora escocesa J. K. Rowling. No livro Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor (Sextante), a pesquisadora descreve sua compreensão de como milhares de crianças ao redor do mundo conseguem ler avidamente uma “bíblia” de 600 páginas. É simples: a expectativa para atingir o desfecho de uma trama bem enredada libera noradrenalina, que deixa o cérebro acordado e atento; já o interesse pelo que está sendo lido aciona a dopamina, hormônio do prazer. “Assim adormeci feliz e satisfeita às oito da manhã”, revela.
Possibilidade de novos finais
O elo intransferível que estabelecemos com certas histórias pode colorir os dias, e também ser a chave para ressignificarmos nossas próprias experiências. O segredo está na intensidade da identificação com o que está sendo lido, que varia de pessoa para pessoa. “Os livros evocam memórias e sensações muito pessoais. Por isso, um mesmo enredo se apresenta de forma diferente aos olhos de cada um”, destaca Bertolucci.
No caso da Odisseia, de Homero, o herói grego Ulisses nos cativa até hoje pela gana com que enfrenta gigantes e obstáculos em série, sem desistir de regressar a
Ítaca, sua terra natal, onde consegue aportar depois de dez anos de peripécias – além dos outros dez anos envolvido na Guerra de Troia. “Nossa alma é um teatro. Temos
muitos personagens dentro de nós que necessitam se expressar. A literatura permite que nos encontremos com eles”, aponta a psicoterapeuta junguiana Elisabete Lepera,
de São Paulo. É por isso que revisitamos certos títulos de tempos em tempos. São livros-guias, porque tocam em temas de fundamental importância para o nosso ser. “O símbolo não se esgota, ele é imensidão, oceano. Em cada fase da vida compreendemos uma faceta de determinada história, de determinado diálogo. Por isso a obra nunca acaba e a cada leitura nos renova”, entende a psicoterapeuta. Ulisses, por exemplo, fascina por sua humanidade. Ele aprende duramente que há forças (os “deuses”) maiores do que nós, que não toleram a arrogância.
O imaginário, capaz de se renovar profundamente, é a fonte que sustenta e alimenta a psique, é onde ela se engendra, se cura, se transforma. Segundo Elisabete, “a
narrativa literária, seja ela poética, em prosa, nos contos ou mitos, abre as asas da percepção e da reflexão, nos leva a rever paradigmas e fazer novas leituras da realidade”.
Nesse sentido, submergir nas palavras é uma queda, muitas vezes vertiginosa, em direção a nós mesmos. “Um texto que requeira a atenção inteira pode levar qualquer pessoa a conhecer-se melhor, somente pela instauração de um silêncio interior, um silêncio cheio de significados”, opina o escritor paulista Ronaldo Bressane, autor de Futuro é Chapa Quente (E-Galáxia), entre outros títulos.
Mas tudo vai depender do que se lê, ele frisa, e de quem lê. “Só ler não faz de ninguém um ser humano melhor. É necessário contexto, caráter”, pondera Bressane, que coloca a leitura no mesmo patamar de outras tantas experiências formadoras da nossa identidade, como viajar, ouvir música, namorar, andar de bicicleta. Certa vez, ele uniu duas dessas categorias, e não se arrependeu. “Li Grande Sertão durante uma viagem a Minas e foi inesquecível por reconhecer na paisagem geográfica e humana aqueles seres de letras do Guimarães Rosa. Foi como desvendar os truques de um mágico”, salienta.
Uma coisa é inegável: histórias inventadas podem apontar caminhos concretos na vida. Como aconteceu com a baiana Ana Carolina Rodrigues. De tanto visitar a mesma biblioteca na adolescência, ela virou ajudante do setor de catalogação. “Aquele mundo de livros à minha volta era de fato o mundo para mim”, lembra. Logo veio o vestibular. Que caminho escolher? “Decidi estudar psicologia pensando em compreender os personagens. Entendo hoje a literatura como o acesso a esse território imaginativo que fala tanto sobre nós mesmos. Olhar para a produção literária de um país ou de uma época é olhar para o que, coletivamente, as pessoas desejavam,
internalizavam, sentiam”, observa.
Para o escritor Valter Hugo Mãe, os livros, especialmente os de poesia, instigam ainda a experiência do sagrado em pequenas doses cotidianas. “A poesia, assim como a palavra religiosa ou espiritual, também aspira a sua própria transcendência, ou seja, abre caminho para um sentimento a partir do qual se torna impossível regressar por completo ao mundo material”, compara e vai além, assinalando a alma do leitor como a grande responsável por essa sublime magia: “O texto será tão sagrado quanto formos capazes de sagrar a vida e a graça da existência”.

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