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Passeio pelas infâncias brasileiras

Como gosta de desenhar, ouvir crianças e contar as histórias delas, Roberta Asse inventou um jeito de viajar pelo país colhendo cenas que mostram como brincam, onde moram e o que interessa a esses nossos brasileirinhos

Passeio pelas infâncias brasileiras – Roberta Asse
Arquiteta de formação, a paulistana Roberta Asse sempre se interessou pela relação do lugar onde se mora com a vida que se leva, objeto de estudo do arquiteto e urbanista. Ilustradora e escritora de talento, tem ainda especial carinho por histórias quando são as crianças que as contam. Três anos atrás, durante um curso de literatura infantil ministrado por Claudio Fragata, escritor de livros infantis premiado com um Jabuti, pensou em um projeto que pudesse integrar todas essas paixões. Batalhou por patrocínio (como é legal quando uma empresa vê o potencial de uma ideia e se apaixona por ela, como aconteceu com as drogarias São Paulo e Pacheco!) e foi atrás de viajar para ver como era a infância por aí, fora do estado de São Paulo. “Apesar de ter nascido em São Paulo, vivi muito no interior – Ibitinga e Borborema – porque meus avós são de lá. Então eu tinha essa vivência da criança mais caipira, rural. Eu entrava na enxurrada, no rio, ‘morava’ na árvore”, conta. “Meu objetivo, então, era reconhecer tanto características em comum como aspectos específicos desse brincar – para tentar perceber a influência do ambiente e da cultura na vida das crianças”, diz ela. Foram dois anos de pesquisas, viagens, muitas conversas e afetos. E a descoberta feliz de uma infância livre pelos recantos desse país de meu Deus. Mais exatamente oito recantos, escolhidos a princípio pelos mais altos critérios de pesquisa antropológica e, depois, pela sensibilidade de Roberta em perceber que só conseguiria um bom resultado se fosse para onde as pessoas estivessem dispostas a recebê-la (e a sua família). Assim ela foi parar nas ilhas fluviais de Abaetetuba, no Pará; no povoado de Mumbuca (Parque Estadual do Jalapão), em Tocantins; em Trancoso, Bahia; em Cuiabá Mirim, Mato Grosso; no Vale do Mucuri e no Vale do Matutu, Minas Gerais; no Saco do Mamanguá, Rio de Janeiro; e no Vale dos Vinhedos, Rio Grande do Sul.
Em cada comunidade, aprendeu um tantão de coisas. Que as crianças do interior do Brasil têm mais autonomia, por exemplo. Uma liberdade de ir e vir sem ficar o tempo todo sob a supervisão dos pais. Que, na Amazônia, a relação com o rio é tão forte que as crianças parecem já ter nascido sabendo nadar. Bem diferente do Pantanal Mato-Grossense, onde rio é perigo de jacaré e os pequenos só vão para a água quando acompanhados de adultos. Lá, sabem é pescar e fazer panelinhas de barro. Essas vivências sorvidas com gosto e escuta atenta pela pesquisadora-escritora-ilustradora (repare nos desenhos que ela fez para esta reportagem) viraram inspiração para os oito livros que ela escreveu. Sua Coleção das Crianças Daqui é um conjunto bonito e enriquecedor por apresentar, ao mesmo tempo, um encontro
entre as diversas infâncias brasileiras através da literatura e um retrato do Brasil que não aparece muito. “A gente fala mais do que é feio no país do que o que dá certo, é poético e doce. A experiência dessas viagens vem para espalhar um olhar de valor para cada lugar e suas características particulares e universais”, diz Roberta. E gerar
um sentimento de pertencimento à medida que o leitor se identifica com os personagens, todos brasileiros, embora cada um à sua maneira.
É assim em A Travessia de Marina Menina, que fala da passagem da infância para a adolescência e das decisões que fazem parte da vida de todos nós (decisões que às vezes estão diluídas no dia a dia e às vezes ficam marcadas em função de uma dificuldade maior). Para contar essa história, Roberta usou como pano de fundo um pequeno vale inundado de mar: o Saco do Mamanguá. Há outras questões universais com valorização do conteúdo e da fala regionais, profundamente respeitada nos
contos e oferecidas como um deleite extra no site do projeto (criadeira.com.br). Que delícia ouvir o jeito de falar de uma criança do Vale dos Vinhedos: “A mãe e o pai vão pro parreiral cedinho, e eu fico aqui cuidando da nonna e do nonno, né, poxa… A gente ajuda, tu sabes?”. Quer um outro exemplo que é pura poesia? “Pego aqui esses ouriço e levo pra mainha fazer. Ela cozinha e põe limão. Quer pegar mais eu?”, diz um brasileirinho de Trancoso. Só mais um, de Cuiabá-Mirim: “Aquele passarinho pequetico ali? Xi, avua nesse tanto”.
O vocabulário regional extremamente rico, a interdisciplinaridade com a geografia e o artesanato local engrandecem a aventura. “Sempre que tinha um artesanato importante numa região, procurava entender como ele se integrava à comunidade e o quanto as crianças colaboravam com ele”, conta a autora. Daí por que o artesanato entra com tanta nobreza como fio condutor de seus desenhos. Pedacinho disso se vê no livro Conto de Desencontro, que se passa em Trancoso. Roberta encontrou muitas casinhas de argila feitas por adultos e crianças, pintadas à mão. Comprou as peças, fotografou tudo entre o outono e a primavera de 2014, e elas serviram para ilustrar a casinha dos personagens principais (na história, Toninho mora na casa vermelha de porta azul e a Berê, na casa laranja de porta verde).
Outro exemplo são as luminárias que a equipe da escola São Miguel Arcanjo fazia (nesse caso, o hábito foi interrompido recentemente, quando a escola fechou – cenas que Roberta também presenciou e não dão orgulho). Roberta ganhou duas e as guarda numa caixa de tesouros. A lanterninha é, na verdade, um pedaço de bambu de cerca de 30 cm cortado até a metade na vertical e em tiras que se abrem como pétalas de uma flor. “As crianças cortavam as tiras, envolviam essa parte com papel de seda – cada um de uma cor – e depois colocavam uma velinha no centro. Na noite da festa de São João, essas lanternas ficavam à beira do rio, no Vale do Matutu, acesas, enquanto as crianças encenavam a peça A Menina da Lanterna. Depois, cada criança pegava uma e saía em procissão até a fogueira. Ao longe, pareciam
pontinhos de luz coloridos”, conta, despertando nossa imaginação. O artesanato, quem diria, mostrou algo ainda mais importante: o quanto se estreitam os laços entre as crianças e os adultos nesse fazer junto. “Sentar e construir algo junto é muito significativo. Porque tem conversa, aprende-se como se faz de um jeito melhor e mais fácil, mas, principalmente, porque existe a presença. Isso é que garante a autonomia da criança; saber que o adulto está ali se for preciso. Porto de segurança e acolhimento”, observa. “Em Abaetetuba, por exemplo, veemse crianças de 7, 8 anos, já com um facão na mão”, conta. Elas fazem brinquedos do caule de miriti, uma palmeira muito leve (que no Sul chamamos de buriti). Hoje esses brinquedos ficaram famosos porque são usados no Círio de Nazaré, a festa de Nossa Senhora. Os artesãos passam o começo do ano fazendo as miniaturas – casais de namorados, casinhas, cobras (que significa proteção), barcos (fartura) – e, perto da festa, em outubro, vendem para os fiéis. “As pessoas compram o motivo de acordo com o pedido que querem fazer à Nossa Senhora e o penduram no chapéu”, conta Roberta.
Como as crianças estão sempre por perto, acabam pegando o facão também e fazendo os seus brinquedos de muriti. Se elas são o tempo todo supervisionadas, superprotegidas por uma redoma, podemos estar tirando delas a possibilidade de experimentação, que, destaca o educador Mario Sergio Cortella, é fundamental para
a formação e para o fortalecimento pessoal. Olhar verdadeiramente para uma criança não se trata, portanto, só de mantê-la segura. É preciso cuidado para não privá-la de relacionamentos com a própria cidade e também do convívio com o mundo adulto. As brincadeiras atuam na fabricação da pessoa. “Se aprendem a manejar algo
com segurança e liberdade, elas têm menos medo e mais iniciativa. Vem a vontade, vão lá e fazem. E isso ajuda em tudo. Na autoestima, no aprender a errar”, discute Roberta. Márcia Negrão, bibliotecária, livreira (tem um sebo em São Paulo) e mediadora de leitura da Escola Estadual Brasílio Machado, na Vila Madalena,
apresentou a coleção para cerca de 300 alunos. “Além da unidade da coleção, do capricho e da fala regional, o que mais me impressionou foi a disponibilidade
de Roberta de viajar pelo Brasil e conhecer a vida em cada lugar. Isso atingiu as crianças em cheio. Adoraram aprender palavras novas e se interessaram pelos hábitos dos outros brasileirinhos. Foi lindo”, relata.
Com pezinhos de lã
Colher essas histórias exigiu uma afinação sutil. Antes de tudo, para que as crianças lhe falassem com o coração, foi preciso desconstruir a imagem de que quem vem da cidade grande é superior. “Quando percebi que a recepção era tímida porque tinham a percepção de que quem vem de São Paulo é mais importante, tomei o cuidado de valorizar o que vi. Eles sabem tanto. Eu abria caminho admirando primeiro o lugar, devolvendo o que eu estava observando e que era mágico pra mim. O menino remando sozinho no rio imenso, andando a cavalo, caçando formigueiro”, conta Roberta. Em um trecho de O Caso do Tuiuiú, inspirado na visita ao Pantanal, esse amor pelo diferente é bem traduzido. “Quando cheguei perto das margens do Rio Mutum tive a sensação de estar sendo observada. Será que eram os jacarés e as cobras me olhando? Senti um medinho. Mas, quando o rio se exibiu diante de mim espelhando o céu, não sobrou nada de medo, só susto de beleza. A natureza estava em equilíbrio e, com meu respeito, nenhum perigo me esperava.” A antropóloga Clarice Cohn, referência no estudo do desenvolvimento infantil no Brasil, costuma dizer que “a criança não sabe menos. Ela sabe outra coisa”. Roberta se pautou o tempo todo por esse entendimento. E consegue trazer para sua coleção de histórias a generosidade
de que, exceto casos especiais, não há uma infância melhor do que a outra. “Tem gente que mora no interior de São Paulo e não aproveita o quintal que tem. Tem gente na metrópole que, por outro lado, se encanta com uma árvore em flor”, diz ela. “Brincar de videogame não é ruim se fizer parte da vida e não for a vida por completo. Tê-lo como mais uma brincadeira é bom.” Com sua obra, Roberta educa nossos olhos – e os de nossos filhos – para que possamos ver a aliança entre as diferentes
infâncias do Brasil. E com elas abrir o coração.

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