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Desculpe, mas eu vou chorar

Se os olhos são as janelas da alma, então nada como lavá-las de vez em quando para desembaçar os vidros turvos da vida, que persiste bela e emocionada diante do nosso olhar

Desculpe, mas eu vou chorar – unsplash

Dizem que choro é tristeza que transborda até se esgotar. E que a lágrima é a expressão da alma que escapa para fora na tentativa de nos jogar cada vez mais para dentro – exatamente no caminho oposto que a vida teima em nos levar. Por que ao longo da nossa jornada aprendemos a chorar para dentro, e não para fora? Por que nesse vai e vem de emoções mal digeridas nossos gritos se voltam para nós mesmos, presos, sem ter aonde ir? Não à toa, é na mais pura intimidade que as lágrimas finalmente saltam e extravasam. Basta lembrar-se de como a água morna do chuveiro da nossa casa é capaz de acolher aqueles cantos mais profundos de choro que, vez ou outra, aparecem pedindo atenção. No banho, eles fluem em um dilúvio disfarçado deixando as águas rolarem pelo corpo na esperança de lavá-lo por dentro e arrastarem toda a tristeza acumulada pelo ralo. Tal acúmulo, em longo prazo dentro de nós, pode desencadear desequilíbrios emocionais como a depressão. “Quando somos tomados por situações de alta carga emocional, o choro vem antes de qualquer outra reação. É a forma que o corpo encontra de voltar a um estado de equilíbrio anterior àquela situação vivida e, nessas horas, segurar o choro pode até fazer mal e causar doenças psicossomáticas (aquelas que têm seu princípio na mente)”, afirma a psicóloga Mariana Brandão Lourenço Gonçalves. De maneira bem simples, o que não sai por uma via sai por outra. “Chorar pode fazer a função de simplesmente diminuir a pressão emocional interna, ou pode ser um sinal, quando em excesso, de algum desequilíbrio emocional”, diz. Nos dois casos, chorar é saudável e muito importante: seja para extravasar, seja para sinalizar que algo não vai bem.

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Um mar de emoções

O choro, que marca tanto o nascimento quanto a morte, é o reflexo mais natural aos estímulos físicos e emocionais das pessoas, e é por isso que choramos de alegria, de tristeza, de saudades e até por machucados e dores pelo corpo. “Essa é uma
das respostas mais primitivas do ser humano. Basta lembrar que é a primeira manifestação do bebê após o parto, inclusive muito esperada pelos pais como um dos sinais de que está tudo bem com o filho recém-nascido”, conta Mariana. Ora, mas, se chorar faz tão bem assim e é saudável, por que, afinal, nos privamos tanto dessa capacidade? “Em primeiro lugar, por uma falsa ideia de fraqueza que pode ter sido associada ao chorar como resultado de uma repressão muito forte na primeira infância e, em segundo lugar, por existirem formas mais interessantes e recompensadoras na vida adulta de expressarmos o que sentimos”, responde a psicóloga. Até a linguagem aparecer (ou até mesmo após dominar algumas palavras), as crianças usam o choro como uma forma de expressar os sentimentos quando as frases lhes faltam. Ao longo dos primeiros anos de vida, a família, a escola e todas as pessoas ao redor ajudam as crianças a substituir o choro pelas palavras para que possam, cada vez mais, dizer o que estão sentindo ou o que querem.

Essa substituição acontece sem maiores danos, segundo Mariana; no entanto, em alguns casos, a repressão do choro é feita de forma dura ou equivocada, usando expressões como “engole esse choro”, “homem não chora” ou “até parece um bebezinho chorando”, frases que aos poucos passam a revestir o choro como algo errado ou sinal de fraqueza. “Dizer o que sentimos e o que queremos muitas vezes alivia tanto quanto o choro, mas, para isso, é necessário entrar em contato com os próprios sentimentos e não ter medo deles. Isso, sim, seria corajoso!”, reflete. Nas horas de aperto, saber reconhecer as emoções que as dificuldades nos trazem e aprender a lidar com elas respeitando-as é uma maneira de equilibrar a troca das lágrimas pelas palavras, podendo, finalmente, engolir o choro – só que de forma consciente.

…que lava a alma

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No fundo, até o pranto à toa tem motivo, porém nem sempre conseguimos identificá-lo. Ainda mais hoje, em tempos em que parece ser cada vez mais complexo compreender os sentimentos. “A capacidade de reconhecer as emoções parece ter se tornado pouco comum nas gerações mais jovens”, observa Mauro Maldonato, autor de Da Mesma Matéria Que os Sonhos (ed. Senac). As redes sociais, segundo o filósofo, estão gerando um tipo de analfabetismo emocional que pode levar à dificuldade em verbalizar emoções. “Nada mais parece ser capaz de expressar a realidade como ela é. A identidade, assim, é dissolvida em uma oscilação de emoções e reações”, diz. Para Rui Hassato Harayama, antropólogo, isso acontece porque mostramos apenas certos aspectos nas redes sociais. “Esses fragmentos viram modelos de vida irretocável, como se cada um negasse a existência do restante que nos completa e nos define”, afirma. Reflexões como essas nos fazem pensar que a perfeição virou dever universal e que chorar, portanto, passou a ser um tijolo a menos no modelo de perfeição que aprendemos a construir a cada dia. O que ninguém conta nas redes sociais é que a perfeição enrijece a alma e tira a maleabilidade da vida. E que o sofrimento
que nos faz chorar ajuda a definir quem somos e nos ensina a seguir em frente com mais compaixão. Tentar evitar as lágrimas é abdicar de uma boa parte da jornada do autoconhecimento. “Muitas experiências humanas são mediadas por dor, tristeza e ansiedade. Vivenciá-las nos leva ao aprendizado de quem somos.” Para Rui, passou da hora de olhar para si próprio com mais carinho e redescobrir o que é ser humano de verdade. E para nós também. Basta viver o choro das imperfeições e perceber que cabe muito mais cor dentro de uma alma lavada.

 

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