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Cada gesto de amor faz diferença

A jovem Gabriela Shapazian é voluntária independente e atua na Grécia, com o acolhimento de refugiados vindos do Oriente Médio. Seu sonho é que essas pessoas tenham acesso a uma travessia segura pelo mar. Para poder batalhar por isso, ela e a mãe iniciaram um singelo projeto

Gabriela Shapazian – Rogerio Pallatta
“Ninguém vai entrar em um barco precário ou um bote inflável e ir para alto-mar com a família se ele não for mais seguro do que o chão que se pisa”, diz Gabriela
Shapazian. Ela se refere ao risco que sírios, afegãos e paquistaneses, entre outros, enfrentam. Para fugir da miséria e da violenta guerra civil que se espalha pelo seu país de origem, eles se lançam ao Mar Mediterrâneo a partir da costa da Turquia com destino à Grécia. Ou da costa do Egito com destino à Itália (duas das rotas mais conhecidas). Quem são essas pessoas? “Gente como a gente”, simplifi ca Gabriela. “Só que assustadas.” Homens, mulheres, jovens, crianças, bebês. “Uma em cada 113 pessoas no mundo sofre perseguição política ou religiosa e precisa buscar asilo no estrangeiro. Um em cada três refugiados é criança. Nove de cada dez crianças que atravessam o Mediterrâneo estão sozinhas”, descreve ela com base em dados do Unicef.
A voluntária, que atua na Ilha de Lesbos, Grécia, porta de entrada de muitos desses imigrantes, falou sobre essa realidade a uma plateia de universitários da Faculdade de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas em sua última visita a São Paulo, sua cidade natal, em maio. São jovens pouco mais velhos do que ela, que acabou de concluir o ensino médio. Se tudo seguisse o fluxo natural das coisas, prestaria vestibular para psicologia ou relações internacionais, dois dos cursos que se imaginou fazendo. Mas o projeto está momentaneamente suspenso porque a jovem de 17 anos não se vê fazendo outra coisa que não seja ajudar as pessoas em situação de vulnerabilidade que conheceu e que ainda vai conhecer. Mais ainda: seu sonho é que exista safe passage para os refugiados. Uma passagem segura para que essas pessoas não precisem mais se arriscar em embarcações precárias e indignas para ter uma mínima chance de sobrevivência. “É possível vir da Turquia para a Grécia numa travessia tranquila de balsa, que leva duas horas e custa 15 euros”, diz. “Isso é vetado aos refugiados.” Para percorrer os mesmos 18,5 quilômetros eles precisam desembolsar 1000 euros por vaga em um barco clandestino. “Sem contar que o colete salva-vidas entregue pelos coiotes [como são chamados os intermediários dessas embarcações] são fabricados com material impróprio, que afunda ao invés de flutuar. Um crime”, desabafa a menina.
Gabriela não sabia nada disso quando decidiu ir para a Ilha de Lesbos pela primeira vez, em dezembro de 2015. “Diante da minha indignação frente a essa crise humanitária, a Gabi provocou: ‘Em vez de ficar chocada, por que não vai para lá ajudá-los?’”, conta Kety Shapazian. O impulso de uma acabou mobilizando a ambas. Com a ajuda de uma rede de amigos conseguiram comprar passagens e 2 mil pares de meias para doação (artigo essencial para quem chega encharcado numa ilha com temperatura de 5 graus no inverno). A intenção era ficar duas semanas em Lesbos, acolhendo refugiados. Acabaram ficando 45 dias lá. “Era nosso primeiro trabalho voluntário e estávamos recebendo uma média de 100 barcos por dia, superlotados, com 70 pessoas, cada um, encharcadas, com frio”, lembra Gabi.
Impossível não ficar mexida com a situação. Por eles Gabriela voltou a Lesbos outras quatro vezes, em intervalos de férias, até concluir a escola. Para sempre fazer o que fosse necessário. Há uma providência para cada instante. “Quando chegavam os barcos [desde maio de 2016, um acordo entre a Turquia e a União Europeia está impedindo o acesso dos refugiados à Europa via ilhas gregas], a primeira coisa a fazer era segurar a embarcação. Depois falar para as pessoas se acalmarem e tirar as crianças e os bebês. Remover os coletes salva-vidas, checar se estavam bem. Só então dar roupas secas, chá, sanduíche.”
O menino sírio Aylan, que morreu afogado na Turquia, causou comoção internacional. Gabi viu vários casos como esse. Lembrou do dia que o mar trouxe o corpo de uma menina de 4 anos. Um médico de plantão da ONG sueca Lighthouse Relief, Mustafá, foi chamado para ficar ao lado do corpo enquanto as autoridades não chegavam. Ele se aproximou e ficou sussurrando preces do Alcorão. “Mais tarde, ele contou para minha mãe que tinha perdido um filho logo depois de nascer. A criança teria, agora, a idade da menina. Quando viu isso, ele disse, descobriu o seu motivo para estar em Lesbos: velar e rezar por aquela criança”, conta. “Embora não soubesse de que religião ela era, ele sentiu que rezar traria paz a ela.”
Outra cena que mãe e filha recordam foi quando Kety deu um celular para um irmão recém-chegado à ilha poder se comunicar com outro que ainda iria fazer a travessia. “O celular é a única conexão do refugiado com o mundo. Mais do que isso, permite dar a geolocalização às ONGs de salvamento como Proactiva quando um barco está à deriva”, conta Gabi. Apesar de a rota para Lesbos ter sido interrompida, os refugiados continuam se arriscando. No dia em que deu esta entrevista, em São Paulo, Gabriela contou que voluntários da ONG See Watch, alemã, que continuam em Lesbos, haviam lhe dado a notícia de que 200 pessoas haviam morrido num
naufrágio no dia anterior.
Nos seis meses de trabalho voluntário que tem até agora, a principal lição foi a da compaixão. “Eu gostaria que, se um dia estivesse numa situação vulnerável dessas, um estrangeiro me estendesse a mão, olhasse pra mim”, diz. Dia 3 de julho, ela voltou à ilha grega, onde 5 mil refugiados aguardam permissão para deixar o campo e seguir viagem. “Eles precisam de muitas coisas. De alimento, de dentista, de ginecologista. Precisamos brigar para que as grávidas tenham acesso a exames e um tratamento digno. Hoje, isso beira o absurdo. O parto é traumatizante. Não há carinho, higiene. Nem anestesia.” Por sua vez, Gabi precisa de 40 euros por dia para seguir seu sonho e continuar no trabalho voluntário. “É o suficiente para pagar a pensão (sem água quente) em que fica alojada, comer, pagar pelo transporte”, calculou Kety. Para angariar fundos, elas bolaram o projeto Flores para os refugiados. Um negócio dentro do mercado orgânico da Vila Madalena que vende arranjos de flores (15 a 30 reais). Sessenta por cento do dinheiro vai para as despesas da voluntária e 40%, para custos operacionais dos arranjos. “Algumas pessoas apenas pagam pelo arranjo, mas moram longe e dispensam a entrega”, conta Kety. “Então distribuo essas flores gratuitamente. Alguém merece recebê-las.”
Financiar a estadia de Gabi também é manter o engajamento da jovem na campanha pela safe passage. Com o material plástico dos coletes salva-vidas, refugiados sem permissão de sair de Lesbos, mas que pelo menos já conseguiram um emprego (na ONG Mosaik), fazem bolsas, sacolas, nécessaires. Estampam nelas o selo safe passage, vendem online e buscam chamar a atenção para o problema. É bastante trabalho. Sem descanso.
Com 1,58 metro de altura e 48 quilos, o porte de Gabi contrasta com o tamanho da situação que enfrenta. Mas sua postura, não. Em 2016 foi reconhecida internacionalmente quando a Commonwealth britânica a chamou de jovem realizadora de mudanças em um relatório sobre a juventude mundial. O futuro? “Todos querem ter uma vida segura em algum lugar. Gostaria de fazer algo para minimizar o trauma da separação. Quero trabalhar com refugiados.”
Gabriela Shapazian
Idade: 17 anos
Como se define: posso perguntar para minha mãe?
Mantra: os refugiados são gente como a gente. Algumas pessoas se esquecem disso.
Como você gostaria de ser lembrada?: alguém que tratou o outro de maneira digna, da maneira como gostaria de ser tratado.
Sonho: para começar, conseguir a safe passage para que os refugiados tenham acesso ao ir e vir, sem que precisem se submeter a condições tão arriscadas como atravessar o mar em um bote inflável.

Manual do sonhador
Gabriela Shapazian realiza-se no pleno exercício da solidariedade. Sua entrega é notável, segundo o psicólogo Marcelo Rosenfeld
1: Algumas características chamam a atenção em Gabriela, além da sua pouca idade. Primeiramente, o “pular de cabeça” numa empreitada que exige tanta entrega e desapego. E que sensibiliza as pessoas.
2: Ela traz um senso de missão, um autêntico sentido para sua jornada. Ao acolher refugiados, de alguma maneira, também foi acolhida por uma causa e por pares que compartilham o mesmo desejo de ser útil.
3: A sensação de pertencimento e o decisivo apoio familiar foram vitais para encorajar o projeto, mas não seriam suficientes não fossem a paixão e o comprometimento da jovem.

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