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Ecologia no divã

O bem-estar planetário pode depender do bem-estar pessoal? O especialista em ecopsicologia Marco Aurélio Bilibio fala sobre a indissociável ligação entre essas duas dimensões

Marco Aurélio Bilibio – Pedro Araújo
“Poucas pessoas têm uma compreensão emocional do que a perda das espécies significa. Mas, quando percebem que estão gerando uma crise ambiental e cando cada vez mais sozinhas aqui, são abatidas por uma profunda tristeza”, diz Marco Aurélio Bilibio, precursor da ecopsicologia no Brasil. Essa abordagem, ainda muito pouco conhecida no país, surgiu no ano da Eco-92, no Rio de Janeiro, inspirada pelo lançamento do livro e Voice of the Earth: An Exploration of Ecopsychology (A Voz da Terra:
Uma Exploração da Ecopsicologia, em tradução livre), em que o historiador e crítico cultural norte-americano Theodore Roszak relaciona a psiquê humana ao sistema de vida planetário. Esse é o ponto de partida de Marco Aurélio para unir psicologia e ecologia em prol de uma vida com mais significado e sentido. Com mestrado em psicologia clínica e cultura pela Universidade de Brasília e doutorado em desenvolvimento sustentável pela mesma universidade, é atualmente diretor do Instituto Brasileiro de Ecopsicologia e representante da Sociedade Europeia de Ecopsicologia. Partidário da tese do ecologista norte-americano omas Berry, para quem “com cada espécie que é extinta, morre uma parte da nossa alma”, Bilibio compartilhou com BONS FLUIDOS algumas de suas reflexões para que o ser humano volte a se sentir parte da natureza e desfrute dos inúmeros benefícios que essa intrincada teia da vida oferece.
Como surgiu a ecopsicologia?
Observando a rota autodestrutiva da nossa civilização – que estava levando a uma crise ambiental –, o historiador e crítico cultural Theodore Roszak emprestou conceitos da psicanálise e da análise junguiana e começou a fazer uma leitura diferente da crise em que nos encontramos. Ele desconfiou que havia uma causa psicológica para esse problema. Levantou a suspeita de que a crise ambiental escondia um sintoma humano de “ecocídio” (termo que significa que alguém se suicida por meio da destruição do meio do qual depende). Roszak ampliou, então, o conceito de Jung de inconsciente coletivo (conjunto de sentimentos, pensamentos e memórias compartilhadas por toda a humanidade), e criou o conceito de inconsciente ecológico, que seriam os registros que trazemos da evolução da vida no planeta para a nossa psiquê. Essa camada da consciência se expressaria como uma sensibilidade para entender, ler e seguir a maneira como a natureza faz as coisas.
O que significa o termo ecopsicologia propriamente dito?
A ecopsicologia surgiu com o objetivo de levar a ecologia para a psicologia e a psicologia para a ecologia. Roszak cunhou o termo ao fazer esse link. E por constatar que havia um buraco na psicologia: o foco era a relação do ser humano consigo mesmo e com outros humanos, sem prestar a devida atenção ao conteúdo das relações
ser humano-natureza.
Em que a humanidade perdeu essa conexão com o mundo natural?
A sociedade judaico-cristã acabou nos levando a uma visão de ser humano que não honra essa dimensão profunda que nós temos, o inconsciente ecológico. A sabedoria ecológica, que seria inata ao ser humano, foi suprimida pela rota evolutiva da sociedade dominante. Roszak buscou uma sensibilização da psicologia para essa dimensão da relação ser humano-natureza, que ele percebia que ficava de fora do pensamento psicológico dominante. E identificou o que a falta desse contato com o mundo
natural acaba causando em nós.
O que essa ausência nos causa?
Muitas pesquisas atuais revelam como o nosso corpo reage em ambientes naturais. Basicamente, ativando o sistema nervoso parassimpático. Esse sistema está relacionado a uma resposta de calma do corpo. Isto é, à diminuição da pressão arterial, do nível de cortisol (o hormônio do estresse), e à geração de ondas cerebrais compatíveis com uma mente relaxada. Uma pesquisa da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, mostrou ainda que quando uma pessoa faz uma trilha pela floresta, ela desliga uma área do cérebro chamada de pensamento ruminante (associada a ressentimentos) e que é ativada em casos de depressão. Comparativamente,
não observaram qualquer alteração cerebral quando a pessoa caminha em área urbana. O que nos permite dizer que o contato com as árvores é antidepressivo e pode fazer os psicoterapeutas começarem a pensar em prescrever natureza como um elemento importante da saúde mental. Da mesma forma que nos faz pensar até onde a falta dela nas cidades não é também responsável pelo aumento de tensão, estresse, e, por que não, violência.
É necessário ir para a floresta para se beneficiar?
No Japão, existe um programa do governo chamado banho de floresta. Valorizar os jardins não só pela estética mas para a geração de um estado de tranquilidade faz parte da tradição do país. No entanto, a saída para as matas não precisa de grandes expedições, não implica necessariamente sair da cidade. Muitos terapeutas
atendem em jardins, e já é suficiente.
Pode falar mais a respeito?
O contato com o mundo natural é o que importa. Pois esse ambiente é um elemento profundo de encontro consigo mesmo. Em primeiro lugar porque aos poucos estimula a sensorialidade (que acaba induzindo a esse contato consigo mesmo). Também o contato com o mundo natural é a chave para o universo onde as defesas psicológicas foram criadas. É mais fácil relaxar as defesas quando estamos em contato com o mundo mais que humano. Além disso, quando fazemos uma saída
para a mata em grupo, e em busca de um sentido terapêutico, o espírito de comunidade é estimulado. Uma sensação de pertencimento não só ao universo do humano mas também ao universo do mais que humano. Quando esse sentimento existe, há muito mais qualidade para as nossas funções psíquicas. Uma pessoa pode
ser muito criativa, mas, quando ela tem uma vivência de pertencimento, o nível de bem-estar com que ela faz qualquer coisa é outro. Maior.
O excesso de informações nos deixa mentalmente sobrecarregados. O contato com a natureza ajuda a nos sentirmos mais equilibrados?
Esse tempo que a gente vive, da hiperinformação, tem provocado muitas mudanças. Estamos hiperestimulados como nunca antes na História. Essa capacidade de assimilação de muitos dados, que observamos principalmente nas pessoas mais jovens, poderia ser um ganho. Porém, estamos arcando com um efeito colateral: menor inserção das pessoas em ambientes naturais. O retorno aos ambientes naturais é um elemento de equilíbrio necessário nessa era digital. Os gestores públicos também
precisam ficar atentos à inclusão de espaços e programas de contato com a natureza para que a cultura digital seja enriquecida pela cultura ecológica. Essas duas precisam se integrar.
O sr. diz que a crise ambiental está em um conjunto de crenças erradas sobre a natureza, principalmente a de que somos superiores a ela…
Aprendemos a nos perceber como superiores à natureza, a percebê-la como uma coisa a ser usada, valorada apenas pelo que podemos tirar dela. Com a evolução tecnológica a serviço dessa mentalidade, dentro da sociedade industrial e de consumo, os danos aos sistemas vivos tornaram-se perigosos. A ecopsicologia mostra
que essas crenças afetam o ser humano de uma dimensão profunda de si mesmo. Antes de ser uma abordagem psicoterapêutica, pretende dialogar com as vertentes conhecidas da psicoterapia alertando para a necessidade de integrar ao pensamento clínico de cada uma delas essa dimensão ferida. Nosso viés antropocêntrico levou
pessoas e sociedade a um tal nível de desconexão que há uma ameaça concreta ao futuro desses sistemas aos quais pertencemos.
Pelo que estou percebendo, também é papel da ecopsicologia fazer uma espécie de crítica social…
Grande parte dos ecopsicólogos trabalha para ver essa linha terapêutica reconhecida. Mas é fato que ela carrega uma forte dose de crítica social. Essa crítica se dirige à cultura da desconexão em que vivemos, na qual os sistemas que geram e sustentam a vida existem apenas como pano de fundo sem importância para o nosso
show narcísico e grandioso. Assim, a ecopsicologia pretende influenciar a psicologia como um todo e torná-la umapsicologiapara a sustentabilidade, questionando algumas premissas de nossa cultura. A ecopsicologia procura ser uma vertente que tenta fazer a ponte entre o ser humano e a natureza, em meio a tantas outras
para as quais essa ponte não é importante. Ela não vem como uma abordagem esterilizada de qualquer agenda política. Pelo contrário, busca alertar os profissionais da psicologia quanto à responsabilidadedenossa profissão afim de evitar atragédia ambiental a que estamos submetendo nossos descendentes e questionar até
onde nossas formas de trabalho nos tornam insensíveis a essa tragédia ou até coniventes com ela. Portanto, o projeto da ecopsicologia é ao mesmo
tempo acadêmico, terapêutico e de crítica social.
Quem mais perde com esse afastamento entre homem e verde?
Esse distanciamento do mundo natural acaba gerando um modo de funcionar focado demais no intelecto. Ficamos excessivamente mentais e pagamos um preço por isso. Esse afastamento corta a conexão com a nossa sensorialidade, nos deixa mais ansiosos, estressados, e, como num ciclo vicioso, a gente vai perdendo a capacidade de observação de como a natureza trabalha – seus ritmos, tempos, superação. Acabamos criando uma lógica própria, desconectada da real. Nesse choque, em primeiro
lugar quem perde é a natureza, mas no longo prazo somos nós. Quando perdemos essa noção da nossa inserção dentro dos ecossistemas e os ecossistemas passam a ser vistos apenas como recursos para serem usados pela nossa economia, num primeiro momento existe a perda das espécies. Num segundo momento, começamos a perceber o efeito da perda dos ecossistemas. Os ecossistemas estão presentes em nós, no nosso DNA. Então, quando desonramos a vida pela destruição dos
ecossistemas, praticamos um crime contra nós mesmos. Ocorre um empobrecimento psíquico e da vida toda.
É difícil perceber claramente o quanto tudo isso é indissociável…
Posso dizer que é possível se sentir bem sem a experiência da conexão com o mundo natural, como se ela não importasse. Há muita gente que vive concebendo seu bem-estar sem considerar a natureza, e ponto. Mas, quando a pessoa tem a experiência da reconexão, abre-se uma possibilidade extremamente enriquecedora, harmoniosa, de se sentir inteiro. Essas pessoas se sentem profundamente recompensadas. E tende a ser algo que elas não esquecem mais.
Como é dentro do consultório?
Vivemos focados nas nossas metas pessoais e muito pouco conscientes do quadro geral que coloca em risco as próximas gerações. Nos grupos de ecopsicologia abordo isso por meio de vivências, e o sentimento dos pacientes passa a ser de angústia, de ansiedade. Uma angústia que já está lá, mas normalmente as pessoas não
gostam de pensar a respeito. Quando somos convidados a entrar em contato com os riscos que esperam nossos filhos e netos, algo muda.
É possível afirmar que essa reconexão com a natureza traz o sentido da vida que às vezes tentamos preencher com outras coisas?
Seguramente. Porque a experiência da natureza preenche espaços vazios. Se a pessoa fica um tempo suficiente em contato com o ecossistema em equilíbrio, o primeiro efeito é de desestressamento. Se ela dá tempo suficiente para essa experiência, logo as coisas que são essenciais e secundárias vão cando muito claras. Quando
a gente leva pessoas para experiências mais longas na floresta, a experiência mais significativa é o nível de importância de certas coisas que pareciam tão relevantes quando a gente estava imerso no mundo urbano. Quando vemos de fora, não são. Aí fica mais fácil reconhecer o que é importante. A natureza dá esse distanciamento
que nos permite ver o que realmente é essencial. Além do que a experiência com a natureza frequentemente se converte em uma experiência espiritual. O mundo natural facilita essa experiência. As coisas ficam mais claras sobre nós, sobre a nossa vida. Tudo vai se reconfigurando, se ressignificando.
Como as sessões de ecopsicologia acontecem na prática?
Faço workshops em ambientes naturais. Mas, mesmo quando o atendimento não acontece em ambiente externo, meu consultório é decorado com elementos da natureza que convido para a terapia. No processo terapêutico, trabalhamos de forma que o paciente acaba entendendo que ele é natureza e passa a confiar na natureza dentro dele.
Há algum cuidado na escolha do ambiente externo?
Quando entramos com um procedimento novo como esse, de fazer uma terapia fora do consultório, existem cuidados a serem tomados. A privacidade é importante e o
ambiente não pode ser dispersivo. O ambiente precisa permitir uma atenção focada na experiência presente e aberta para o que surge na sessão. A ecopsicologia usa o mundo natural como instrumento terapêutico. Os elementos vivos circundantes podem provocar um efeito na pessoa não só de desestressamento como também
um efeito projetivo, na medida em que o mundo mais que humano passa a ser fonte de metáforas para o próprio funcionamento. A pessoa pode reconhecer processos psíquicos dela em uma planta, árvore, pedra, em um animal. Ela se vê retratada nos seres ou nos fenômenos da natureza. E isso pode ser útil no processo.
Que tipo de comportamento pode-se esperar de um paciente que optou pela ecopsicologia?
Da prática da ecopsicoterapia, espera-se que a pessoa descubra-se parte da teia da vida, vivenciado os efeitos terapêuticos dessa identidade ampliada. Espera-se ainda que ela identifique as crenças disfuncionais que nossa cultura sustenta contra o mundo natural, mudando qualitativamente suas relações éticas com ele. E espera-se, claro, maior contato com árvores, florestas, mar, cachoeiras, jardins. Porque tudo isso provoca efeitos comprovadamente antidepressivos e ansiolíticos. Quando uma pessoa fica tempo suficiente em contato com a natureza, e esse tempo varia para cada um, vem um estado de reequilíbrio e centramento.
O sr. poderia dar algumas dicas para que quem não faz ecopsicoterapia também usufrua melhor desse reencontro com o verde?
Um exercício bom é perceber as ressonâncias, como nós reagimos às outras espécies. A mata pode oferecer a oportunidade para a pessoa entrar num silêncio profundo, focar na sensorialidade, observar e descobrir o que nos atrai. Quando algo nos atrai no mundo natural, geralmente tem algo a ser descoberto sobre nós ali. Pode ser algo simples como o prazer de respirar fundo. Todos nós ouvimos na escola que dependemos do oxigênio das plantas e que a gente devolve gás carbônico para elas, mas isso fica num nível muito superficial da nossa consciência. Sugiro que você chegue perto de um ramo com folhas e, ao inspirar, tome consciência de que está recebendo de outro ser o que é necessário para a vida. Quando expirar, faça-o com a consciência de que está devolvendo a vida para esse outro ser. Receber com gratidão quando inspirar e devolver com amor quando expirar. Essa experiência torna a respiração um exemplo da nossa conexão profunda com todos os seres. Qualquer espaço verde já
provoca esse efeito, mas é preciso silenciar a cabeça. E deixar que os sentidos nos movam, respeitando as atrações naturais e descobrindo para onde elas nos levam.

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