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Entrevista: O sentido da vida

Segundo o educador Mario Sergio Cortella, algumas escolhas diárias podem livrar os nossos dias de uma existência robótica e encher a alma de significado

Mario Sergio Cortella – Nana Higa
Encontrar a si mesmo naquilo que se faz e conseguir se reconhecer – ou conhecer-se de novo nisso. Essa é a definição de ter um propósito na vida de acordo com o filósofo e professor Mario Sergio Cortella, autor de vários livros, entre eles Por Que Fazemos o Que Fazemos? – Aflições Vitais sobre Trabalho, Carreira e Realização (ed. Planeta). “O propósito e a busca do reconhecimento levam a uma reflexão importante sobre as escolhas que você toma. E isso livra seus dias de uma existência robótica, mecânica”, afirma o educador. Nem precisa defender um grande ideal, como uma causa humanitária. O entendimento de por que você segue todas as manhãs para o emprego, por exemplo, já é capaz de encher a alma de significado, mesmo que você não esteja lá tão satisfeito na profissão. A própria ideia de trabalhar para poder se libertar em um momento futuro (das amarras que o prendem hoje a uma determinada situação) é um dos objetivos que alguém pode ter, diz Cortella. Na entrevista a seguir, o filósofo, um dos mais influentes da atualidade, fala sobre como as redes sociais favorecem o autoengano e quais os jeitos de construir caminhos possíveis para uma vida mais plena. Invariavelmente, todas as rotas passam pela importância de saber acolher a dor e o fracasso com a mesma leveza com que se aconchega a felicidade e o sucesso.
O sr. destaca o valor do propósito, principalmente no livro mais recente (Por Que Fazemos o Que Fazemos?). Por que é importante encontrar propósito em tudo o que fazemos?
Para não ter uma existência automática, descartável. O propósito pode ter como ponto de partida desde o mais básico, como a sobrevivência material, até uma condição mais elevada, q que é encontrar a si mesmo naquilo que se faz. Nenhum de nós é capaz de existir sem a perspectiva de um propósito, de uma razão. Quem assim o faz – ou seja, quem não tem um desígnio, um plano, uma meta em vista – está existindo de um modo robótico. É um sinal de perda da própria identidade e, acima de tudo, de perda do sentido da vida. Nessa hora, a infelicidade chega com muita força.
Dinheiro pode ser um propósito?
O propósito não necessariamente é uma causa. A razão inicial no mundo do trabalho é a sobrevivência material. Não fosse assim, eu não procuraria um emprego – dedicaria todo o tempo a um trabalho voluntário, no qual não tivesse um retorno financeiro. Sou professor há 42 anos e faria de graça o que faço, mas não posso, porque preciso existir. Nesse sentido, embora meu ideal seja elevado, ele existe a partir do meu vínculo profissional remunerado.
Buscar reconhecimento é uma forma de querer ser aceito pelo outro?
Aceitação e reconhecimento não são a mesma coisa. Eu posso desejar reconhecimento por intermédio de retorno financeiro, por exemplo, e isso não está relacionado à aceitação. Mas a ideia de reconhecimento está ligada também à aceitação. Afinal de contas, uma pessoa se sente mais acolhida numa comunidade se ela entende que é importante ali e que os outros enxergam nela alguém que tem alguma contribuição a fazer ao meio. A procura pela aceitação não é imaturidade, é sinal de inteligência. Ninguém em sã consciência gostaria de viver em uma comunidade sem que nela fosse amparado. Evidentemente que eu, para ser aceito em um grupo que não é igual a mim, preciso abdicar de algumas coisas que estão no meu modo de ser. Isso faz parte da convivência, da diplomacia. Não significa de modo algum que eu anule a minha identidade. Se alguém é excluído de uma comunidade, se sente diminuído e busca o tempo todo a aceitação dos outros, acaba anulando a própria personalidade para conseguir o que deseja. Isso é obsessão.
Nem todos encontram satisfação no trabalho. Como achar sentido em um emprego com o qual você não se identifica?
Dando a essa situação o caráter que ela pode ter, que é o da provisoriedade. Entenda, em um primeiro momento, que isso é uma circunstância, e não algo imutável. Não significa deixar de se dedicar, apenas saber que aquilo é uma transição, um período de um, dois, dez anos que, em algum momento, pelo seu esforço e pela sua intenção, vai levar você a sair desse invólucro. Isso significa, antes de tudo, que há pessoas que não podem fazer uma escolha livre agora, mas podem construir as condições
necessárias para que essa opção seja feita no futuro. Nesse sentido, a própria ideia de libertar-se das amarras é um dos propósitos que alguém pode ter. E existem vários
exemplos de gente que consegue pavimentar estradas possíveis. E há pessoas que se conformam, se acovardam, se diminuem e ficam detidas, como se vivessem em prisão domiciliar dentro delas mesmas. Para alguns, essa situação é muito confortável, porque permite ficar um bom tempo lamentando, em vez de agindo. O estado de lamentação é algo extremamente confortável para quem não quer agir, arriscar, decidir.
Mas há pessoas que, apesar do esforço, não conseguem ser bem-sucedidas e se sentem inadequadas, incompletas…
Existe algo que é ligado à casualidade. Sou um profissional mais conhecido porque acabei entrando na mídia. No meu caso, estava na hora certa, no lugar certo quando a filosofia começou a decolar de novo no Brasil como um interesse das pessoas. Há circunstâncias que fazem com que, apesar do esforço mais intenso, alguém seja atropelado por situações sobre as quais não tem controle. Seria uma arrogância imensa imaginar que eu posso de fato atribuir a mim, exclusivamente, o meu sucesso. Por exemplo, quando não há regras claras e as mesmas condições de sucesso para todos os envolvidos, não há meritocracia, há privilégio. Um aluno que não trabalha e tem pais alfabetizados desfruta de privilégios sobre o que trabalha e tem pais analfabetos. Mas uma das inteligências humanas é a capacidade de recusar o que parece não ter alternativa. Não é casual que a primeira palavra que aprendemos e vivemos seja “não”. O fato de hoje não ter acontecido não significa que amanhã não possa acontecer. A persistência é uma qualidade extremamente significativa. É claro que também não se pode ter uma esperança apoiada no verbo esperar. É preciso basear a esperança no verbo esperançar, que é a busca com ação, de maneira que não fique apenas na expectativa, mas na construção, na elaboração.

Qual o papel da fé, independentemente da religiosidade, nessa construção de caminhos possíveis para o bem viver?
Uma pessoa que faça da fé uma alavanca para aquilo que tem reunirá mais forças para construir seus caminhos. Ora, alguém que tenha muita crença na possibilidade
da cura ganha mais energia para combater a doença. Mas é necessário lembrar o que escreveu um grande monge, chamado São Bento, que fundou a Ordem Beneditina, cujo lema é Ora et Labora, reza e trabalha. Rezar ajuda, mas não é suficiente. Supor que o pão nosso de cada dia seja apenas dado, é ter tranquilidade em excesso. E trabalhar ajuda, mas, se a gente não tiver gratidão, perde o sentido. Agradecer o pão de cada dia também importa.
Há jeitos mais leves de lidar com fracasso, frustração, culpa?
Compreendendo que não há cura sem febre. A culpa é também uma maneira extremamente cômoda de acondicionar as nossas fraquezas. Há pessoas que se sentem mal por algo que elas alterariam, mas acabam encontrando na culpa que sentem algum nível de satisfação, porque aquilo dá a elas uma razão para permanecer naquela condição. E há quem se rebele contra a autopiedade e vá buscar o que pode ser buscado. Essa é a diferença entre alguém que enfrenta a vida com coragem, alegria
e clareza dos percalços e alguém que prefere retrair-se e atribuir ao impossível todas as intempéries. Já para a frustração há uma receita óbvia para se chegar até ela:
colocar-se objetivos que não são exequíveis. Existe uma diferença entre sonho e delírio. Um sonho tem que ter factibilidade, ser passível de realização. O delírio é o desejo que não é realizável. Por exemplo, eu sonho em ser o melhor jogador de futebol da Fifa na Copa da Rússia em 2018. É óbvio que isso não vai acontecer. Tenho 63 anos de idade, não jogo futebol há mais de 30 anos, não teria como entrar em um time. Aquilo que gera a alegria do esforço é o sonho. O delírio resulta em frustração.
Estamos pouco habituados à dor?
Sim. Há muitas famílias que não levam crianças a velórios, por exemplo, impedindo que elas tenham contato com algo intrínseco à existência, que é o fim da vida.
Elas não são habituadas a entender que a morte é um fato e que para ela não há alternativa. Claro, ninguém levaria uma criança com menos de 6 anos a encarar uma situação dessas. Mas, a partir do momento em que ela já tem uma convivência escolar mais intensa, deve viver as situações de perda. Do contrário, o dia em que
ela perder um amor, um trabalho, achará que, como no mundo virtual, a saída é desconectar, deletar alguém ou a si mesma.
O que as redes sociais têm a ver com isso?
Há um teólogo e filósofo do século V chamado Agostinho – que os católicos, anglicanos e ortodoxos chamam de Santo Agostinho –, que tem uma frase para você e eu não esquecermos: “Não sacia a fome quem lambe pão pintado”. Isso é, você não vai matar a sua fome se lamber só o desenho do pão. Tem muita gente no mundo virtual que está lambendo o desenho e achando que será saciada. Nunca a imagem do sanduíche na propaganda corresponde ao que ele é na realidade. A carne não é tão consistente nem o queijo, tão bem derretido. Existem diferenças entre a simulação e o concreto. Por isso, as redes sociais favorecem o autoengano. Há quem viva tanto o mundo virtual que não consegue existir no real sem sofrer em excesso, porque o virtual é mais acolhível, mais receptível. São crianças que passam a vida toda lidando com a realidade como se ela fosse um game. No game, existe a possibilidade de morrer e voltar, resetar. Na vida real, não. É preciso ter cautela com simulacros, com
aquilo que é mera representação e não carrega o que a realidade tem, que é perfume e fedor.
Vivemos hoje a cultura da alegria eterna, em que as pessoas se sentem pressionadas a encontrar a fórmula mágica da felicidade. Como lidar com isso?
Quem deseja a felicidade como um ponto futuro nunca conseguirá tê-la. Afinal de contas, a felicidade não é um lugar a que se chega, é uma circunstância eventual. Alguém que deseja um dia ser feliz, não o será, porque está entendendo a felicidade como um estado permanente – e ela não o é. A felicidade é episódica. Por outro lado, alguém que é continuamente infeliz não está permitindo que a felicidade apareça. É aquele que prefere residir dentro de uma perspectiva pessimista a abrir a porta e a janela para o sol entrar. O sol não entra o tempo todo, não entra por todos os lados. Mas há momentos em que ele entra. E, nessas horas, a gente tem que ter disponibilidade para permitir que isso aconteça.
Como acolher os momentos de penumbra e deixar o sol entrar?

Tendo clareza do que falavam nossos avós: não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Alguém que supuser que será sempre feliz será tonto, porque só os tontos são felizes o tempo todo, já que não entendem o que acontece à sua volta. E só os tontos são tristes o tempo inteiro. Há uma alternância na natureza em que a um inverno inclemente sucede uma primavera vicejante. São ciclos. Não significa fingir que tudo está bem, mas permitir que, quando as coisas bem estão, deixar que cheguem, e, quando bem não estão, enfrentá-las com serenidade, persistência, paciência e inteligência. Há pessoas que se rendem com muita facilidade ao escuro. Mas o escuro faz parte e, como bem dizia Nelson Cavaquinho, o sol há de brilhar mais uma vez. É preciso deixar fluir em nós aquilo que faz com que a vida não seja desperdiçada. Isso é ter propósito. Afinal, como disse o jornalista Aparício Torelli, o Barão de Itararé, na frase que deu origem ao meu livro, a única coisa que você leva da vida é a vida que você leva.

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