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Onde dói e por que?

Ao considerar diferentes dimensões do ser humano – não apenas a biológica –, a medicina antroposófica atende quem precisa de tratamento mas também de respostas para a existência de seus males, explica o médico alemão Thomas Breitkreuz

Thomas Breitkreuz – Divulgação
Na Alemanha do início do século XX surgiu uma medicina com sensibilidade diferente da tradicional. Combater doenças era apenas uma de suas intenções. A modalidade enxergava o paciente em sua totalidade (corpo, mente e espírito) e propunha algumas re exões sobre a essência do ser humano e do Universo. Embasada na antroposofia, ciência espiritual desenvolvida pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), essa abordagem teve ajuda da ginecologista holandesa Ita Wegman (1874-1943) para se estruturar e recebeu o nome de medicina antroposófica. Quase um século depois, está presente em 60 países, e o Brasil é o segundo em número de pro ssionais, atrás apenas da Alemanha. A razão disso? Basicamente sua efetividade e o acolhimento com respeito à autonomia do paciente. Por aqui, o método integra o Sistema Único de Saúde (SUS) em algumas cidades como Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Mas, por ainda não ser reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina, não pode ser credenciado pelos convênios médicos. Para falar mais sobre essa linha terapêutica que, no entanto, só cresce no mundo, entrevistamos o oncologista omas Breitkreuz,
diretor do Hospital Paracelso – um dos mais importantes centros de medicina antroposófica da Alemanha. Ele esteve recentemente em São Paulo. Confira agora os principais momentos desse encontro.

Para começar, dr. Thomas, o sr. poderia contar um pouco sobre quais são as principais características da medicina antroposófica?
Certamente. Em primeiro lugar, levamos em consideração o ser humano como um todo: corpo, mente e espírito, que estão interligados. E consideramos quatro níveis de
atuação nesse sistema terapêutico: o corpo físico, palpável e mensurável; o corpo etérico ou vital, ligado às forças vitais, ao crescimento, à reprodução, à regeneração; o corpo astral ou alma, associado às emoções; e a organização do Eu ou espírito, que diz respeito ao indivíduo com sua biografia, seu entorno e o que é significativo para cada um – em outras palavras, o que torna o ser humano um ser humano.
E como isso se alia aos princípios herdados de Rudolf Steiner, o criador da antroposofia?
A partir da visão desse cientista austríaco, compreendemos que o ser humano é muito mais complexo do que meramente sua constituição bioquímica, anatômica e fisiológica. Cuidar dele, portanto, exige um alcance mais holístico, global. Tentamos, então, abarcar todas as dimensões que o compõem. Na verdade, esse entendimento
vem de uma antiga tradição filosófica que remete a Aristóteles (por volta do ano 300 a.C.) e muitos outros filósofos. Mas foi Rudolf Steiner quem levou essa percepção para a prática tornando-a verdadeiramente terapêutica, integrando-a ao diagnóstico e humanizando a medicina. Já que ele não era médico, sempre se aliou a profissionais especializados, como a dra. Ita Wegman, ginecologista holandesa. Para ambos era muito importante que a medicina antroposófica fosse praticada exclusivamente por médicos formados pela via convencional.
Algo mudou desde a concepção da medicina antroposófica, nos anos 1920, até hoje?
Claro que algumas premissas se mantêm, mas a medicina antroposófica não é apenas uma tradição, e sim um sistema em desenvolvimento. Novas doenças surgem. Lidar com elas é um aprendizado contínuo que se modifica a cada década, sempre olhando para os princípios básicos (a totalidade do ser humano), adaptando e encontrando caminhos para aprimoramentos.
Qual é o papel dessa abordagem terapêutica no mundo atual?
Somos pioneiros em trazer um entendimento do ser humano em parceria com a medicina convencional. Por isso, nossa abordagem é uma importante parte da chamada medicina integrativa, que interliga diferentes conhecimos. Cooperamos com homeopatas e acupunturistas, por exemplo. Conseguimos compreender também os benefícios específicos trazidos pela medicina tradicional chinesa e pelo aiurveda, o sistema indiano de cuidados com a saúde. Nesse sentido, a medicina antroposófica constrói pontes (entre a alopatia e as medicinas complementares e entre as próprias medicinas complementares). É assim que o campo médico se amplia.
Poderia falar sobre como essa aliança se dá na prática?
Os antroposóficos utilizam todos os recursos da medicina convencional. Mas, após um procedimento tradicional, nos perguntamos o que mais podemos fazer, seja para contribuir para a cura ou para restabelecer as forças do paciente no período de recuperação. Podemos usar algum medicamento natural? Podemos nos valer de terapias para colocar o paciente de pé mais rapidamente? Devemos ainda questionar: o que causou o distúrbio? A pessoa era workaholic? Como estavam suas emoções e seus
relacionamentos? Direcionamos soluções a todos esses níveis para que o indivíduo possa recuperar a saúde como um todo. Não queremos apenas bloquear sintomas ou neutralizar a dor. Para isso, nos valemos dos estímulos provenientes de diferentes métodos combinados [massagem rítmica, arteterapia, musicoterapia etc.].

A procura por esse tipo de cuidado médico aumentou nos últimos anos?
Sim. Quando a medicina antroposófica surgiu ela se restringia à Alemanha. Atualmente, temos médicos antroposóficos atuando em mais de 60 países nos cinco continentes. Claro que muitos núcleos surgiram há dez, 20 anos. São muito recentes e estão em crescimento. Trata-se de uma abordagem ainda nova e diferente para a maioria das pessoas. Mas por isso mesmo temos muito a crescer e aprimorar.
Como a medicina antroposófica enxerga as doenças?
Em primeiro lugar entendemos que as doenças fazem parte da condição humana. Sempre vamos oscilar entre estados saudáveis e patológicos. A saúde é apenas fruto de um tênue equilíbrio, de uma calibragem entre diferentes processos, que não é estática. Mesmo assim, estamos sujeitos à possibilidade de adoecer. Afinal, temos que tomar decisões, que lidar com a nossa história. Fazemos tentativas e erramos, tentamos entender as coisas, mas falhamos, queremos melhorar nossa saúde, mas
fazemos coisas não tão saudáveis. Há os impactos disso tudo. Em segundo lugar acreditamos que as enfermidades podem servir para o desenvolvimento humano. Em vez de enxergar a doença como catástrofe, podemos inferir o que ela nos ensina, podemos aprofundar nossa humanidade e crescer como seres humanos. Trata-se, portanto, de uma oportunidade de autoconhecimento. Ajudamos o paciente a crescer através do adoecimento, mesmo em casos graves como o câncer e os cuidados paliativos.

Qual é o público que costuma procurar essa linha terapêutica?
Pessoas conscientes dessas questões filosóficas, que formulam muitas perguntas, que não são absolutamente contra a medicina convencional, mas que a consideram insuficiente para responder às suas dúvidas, pois precisam de algo mais, um médico que as entenda em sua complexidade, que as veja como são e não apenas como um
corpo. As mulheres são a maioria, especialmente as que enfrentam o câncer de mama. Pois trazem muitos questionamentos. O que essa doença me mostra? Como integrar esse aprendizado à minha vida? O que fazer com meus lhos? A quimioterapia ajuda, mas também me enfraquece, posso fazer algo mais?
O câncer é uma das doenças mais difíceis de curar. E, por isso, a que mais nos assusta. Como o sr., oncologista, trata desse problema?

Nos hospitais antroposóficos recorremos inicialmente aos mesmos procedimentos da medicina tradicional – exames, diagnóstico, cirurgia, quimio ou radioterapia –, mas também tomamos medidas adicionais endereçadas aos quatro níveis: físico, etérico, astral e o Eu. Procuramos amenizar os efeitos colaterais da quimioterapia que podem provocar fadiga severa, e também formulamos junto com o paciente questões acerca dos significados desse processo. Afinal, como se conhecer melhor através da doença? Além disso, combinamos diferentes medicamentos e terapias para fazer com que o corpo volte a pertencer à pessoa, que ela possa senti-lo novamente como uma roupa que se ajusta perfeitamente a ela. É preciso recuperar a vitalidade, além de estimular o sistema imunológico a combater as células cancerosas.
Do que são feitos os medicamentos antroposóficos e como eles agem no organismo?
Os medicamentos são feitos de substâncias naturais provenientes de plantas, minerais e animais como abelhas e corais. Não há nada sintético. Uma planta, por exemplo, é um ser vivo que possui certas competências ligadas ao seu ecossistema. Então procuramos integrar tudo o que ela pode obter do meio ambiente em favor de seus processos vitais como vitalidade, florescimento, odor, a liberação de alguma substância contra bactérias etc. Cada organismo é um mestre que ensina nosso corpo a se tornar mais saudável. O ser humano é um microcosmo que compartilha o mesmo processo evolutivo do macrocosmo. Então para cada processo patológico no ser humano haverá um equivalente em algum lugar na natureza. Temos que encontrá-lo e trazê-lo para o organismo estimulando o resgate de capacidades perdidas. É uma questão de ensinar o corpo humano a se curar através de professores que são plantas, minerais ou outros animais.

Esses remédios podem ser utilizados juntamente com os alopáticos?
Sim. Há muitas possibilidades. Por exemplo, uma pessoa com problema in amatório crônico no intestino precisa de cortisona nas crises agudas. Ao mesmo tempo, pode ingerir medicamentos antroposóficos. Com isso, conseguimos reduzir mais rapidamente a cortisona (que, sabidamente provoca vários efeitos colaterais quando tomada por longos períodos) e, mais cedo, seguimos apenas com os antroposóficos. Às vezes, é possível usar um medicamento antroposófico no lugar de um alopático. Por exemplo, substituindo drogas para dormir, que podem causar dependência, por algo natural. Depende de cada caso. E buscando o melhor para o paciente.

Se alguns medicamentos antroposóficos têm origem animal, como abelhas e corais, os pacientes veganos não podem receber esse tratamento?
Essa questão merece esclarecimento. Os veganos não precisam ingerir o medicamento se não quiserem. Mas é preciso explicar que todas as fórmulas que utilizamos são obtidas a partir de uma interação cuidadosa com a natureza. Os animais são criados num sistema biodinâmico, não como galinhas em fazendas de criação. Se mesmo assim a pessoa não quiser ingerir o medicamento, certamente vamos encontrar alternativas 
Voltando um pouco ao que o sr. falou no começo da conversa, sobre o equilíbrio tênue da saúde, poderia citar uma situação cotidiana que cause desequilíbrio entre os corpos físico, etérico, astral e espiritual?
Tomemos como exemplo o sono. Quando dormimos não estamos conscientes do processo de cura, da regeneração dos nossos órgãos e do funcionamento do sistema imunológico, mas o corpo está trabalhando nessas direções. O que é fundamental para a manutenção da saúde. Agora, se eu decido trabalhar 14 horas por dia e depois viajo a trabalho e sinto os efeitos do jet leg, provavelmente ficarei resfriado. Isso acontece porque a integridade das esferas física e etérica, relacionadas à regeneração
orgânica, foi afetada. Como disse, o ser humano está sempre no limiar do adoecimento. Basta um ligeiro desequilíbrio entre seus diferentes corpos. É claro que queremos realizar uma porção de coisas, nos relacionar, viajar, mas temos que levar em conta que nosso corpo é regido por leis e forças próprias que precisam se equilibrar.

Então, por mais cuidadosos que sejamos, não conseguimos atingir um equilíbrio pleno?
Saúde significa alcançar um bom equilíbrio, como na ideia de yin e yang da medicina oriental. Entretanto, não podemos ficar sempre saudáveis. Também temos que fazer coisas que vão nos deixar um pouco doentes. Acima de tudo, precisamos respeitar quão longe podemos ir. Hipócrates dizia que há desequilíbrios chamados de discrasia, desajustes remediados com algumas noites de bom sono. Por outro lado, há a doença que precisa do médico. Porque esta não vai embora num estalar de dedos. Isso não está muito longe do ponto de vista da medicina antroposófica.
Os médicos dessa linha recomendam terapias como massagem rítmica, euritmia, musicoterapia, arteterapia, entre outras. Qual é a importância dessas ferramentas
para o sucesso do tratamento?
Quando você prescreve um medicamento, o ser humano é o objeto. Se você indica uma terapia, ele é o sujeito, ou seja, tem de se mobilizar. Queremos que o paciente se torne ator do processo de cura, que ele aprenda algo ao longo dessa caminhada. Nesse sentido as terapias são muito válidas. Em geral uma possibilidade terapêutica desperta o interesse do paciente por outra técnica e assim a pessoa vai se aprofundando no autoconhecimento.
Há terapias que podem ser contraindicadas para algum tipo de doença, como certos tipos de câncer?
Nos tempos antigos muitas pessoas acreditavam que não deveriam se submeter a massagens, pois o câncer poderia se espalhar. Diversos estudos científicos já comprovaram que isso não procede. Um médico antroposófico que trata um paciente com câncer geralmente será um oncologista, alguém que entende a fundo a gravidade da doença. O risco de encontrar maus médicos está sempre aí, para todo mundo. Mas é mais fácil deparar com um médico convencional que não leva
em conta as diversas dimensões do paciente do que com um médico antroposófico que ignore essa realidade.
Qual a relação entre antroposofia, natureza e saúde?
A antroposofia embasou a criação do sistema agrícola biodinâmico, livre de pesticidas e outros produtos químicos. Um sistema que fortalece a saúde e ao mesmo tempo beneficia a natureza. Porque não basta os seres humanos buscarem a saúde, eles precisam de um planeta mais saudável. Isso é um exemplo de equilíbrio. Mas, mesmo
que você faça tudo corretamente, não há garantia de que não irá adoecer. Daí a importância de saber encontrar rapidamente um novo e melhor equilíbrio. Quanto mais rápido retornarmos ao eixo, mais saudáveis seremos. Não temos que alimentar a ilusão de que se fizermos tudo corretamente não ficaremos doentes.
De que forma a compreensão dos setênios (teoria que divide a vida em fases de sete anos, nos mostrando sua condição cíclica) nos ajuda a lidar com as crises emocionais?
Nossa história pessoal tem diferentes passos. Os primeiros anos de vida, a ida à escola, as turbulências na adolescência, a busca pela autonomia na idade adulta, a crise da meia-idade, e por aí vai. Não se trata de matemática. Cada ciclo pode ter um pouco mais ou menos do que sete anos. O fato é que precisamos desenvolver diferentes
aspectos em cada um desses períodos. Isso nos mostra que o ser humano está em constante desenvolvimento. Novos tempos trazem novos desafios. Essa perspectiva nos ajuda bastante a entender que de alguma forma permanecemos os mesmos, mas, por outro lado, agregamos experiências que não imaginávamos antes. No caso das doenças, cabe a nós médicos mostrar que elas podem ajudar o paciente a passar para uma nova etapa do seu desenvolvimento.

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