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“Sejamos realistas”

O que nos faz achar que merecemos mais dignidade do que qualquer ser humano de credo, raça ou origem diferente da nossa? A professora de filosofia e meditação Lia Diskin põe o dedo na ferida

Lia Diskin – Kiko Ferrite (divulgação Palas Athena)
Um dos maiores talentos de Lia Diskin é fazer o pensamento circular oxigenado por ideias das ciências, loso as, artes, estudos da religião e da mitologia. Dessas fontes inesgotáveis de sabedoria e do estudo comparado entre Ocidente e Oriente, ela encontra combustível para cruzar as fronteiras da ignorância e construir o diálogo, levando uns em direção aos outros. Nascida em 1950, em Buenos Aires, Argentina, mas radicada em São Paulo há 43 anos (veio passar um tempo e a diversidade cultural
e espontaneidade brasileira acabaram conquistando-a para sempre), Lia, formada em jornalismo e crítica literária, se tornou uma das principais referências do Brasil quando o assunto é cultura de paz. É cofundadora da Associação Palas Athena, uma organização não governamental sem fins lucrativos que surgiu em 1972 com o objetivo de dedicar-se ao desenvolvimento humano. A ONG, que criou uma editora para disseminar seus estudos filosóficos, é parceira da Unesco há 25 anos e já realizou 116 fóruns de paz, com destaque para a vinda do dalai-lama ao Brasil. Com eventos desse porte, nossa entrevistada do mês conquista visibilidade e consegue reverberar ideias sem restrição alguma de classe econômica, status, etnia, religião, cor, sexo ou idade. Algumas delas foram tema da conversa que você lê a seguir, transcorrida numa segunda-feira à tarde na sede da Palas Athena, no bairro dos Jardins, na capital paulista.
Como a jornalista e crítica literária acabou se tornando uma das principais vozes da cultura de paz?
Na formação como crítica literária, tive a honra de participar de encontros frequentes com Jorge Luis Borges, que se tornaram seminais para minha percepção da realidade. Labirintos e espelhos – sinais borgeanos do paradoxo que está em toda parte – foram minha trilha literária em terras da Filosofia. Passei a adolescência e parte
da juventude em tempos de ditadura, portanto questões como a paz e a justiça assumiram uma relevância viral.
Por que você veio para o Brasil?
Precisava de ares novos. Vim com a intenção de passar uns seis meses, e aqui estou há 43 anos! A diversidade cultural, o pluralismo religioso, a espontaneidade emocional dos brasileiros e a tendência a enxergar “o copo meio cheio” em todas as circunstâncias da vida – mesmo nas mais difíceis – foram ao encontro das minhas buscas e necessidades existenciais.

Recentemente você trouxe para o país o monge Matthieu Ricard, um dos maiores defensores do altruísmo. Por que esse tema tem se tornando tão vital?
Sejamos realistas. A situação mundial se tornou mais complexa. Nem me atrevo a dizer que é apenas complexa do ponto de vista econômico. É existencialmente. Por exemplo, há refugiados vindos de todos os lados. Por aqui, quem está abrigando essas pessoas? Que estruturas foram criadas para acolher essas pessoas? Porque as iniciativas têm que estar bem alinhavadas com o Ministério das Relações Exteriores e com o departamento de assistência social para que o acolhimento não se torne um incentivo que traga ainda mais gente. A Europa colonizou a África e hoje está recebendo os frutos dessa colonização, sejam refugiados políticos, sejam ambientais (porque simplesmente as terras estão se exaurindo e as pessoas precisam buscar alternativas de sobrevivência), ou por ordem social porque não podem viver
do trabalho que têm. Além disso, você tem uma questão ambiental que ficou crítica em 2015.
A falta de água, por exemplo.
Temos que ser honestos, a questão ambiental era perfumaria para a maioria dos cidadãos paulistas. Agora o tema está aqui na mesa. Falta água. Mas por que isso? Simplesmente porque durante décadas e décadas e décadas se viveu na fantasia. Na fantasia de que podemos viver cada um por si e para si. E o fenômeno vida não se comporta assim. Na vida nada está isolado, tudo é interdependência, aproximação e, me atrevo a dizer, solidariedade.
Criamos a fantasia de que somos autossuficientes?
O cocô da vaca nutre a terra que vai dar a grama para que o animal, ele mesmo, se alimente. E é assim em tudo. A gente é que criou a fantasia do indivíduo, como se não precisasse de nada nem de ninguém. Ao nascer, não sabemos sequer onde está o seio materno. Levamos 12 anos para adquirir capacidade biológica para poder procriar. Antes disso não conseguimos sequer essa que é uma das funções básicas da vida. Doze anos é muito tempo. E, por outro lado, não é suficiente para ter autonomia. São
necessários 16, 17, 18 anos para saber a dimensão do impacto de nossos atos. Depois, se eu chego a uma idade avançada, vou precisar de alguém que me dê banho, que prepare a minha comida, que me dê os medicamentos que preciso tomar porque já não sei ao certo que horas são, que me leve para passear. No começo da existência
e no fim da existência precisamos de alguém. De onde surgiu a fantasia de que no meio disso tudo eu sou absolutamente autônomo, independente?

De onde você acha?
Grandíssima parte vem de uma ilusão cognitiva que se desenvolve no Iluminismo e cria uma soberba de que nós podemos tudo, de que a inteligência humana vai conseguir resolver todos os problemas da humanidade.

Vem do século XVIII…
O Iluminismo jogou o homem no centro do mundo, e a Revolução Industrial criou instrumentos que geraram a ilusão de que cada um bastaria por si. Cada um teria uma geladeira, por exemplo. Até que começam os anos 1980 e surgem movimentos extraordinários como os da Escandinávia, em que prédios passam a agregar máquinas
de lavar roupa num único espaço dispensando a necessidade de haver uma lavanderia em cada apartamento. Qual é o sentido de que cada apartamento tenha uma máquina dessas? Quanto você usa uma? Todo dia, 24 horas, sete dias na semana?

O que esse exemplo indica?
Que se criou uma mentalidade de acumulação, de apropriação e de individualismo no uso das ferramentas que facilitam a vida absolutamente insustentável. Sejamos honestos: há necessidade de trocar o celular a cada seis meses? Claro que não. Isso não é um discurso verde, nem crítica de quem é contra o prazer. Pelo contrário. Se você tiver mais prazer vai consumir menos. Está provado que quem mais consome é quem está mais angustiado e estressado. O que quero dizer é que não há matéria-prima para produzir tudo para todo mundo se não for relevante. Somos 7 bilhões de habitantes. O planeta não vai suportar.
Há os que têm recursos para a máquina de lavar, o celular, carros, e os que não têm dinheiro para o ônibus…
O planeta não vai suportar essa disparidade. Ela gera raiva, revolta. Vai falar com os meninos da periferia. Eu dou aula lá e vejo que há, sim, o ódio social. Se cada vez que entram no shopping são enxotados para fora, se quando querem ver uma exposição que só tem aqui na Av. Paulista precisam desembolsar 12 reais – 12 reais é
muito dinheiro para eles –, cuidado. Quando você cria em um mesmo cenário pessoas com tamanho privilégio e outras despossuídas do essencial, não tem jeito, incita o ódio. Dentro da nossa família, se um irmão recebe mais carinho, atenção, ou regalia que o outro, o que acontece? Não há como compreender as razões de um merecer
mais do que outro. E tudo piora numa sociedade como a nossa, em que 70% da população carcerária é reincidente.
A cadeia é só um confinamento…
…Que faz as pessoas ficarem mais odientas. Nada na cadeia consegue nem refinar o comportamento nem criar habilidades socioafetivas. O indivíduo simplesmente sai de lá com um estado de humilhação pior do que aquele de quando entrou.
Todo o trabalho que você faz na Palas Athena é voluntário. Pode explicar o que é a ONG?

Não recebo nada pelo que faço na Palas Athena. Vivo das aulas e seminários que dou fora. Aqui é um espaço físico onde as ideias são geradas, amassadas, polinizadas para fora. Trabalhamos com mediação de diálogo e construção de consenso; ética aplicada e práticas meditativas. Posso dizer que o diálogo inter-religioso, em São Paulo, começou aqui. Aqui também se reúnem grupos que começaram a falar de justiça restaurativa. O sujeito roubou esse lápis e tem que, obviamente, se responsabilizar por isso. Mas eu não o responsabilizo simplesmente punindo. A justiça restaurativa busca fazer que essa pessoa compreenda que roubar um lápis não
é um ato saudável antes de fazê-la regressar para a sociedade.
Que outros temas a sociedade precisa olhar com mais generosidade?
Você tem ideia de como estão nossos anciãos? Estão totalmente abandonados – e seu cuidador também. Porque também não se valoriza o cuidador. Não se capacita e recapacita. Ele vai definhando com o idoso que cuida.

Preferimos não olhar para o que nos incomoda profundamente.
Tem outra coisa. Os presídios estão dentro da cidade. Os hospícios estão dentro da cidade. Em torno deles se cria todo um processo de vida – a pousadinha para quem vem de longe visitar o pai, o lho. Tem o restaurantezinho bem simplesinho. Tudo isso está dentro do mundo. Não é porque a gente coloca um muro que isso deixa de existir. Aliás, nós, cidadãos, mantemos isso com nossos impostos. Acredito que vai chegar um momento que as pessoas vão se perguntar: “Eu quero isso?” Eu não quero.
Para tanto precisamos ter alternativa…
E a primeira é começar a ver e perceber que a re-a-li-da-de não confere com a representação editada que eu faço dela. Não é porque coloquei muros e cortinas que aquilo que não quero ver deixa de existir. Isso é infantil, entende? Somos adultos. Temos que começar a dizer não, que não queremos sustentar o sofrimento.
Aí começamos verdadeiramente a pensar na alternativa.

Você é radicalmente contra a diminuição da maioridade penal. Pode falar a respeito?
Esse é um tema monstruoso. Colocar uma criatura de 16 anos em um presídio é perverso. Se você me fala que vai colocar em um lugar em que o adolescente vai receber disciplina, educação, noção de limite, ótimo, mas sabemos exatamente o que acontece no dia que essa criatura chega ao presídio. É abominante. Ela vai ser abusada por todos do pavilhão. Entendo que a população esteja irritada com a insegurança, mas essa não é a saída. É o que podemos fazer de pior.
A Casa do Zezinho nasceu da compreensão de uma filha que teve o pai morto por um adolescente. Em vez de raiva pela comunidade, ela foi instalar um centro de educação cujo maior objetivo é educar, dar autoestima e dignidade aos menores.
Exatamente. Fazer mais disso é urgente. Quem mais mata e morre são homens afrodescendentes de 15 a 23 anos. Ou seja, está se perdendo a faixa etária mais construtiva de uma sociedade. Na Palas Athena, cultivamos a semana Mandela, outra Martin Luther King. Queremos discutir por que se sustenta um preconceito. 
Na sua opinião, por que é?
Como podemos ser tão ignorantes que submetemos uma pessoa a viver sob preconceito todos os dias? É uma experiência que não se renova porque não se reflete a respeito. Simplesmente repetimos um comportamento. Na Argentina, quando era pequena, ouvia: “Cuidado com os ciganos porque comem criancinhas”. Um dia,
perguntei para minha mãe, uma pessoa culta, se ela já tinha visto alguma vez um cigano comer uma criancinha. Depois disso, nunca mais ouvi dizerem isso lá em casa. Precisamos fazer esse questionamento em massa. Mais e mais. De onde tiramos esses rótulos mentais que não correspondem à realidade? Uma mãe branca, negra, asiática, índia, aspira o que para seu filho? Que o filho tenha uma vida minimamente feliz e decente, e que tenha oportunidades melhores que ela. Isso é universal. Por que acredito que é apenas um direito ou uma escolha minha?
Depois de tantos anos do estudo comparado entre Oriente e Ocidente e entre diferentes tradições religiosas e espirituais, como define espiritualidade?
É o anseio universal de plenitude. Todos sabemos que há uma realidade profunda e intangível que nos escapa, que não conseguimos alcançar com nossos sentidos ou com nossa razão. E isso tanto fora de nós quanto dentro de nós mesmos. As vias de acesso a essa experiência ou contato são o que chamo “cartografias espirituais”,
criadas ao longo da história humana pelas diferentes culturas. Como disse Joseph Campbell, “a vida não é um problema a ser resolvido, mas sim um mistério a ser vivido”.

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