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Monja Coen – Michel Filho / Agência O Globo

Um monge dizia que o corpo é a moldura; a mente, espelho. Daikan Eno dizia que era impossível separar corpo e mente. Desde o princípio, dizia, nada existe. Prótons, elétrons, nêutrons – nada é fixo, nada é permanente. A mente é incessante e luminosa. Não precisa ser limpa. Limpar do quê, afinal? O que é a poeira do mundo? Como purificar o imaculado? Daikan Eno falava do ponto de vista do absoluto.

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Não que o outro monge estivesse errado. Mas ele falava do relativo. Era a escola gradual. Pouco a pouco, praticando, se purificando, seus discípulos acessavam a mente suprema. Daikan Eno foi noutra direção. Era a escola súbita. Não é pouco a pouco que se percebe a verdade. É num momento. É instantâneo. Durante muitos anos, as duas escolas se desenvolveram. Uma ao norte e outra ao sul. Sekito Kisen Daioshô era também monge chinês, bisneto discípulo de Daikan Eno. Transcendendo a dicotomia entre súbito e gradual, restabeleceu a linhagem declarando a identidade do relativo e do absoluto. Muitas vezes discutimos, debatemos. Uma pessoa fala do ponto de vista do absoluto.

Outra, do relativo. Podem não se entender se não houver uma compreensão maior. Porém, quando percebemos que absoluto e relativo se completam, não há discussão. Na Índia antiga, um homem se aproximou de Buda, na floresta onde ele tranquilamente meditava com seus discípulos. Chegando à sua frente disse: “Vim aqui discutir a verdade com o senhor”. Levantando as pálpebras, Buda olhou em seus olhos com ternura e disse: “Se vamos falar a verdade, não poderá haver nenhuma discussão”. O diálogo é mais importante que o debate. Dialogar é ouvir para entender. Entender o outro é entender a si mesmo, é compreender a mente humana.

Meu mestre de transmissão, Yogo Suigan Rôshi, quando encontrava alguém com opiniões muito diferentes da dele, apenas dizia: “Essa maneira de pensar também existe”. Não discutia. Era respeitado e ouvido por todos. Foi professor dos professores no curso de formação de professores do mosteiro. Como que, sem abandonar nossos ideais, podemos ouvir, entender e continuar o caminho sem perder o foco? A taça de cristal, cheia de água pura, pode se tornar uma lente que distorce a realidade. Até mesmo essa distorção é a realidade. Meu olho vê o que a taça transforma. Vê a taça, vê o que é além da taça. Será que alguma coisa é de mais ou de menos? O olhar que vai além da taça e percebe o ângulo da taça é o olhar Buda, o olhar de sabedoria. Esse olhar é súbito e gradual ao mesmo tempo. Além de toda a dualidade, contém a dualidade.

O relativo (o local) está no absoluto (o global). O global se manifesta no local. O local interfere no global. O que cada um de nós faz mexe com a teia da vida. Quando a teia da vida se move, cada um de nós se modifi ca. Somos o todo e o todo é em cada partícula. Não somos parte do todo. Somos o todo manifesto em cada ser.

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