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Cardeal do sorriso

Justiça se faz com alegria, pregava Dom Paulo Evaristo Arns, religioso que combateu injustiças sociais e políticas com um misto de ternura e coragem. Servir ao próximo era, a seu ver, a maneira mais eficaz de semear o amor divino

Cardeal do sorriso – Luciney Martins

“A alma do serviço é o amor autêntico.” Essa declaração sintetiza a essência do legado de Dom Paulo Evaristo Arns, quinto arcebispo e terceiro cardeal da Arquidiocese de São Paulo, falecido no último dezembro, aos 95 anos. A fidelidade aos princípios franciscanos – marcados pela simplicidade, pela humildade e pelo compromisso com os pobres – permeou seus dias. “Servir é dar esperança. A única grandeza da Terra consiste em servir a Deus e aos homens”, ele dizia, enaltecendo a potência desse pacto que nos enlaça aos nossos semelhantes. “Abrem-se caminhos para quem abre uma senda para o outro.”

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Arns atuou fortemente nas periferias das cidades ao mesmo tempo em que se engajou na defesa dos direitos humanos, segundo ele, um “movimento de amor prático”. Soube abraçar as mazelas desse mundo sem perder de vista a alegria. Pois o contentamento genuíno é o pilar fundamental da expressão franciscana, sua escolha de alma dentro da tradição católica. Não por acaso, Francisco e seus companheiros eram chamados de frades contentes, portadores de jovialidade, paz,  fraternidade universal. Assim nos lembraremos de Dom Paulo, o cardeal do sorriso.
Com sabedoria, ele defendia a alegria duradoura, aquela que brota da confiança em dias melhores. Os devotos, ensinava o querido religioso, devem se mirar na força inexorável do astro rei. “Repare no Sol. Como é que ele faz com a noite? Aparece novo e dá alegria a todos.” A chama de sua fé era inabalável. “O cristão está sempre alegre, porque vive na esperança e na certeza da salvação em comunidade. Ele tem que ser luz: pela vida, pelas palavras, pelos gestos e pelo testemunho.” Boa parte desse júbilo, ensinou o mestre, emerge da sensação de pertencimento à teia humana. “Fomos feitos para a comunhão, e não para o isolamento”, ele ratificava.
A participação responsável era um lema caro. Isso significa colocar a fé em prática para o surgimento de uma sociedade mais harmoniosa. “A transformação do mundo começa na hora em que cada cristão assume responsavelmente o seu papel social, para a construção do bem comum”, defendia. Que fi que claro, Dom Paulo não clamava por nenhum tipo de heroísmo, apenas por alguma parcela de disposição e boa vontade. “Deus não precisa de gigantes para mudar a história, mas de homens dispostos a lutar pelo povo”, esclarecia o arcebispo.
Contudo, o religioso foi um gigante. Com firmeza de espírito, ergueu e sacudiu a bandeira da justiça em plena ditadura militar. Na década de 1970, fez campanha pelo fi m da tortura e pelo restabelecimento da democracia no país. “A grandeza do homem está em não se cansar na luta pela justiça e pela paz. É na justiça que a verdadeira comunhão se transforma em misericórdia”, acreditava. A exemplo de Jesus, que, como lembrava o cardeal, se levantou contra a hipocrisia, os abusos de poder e a avidez dos ricos, todo devoto tem uma missão muito clara a seguir. “Enquanto houver uma só injustiça no mundo, o cristão saberá onde empenhar a vida.”
 
Nascido em 14 de setembro de 1921 em Forquilhinha, Santa Catarina, quinto de 13 fi lhos (entre eles Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança e morta num terremoto em Porto Príncipe, durante missão humanitária), Dom Paulo Evaristo Arns foi frade franciscano, graduou em filosofi a e teologia e doutorou-se em letras na Sorbonne, na França. Em 1970, foi nomeado arcebispo metropolitano de São Paulo pelo papa Paulo VI. Dois anos depois, fundou a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, engajada na defesa dos perseguidos pelo regime militar. Denunciou a tortura e foi símbolo de resistência. Escreveu 57 livros, entre eles Estrelas na Noite Escura (ed. Paulinas). Morreu em 14 de dezembro de 2016. dompaulo.org.br