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Elas, o surfe e o mandacaru

Após enfrentarem os desafios do universo do surfe, predominantemente masculino, elas criaram a Congo e hoje são as únicas mulheres no país que fazem o processo inteiro da fabricação manual de uma prancha

Anne Cavalcanti e Tiala Rocha – Arquivo pessoal

“Trabalhar para passar mais tempo no mar.” Esse foi o ponto de partida e de inspiração das surfistas Anne Cavalcanti e Tiala Rocha, ambas com 27 anos, mulheres negras e nordestinas, para mudar o rumo de sua vida em direção ao que elas tinham como verdadeira e profunda paixão: o surfe. Moradoras de Salvador, na Bahia, há dois anos trocaram a carreira de concurso público para produzir pranchas. O surfe já fazia parte da rotina – e da essência – de cada uma delas, porém a troca com as pranchas e com as ondas do mar acontecia apenas nas horas vagas. Quando Tiala (que aparece na frente desta foto ao lado) tinha 16 anos, já participava de campeonatos pelo litoral baiano, enquanto Anne, que estreava no mundo do surfe, era despertada por um novo olhar. Além da prática do esporte, seu interesse era também explorar os bastidores do surfe e descobrir como se faz uma prancha – a protagonista na vida de todos os surfistas. Em busca dessa resposta, a dupla passou a dividir suas horas livres entre as ondas do mar e o que está por trás do mundo do surfe, desbravando lojas, fábricas, modelos de prancha, etapas de produção e tudo o que gira ao redor desse universo. Para se aprofundar e criar algo diferente do que já existia no mercado nacional e internacional, Anne fez um curso com o shaper (profissional que dá molde à prancha de forma manual) Henry Lelot – pioneiro na área –, e tudo começou a fazer mais sentido em sua na vida. “Foi um grande mestre”, lembra. Depois da sua formação, não havia mais dúvidas: Anne pediu demissão do seu emprego e, ao lado de Tiala, deu início a um novo negócio, onde fosse possível unir o trabalho com o que as parceiras de vida, e agora também sócias, mais amam fazer. Nasceu assim, na inspiradora praia de Itapuã, em Salvador, a Congo: a única fábrica de pranchas idealizada e constituída só de mulheres. “Fazemos o processo inteiro da fabricação manual de uma prancha, desde o projeto criativo até a finalização artística”, conta Anne, arrematada por Tiala, que complementa: “A ideia era inovar, despertar uma consciência nas pessoas”, acredita. Elas sabiam desde os primeiros dias que a trilha não seria fácil. Além dos desafios de saírem da zona de conforto e de assumirem o risco da falta de estabilidade financeira, outros obstáculos foram surgindo ao longo do caminho. O maior deles, sem dúvida, foi enfrentar o predomínio e a influência masculina que existem no universo do surfe no país. De acordo com a Associação Brasileira de Surf Profissional, existem cerca de 350 surfistas profissionais homens e apenas 32 mulheres em todo o Brasil. Nos bastidores da produção de pranchas, só Anne e Tiala. Além disso, a dupla ainda se deparou com outro problema – este, talvez, imprevisto: entre as poucas mulheres que trabalham nesse mercado, a maioria é de cor branca.

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A realidade dos fatos, embora desanimadora, não foi impedimento para que Anne e Tiala seguissem em frente. “O preconceito sempre foi combustível para nossas conquistas”, afirma
Tiala, que, ao lado de Anne, nunca viu o fato de ser mulher negra em um mercado com mais homens brancos como uma dificuldade, e sim como um diferencial. “O preconceito existiu,
mas, por conta do nosso foco e determinação, acabou até perdendo peso na nossa trajetória”, acredita. Não por acaso, a resistência está fortemente simbolizada na marca. Congo
recebeu esse nome em homenagem à República do Congo, país na África Central marcado por lutas históricas e constantes. Junto do nome, na marca, sempre vem o desenho de um mandacaru, uma das plantas mais resistentes do nordeste, região que acolhe a cidade natal dessas duas mulheres. “Escolhemos unir dois símbolos de força: Congo e mandacaru, justamente para valorizar nossa cultura e história e causar um impacto totalmente diferente no mundo do surfe”, afirma Tiala. Além da confecção de pranchas, a Congo traz em sua essência valores e propósitos que promovem a diversidade, a autonomia feminina e a valorização da cultura negra no mundo das ondas. Para as criadoras, que sempre batalharam para quebrar paradigmas e estereótipos sobre as mulheres no mar, todas, independentemente de classe social, cor, idade e companhia, podem surfar. “Muitas mulheres já se empoderaram e não têm mais vergonha de estar sozinhas no mar surfando perto de dez homens surfistas”, comemora Anne.

Outro ponto destacado pela dupla como diferencial é o “fazer com as mãos”. Assim como peças de arte e de artesanato, as pranchas da Congo carregam toda a energia e a história
que há por trás de produtos feitos por pessoas, indo na contramão do mercado tradicional que costuma colocar suas forças na produção em escala. “Pode até parecer uma forma muito
romântica de ver essa fabricação, mas as pranchas feitas à mão têm detalhes humanos que nenhuma máquina consegue reproduzir. Colocamos nossa paixão em cada peça, sabe?”, conta Anne. O resultado disso é que as pranchas produzidas a quatro mãos femininas não só expressam sentimentos mas também fazem um convite para todos refletirem sobre
a cultura e o tempo humano de um trabalho manual. “Só entregamos para as pessoas aquilo que gostaríamos de receber delas”, afirma. Para chegar a esse nível, o trabalho é minucioso e já começa na escuta, ou seja, no entendimento real do que o cliente, de fato, quer. Em seguida, passa pela criação da peça em terceira dimensão (3D), onde são definidas
medidas como peso, altura e profundidade, além do formato desejado. O próximo passo, muito esperado, é a produção do shape (a forma da prancha), momento de cortar e de, finalmente, dar vida à peça. Depois vem a laminação e o acabamento com a lixa. A ilustração que dá o toque final é feita por artistas que pesquisam e retratam seus traços partindo de referências da cultura nordestina e africana. Figuras da história mundial que fizeram diferença na luta de tantos povos contra a discriminação racial e social, como o político Nelson Mandela, o pintor africano Aboudia e a militante americana Angela Davis, costumam estampar as obras de arte da Congo. E é assim, entre conversas, cortes, música e arte, que cada prancha é feita por lá. A entrega, sempre em mãos, costuma levar dois dias após o pedido. “É incrível perceber a satisfação das pessoas ao receberem nossas pranchas e partirem felizes para o mar”, fala Tiala. E é com brilho nos olhos que as duas mulheres, empreendedoras, nordestinas e sonhadoras, aprenderam a nadar contra a correnteza e a manobrar todas as dificuldades e os contratempos da vida: feito uma série de ondas gigantes, só que sempre na direção – favorável – do mar.

Manual do sonhador

A união de Anne e Tiala é um exemplo de sororidade, segundo a psiquiatra e psicanalista Fabiana Guimarães. “A origem dessa palavra está no latim soror, que significa ‘irmãs’”, diz.

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1: A sororidade fortalece a quebra dos estereótipos da sociedade atual, sendo importante para as mudanças dos papéis de gênero. Anne e Tiala mostram que a união entre elas as torna mais fortes para enfrentar as adversidades.

2: A existência de amizade íntima e presente, de vínculos familiares de apoio e de relações saudáveis no ambiente de trabalho é fator relevante da felicidade, segundo a psicologia positiva. Isso Anne e Tiala já sabem de sobra!

3: Ideias inovadoras, muitas vezes, são vistas com desconfiança, sofrem preconceito inicial e podem desmotivar. A dupla, porém, ampliou seu conhecimento em meio às dificuldades. E isso as levou ao sucesso.

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Anne Cavalcanti e Tiala Rocha

Idade: 27 anos
Função: proprietárias da Congo.
Anne é shaper designer e Tiala é laminadora e contadora
Mantra: “Realizamos sonhos, divertimos pessoas e disseminamos a nossa cultura através do surfe”
Como gostariam de ser lembradas: duas mulheres que conseguiram levar a cultura negra e nordestina para o mundo do surfe
Eu tive um sonho… “Trabalhar para passar mais tempo no mar”

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