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Lugar de esquecer

Em contato com os quatro elementos da natureza – água, terra, fogo e ar – a criança mergulha no tempo sem pressa da fantasia. Despe-se de regras do universo adulto e cria para si um espaço expandido de possibilidades do que virá a ser um dia

Lugar de esquecer – Renata Meirelles/ Projeto Território do Brincar
Assentado na beira do mangue, na cidade costeira de Oiteiros, no Maranhão, está o pequeno estaleiro de seu Manoel. Enquanto o homem trabalha em seus veleiros, meninos e algumas meninas da comunidade circulam livres por ali e aproveitam as sobras de material para fazer barquinhos que irão singrar as águas amazônicas. O dono do lugar não se importa com a presença das crianças, não fica ensinando isso ou aquilo, apenas deixa que aprendam com os olhos e com o exercício das mãos. Assim, a meninada manuseia serrote, martelo, madeira e ferro e inventa brincadeiras de embarcação, carpintaria e fundição. Fazer barquinhos é se ver cortando, sulcando, laminando e navegando leve e veloz com o sopro do vento.
“Criança é assim mesmo: quer a verdade do mundo. Bota o real em atividade, mesmo que na imaginação. É despreocupada com o tempo, não quer contê-lo e por aí cria, interliga saberes, encontra a dimensão da alma”, conta Gandhy Piorski, artista plástico, fi lósofo e pesquisador do lúdico na cultura popular brasileira.
Há mais de dez anos, ele viaja por comunidades tradicionais do Brasil e pesquisa o livre brincar. Piorski foi o curador da exposição Mais de Mil Brinquedos para a Criança Brasileira (Sesc Pompeia, 2013) e é cocriador do fi lme Território do Brincar. “A brincadeira, o lugar real de viver, não pode esperar. Por meio do brincar a criança se autoinstrui e a ferramenta primordial desse processo é sua capacidade de inventar”, afirma o pesquisador.
Força da natureza
Na observação das crianças, Piorski descobriu e passou a estudar o psiquismo das brincadeiras infantis envolvendo os elementos água, terra, fogo e ar. Para elaborar sua teoria, bebeu na fonte do pensamento de Gaston Bachelard e sua vasta obra sobre a imaginação. De modo sintético, pode-se afi rmar que o pensador e poeta francês Bachelard via os quatro elementos da natureza como representações de sentimentos humanos primitivos. O ar simboliza a leveza, a elevação e a libertação que permitem sonhar; a terra está associada ao movimento dual de expansão (germinar o terreno) e introspecção (ir para as profundezas); a água, com seu potencial transitório, equivaleria ao amolecer-se diante das maiores rudezas; e o fogo reacenderia a vontade de entusiasmar-se e ultrapassar limites.
É exatamente assim quando as crianças brincam. “Elas entram em contato com forças mitológicas arquetípicas, oníricas, que representam o acúmulo da experiência humana na terra e a própria memória da natureza. Isso acontece sempre que há silêncio, solidão no brincar e o manuseio de materiais naturais”, explica Gandhy.
Ao longo da história, toda uma sorte de alquimistas, erveiros e místicos reconheceram o poder das forças naturais sobre o corpo e a alma humana. Valiam-se também dos sentidos (tato, audição, olfato, visão e paladar) e da intuição como guia para plantar e para curar. Esse campo cheio de mistérios foi sendo suplantado pela necessidade de o homem controlar e explicar todas as coisas. O único lugar onde esse saber ainda vive com intensidade é na infância. Ao brincar livremente, resguardada dos olhares disciplinadores dos adultos, a criança sai do universo da razão e da linearidade e mergulha no tempo sem horas do pensamento criativo, das invenções e fantasias. Os africanos reconhecem isso. Em banto, um dos muitos idiomas do continente, a palavra brinquedo signifi ca “lugar do esquecimento”, onde nos despimos de tudo para nos tornar um com o todo.
Os quatro elementos conduzem gentil e poeticamente a essa viagem já que estão gravados no mais profundo da memória humana. O mero contato com essas forças seria sufi ciente para despertar tudo aqui que Bachelard já mencionara. “Nas brincadeiras na água nasce a entrega. As crianças precisam desse espaço para fluir. Não à toa, podem se liberar das marcas e traumas que enrijecem o corpo”, observa Piorski. Quem gosta mais de piscina, praia, poça d’água que as crianças? Mesmo quando reinam fora dela, estão mental e emocionalmente conectadas ao meio. Para fazer barquinhos, por exemplo, é preciso moldar a estrutura pensando que navegue no corpo das águas. A imaginação está lá, nesse curso líquido, move-se em curvas e então descansa. “Ao final da criação, vemos os meninos ali na beira da praia, do lago, ou de onde for, deitados e entregues num devaneio de contemplação”, lembra o estudioso.
Em oposição, a terra é o elemento da materialidade e da concretude. Sustenta, alimenta e traz a vontade de se entranhar e se enraizar na vida. “Em tudo o que envolve esse elemento – brincar de casinha, comidinha, empurrar carrinho ou fazer de conta que é vaqueiro – a criança quer transpor o universo adulto”, explica o pesquisador. Por outro lado, quando quebra de propósito um boneco, ela está querendo conhecer seu interior, a alma por trás daquela forma estabelecida. Quer buscar o que está oculto e o que não é possível acessar com os olhos.
Dessa forma, o pesquisador costuma dizer que, em todas suas andanças, viu a meninada brincando com a anatomia da vida. Os menores gostam de cavar buracos e investigar o que está lá dentro. Na companhia de um pai brincalhão, encontrar um pedaço de osso enterrado no quintal pode ser a porta de entrada para um mundo de dinossauros que habitam bem ali abaixo.
Às vezes, é preciso ir para debaixo da cama, fazer uma cabana bem pequena de lençol e se guardar ali. A audição se amplia e os pequenos escutam histórias imaginárias e sentem no corpo a expansão de todas as emoções. “O adulto precisa acordar em si essa delicadeza, pois quando não percebe o momento e arranca o menino de uma aventura como essa, estabelece uma cisão”, alerta Piorski. Brincar é estabelecer vínculo e intimidade com as coisas do mundo.
Por todos os lugares em que andou – da Zona da Mata pernambucana ao litoral cearense, de Parasinho, no Rio Grande do Norte, aos Lençóis Maranhenses e chegando em Abaetetuba, no Pará –, o estudioso colheu um pouquinho de inspiração e notou que as crianças recuperam da natureza pedaços de palha, varas de bambu, folhas de palmeira e restos de tijolo para fazer suas casinhas. O arquétipo da casa também invoca ancestralidade.
Brinquedos de materiais artificiais e de falso peso não contêm o mesmo poder. Que frustrante pegar um alicate de plástico para usar numa porca de ferro! A criança está procurando a integridade das coisas, e aquilo não repercute no corpo dela. Ela precisa do contato com uma sorte de materiais (moles, fibrosos, duros, lisos, ásperos, úmidos, viscosos). Nessa experimentação, Piorski percebeu que martelar um prego, por exemplo, desperta a vontade de a criança ir até o fi m, de se comprometer com aquela dificuldade e concluir a tarefa. E, se machucar o dedo na execução, vai reconhecer o valor das outras forças e sentir reverência.
Gandhy segue contando como o fazer manual e o tato são imprescindíveis. “O tato é o mais primitivo de todos os sentidos, a âncora de toda expansão neuronal da criança. Mais ainda, é olho d’água de um riacho que desemboca nos infindos campos da psique”, observa.
Viagem sideral
No ar reinam o movimento e a expansão. A menina pula corda e quer alcançar o céu. As pipas dialogam com as alturas, a amplitude e o vigor do vento. Os meninos conhecem os nomes e os hábitos dos passarinhos, e as penas deles são matéria-prima do faz de conta. Com elas fazem arco e flecha, petecas e hélices dos helicópteros feitos de sabugo de milho. Então, estudam a mira, a pontaria, o olhar aéreo e se lançam na dimensão do voo.
Com o fogo, a imaginação é desobediente e transgressora. A criança entra na cozinha e rouba os fósforos para brincar escondido. “Quem brinca com fogo faz xixi na cama”, diz o ditado. Mas, apesar de todo o cuidado necessário, para a psique, o que a criança quer é romper com esse tabu de que não pode acessar alguma coisa. Ela precisa experimentar. Quanta magia existe em queimar uma palha de aço na fogueira e girá-la no ar, formando um desenho incandescente, brincadeira ainda comum no interior do país, onde muitas casas mantêm o fogão à lenha e um quintal. Na roda de fogo, ela, a criança, é a heroína da turma que todos veem. As brincadeiras de espada, de luta, de arma e revólver, antes de serem o estereótipo violento das cidades, fazem parte do desejo de dominar o mundo.
Assim, os pequenos vão buscando se autoeducar por meio da experiência livre e espontânea. No imaginar e no fazer infantil existe a alma e a linguagem nascente da própria criança. É por esse caminho que ela se nutre, cresce, ganha vitalidade e seus pensamentos se materializam. “Só precisamos deixar que isso aconteça: acolhendo e valorizando esse caminho, tal qual o alquimista chinês que, para facilitar o curso do rio, é presente e atento e sabiamente o deixa fluir”, acrescenta Piorski, o filósofo que se debruçou sobre teorias e práticas vivas para nos lembrar que, enquanto brincamos, experimentamos a doce aventura de estar no mundo e nos fazermos inteiros.

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