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Onde tudo silencia

A cozinha é um espaço para preparar as mais variadas refeições e também para aquietar a mente, acalmar o corpo e ouvir a voz que vem do coração

Ana Holanda – Vivi Manzur

Passei alguns meses sem poder preparar o jantar, algo bem corriqueiro na minha rotina e que faço com prazer. Isso aconteceu porque minha cozinha precisou passar por uma pequena obra. Era para ser um reparo simples, por conta de um vazamento, mas se transformou em uma reforma que durou semanas sem fim. Havia tempos eu tentava descobrir de onde vinha a umidade que cismava em brotar no gabinete embaixo da pia. Chamei uma série de profissionais e ninguém descobria a origem daquilo. Até que perdi o gabinete por causa da umidade.
E foi preciso tirar e quebrar tudo igualmente. O culpado: um cano rachado que, claro, demorou para dar as caras. Mas não era algo enorme, de fazer jorrar água. Era de pingo em pingo, o que provoca estrago lento e silencioso. Até que penetra em tudo, apodrece. E ficar sem aquele lugarzinho da casa foi mais difícil do que eu imaginava. Não pela sujeira ou pelo transtorno do quebra-quebra, mas por não poder cozinhar. Preparar um bolo, uma torta, um assado é, para mim, terapêutico. É quando paro e penso sobre o que estou sentindo.

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É, principalmente, sobre aquietar. E eu não pude fazer isso por longas semanas. Às vezes, os sentimentos são como os pequenos vazamentos, vão minando nosso corpo e alma. E, se a gente não escancara tudo, abre, derruba, olha com cuidado e atenção para o problema, ele vai, lentamente, nos destruindo e causando estragos por dentro. Difícil mesmo é trazer esse sentimento à tona, entender, perceber e, dependendo do que for, aceitar, acolher e, assim, resolver, melhorar ou transformar.

Passei a entender mais claramente o papel profundo que a cozinha pode ter na minha vida – na de todos nós, na verdade – quando li O Zen na Cozinha (Cla Editora), da monja Gyoku. Na obra, além de conhecer uma pessoa que, como eu, ama intensamente cozinhar e entende que comida é relação, descobri que existe uma linha na tradição zen-budista chamada
culinária shôjin. Gyoku nasceu numa casa de cozinha cheia de aromas. Lá era um território do sentir, do conversar, do apreciar a vida enquanto o caldo apurava e a água fervia. E a culinária shôjin é praticada nos mosteiros, e nela o tenzô ou cozinheiro é sempre um monge com alta elevação espiritual. É ele quem decide o que será feito todos os dias, seguindo aquilo que a natureza está oferecendo naquele momento, e também quem coordena o trabalho de fatiar, separar, lavar e cozinhar. Através das palavras de Gyoku passei a entender aquilo que minha alma já intuía: preparar uma refeição é também um caminho para acalmar e silenciar. Ou, para quem preferir, uma maneira de meditar. Mas, para que isso aconteça, é necessário um mergulho dentro da gente. Assim, hoje, entre uma cenoura fatiada, uma cebola picada e uma couve-flor lavada, eu vou me recolocando no eixo, me reconstruindo e reorganizando. Acho isso de uma beleza enorme: a cozinha e o alimento de todo dia ajudando a florescer nosso melhor. Tudo dentro do espaço de uma singela cozinha.