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Um sopro de luz

A força dos ventos está dando impulso a uma forma mais sustentável de eletricidade. Move o ar e o sonho em um projeto que está construindo a matriz energética do futuro

Um sopro de luz – Bukhavets Mikhail / Shutterstock
Quando estamos atentos e firmes no momento presente, até a brisa mais suave não passa desapercebida. Com ela, vem um arrepio na pele, um sorriso, um bem-estar. Às vezes, sentimos seu toque como um aviso celeste a nos sugerir coragem, ou como um recado para permitirmos que leve embora o que já não nos serve mais. Seja como for, é sempre energia. E energia de Éolos, o deus grego que habitava a ilha Eólia e fora presenteado por Zeus com o poder de despertar e amansar os ventos. Tinha nas mãos pura energia atmosférica, bastante antiga em nossa história e parte do nosso imaginário há séculos.
Para o navegador e escritor paulistano Amyr Klink, grande estudioso dessa área e empreendedor de expedições marítimas, a história mundial das conquistas territoriais está intimamente ligada a tal ação. “Não há como falar da ocupação gradual dos continentes sem estudar esse regime, sem notar que foi a compreensão do funcionamento em larga escala dessa força da natureza que propulsionou toda a História”, afirma. Com as caravelas, pode-se dizer mais: que a força dos ventos descobriu o Brasil.
Se nas embarcações à vela, essa energia impulsiona o deslocamento pelos mares e oceanos, nos antigos moinhos costumava ser usada para bombear água ou moer cereais, transformando os grãos em farinha. Em ambos os casos, a energia cinética produzida pelo vento (ou seja, aquela relacionada ao movimento gerado nas hélices dessas construções) funcionava como força motriz para as engenhocas que trituravam os grãos ou puxavam água de lugares mais baixos para ser usada mais acima, em sistemas de irrigação ou, por exemplo, na drenagem das terras planas e alagáveis dos Países Baixos.
De tão comuns na paisagem e no cotidiano dos europeus desde a Idade Média, os moinhos de vento viraram personagem da literatura, eternizando-se na obra-prima do espanhol Miguel de Cervantes. Em Dom Quixote de La Mancha, publicado no início do século XVII, o famoso cavaleiro trava uma luta com cerca de 30 ou mais dessas estruturas (que ele ora vê como gigantes cruéis, ora como simples edificações com hélices movidas pelo ar). “O episódio, desde então, tornou-se o paradigma da luta inútil”, compara o professor doutor em literatura comparada Gustavo Bernardo, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Lutar contra moinhos de vento é a própria luta da ficção contra a realidade. Luta dessa forma quem assume sua fantasia, quem faz ficção, quem lê ficção. É uma luta inútil do ponto de vista prático, como
sabemos. Mas, por isso mesmo, é uma luta que vale toda a pena do mundo”, conclui Bernardo, em uma crônica dedicada à cena emblemática de Cervantes.
Cruzando a linha do tempo até os dias atuais, os ventos mais uma vez estão soprando mudanças importantes para a sociedade. Transformar vento em luz elétrica era criação imaginária na época de Dom Quixote. Hoje já é realidade (e desejo) cada vez mais comum em vários países, inclusive no Brasil. Nas usinas ou parques eólicos contemporâneos, essa força invisível faz girar grandes hélices ligadas a uma turbina que converte essa energia cinética em mecânica, e esta, em seguida, aciona um gerador de eletricidadePor aqui, as eólicas, respondem em quarto lugar como fonte geradora de energia. Acendem 5% de cada lâmpada do país.
Mas, para produzir eletricidade, é preciso mais do que aquela brisa gostosa que carrega folhas e espalha sementes. Os ventos, neste caso, precisam ser fortes e constantes. Não é o caso de pedir ajuda ao deus Éolos para despertar a fúria das ventanias. Há lugares especiais na Terra que concentram essa energia. A costa brasileira, por exemplo, especialmente no Nordeste, tem essa característica. E é por isso que a região abriga boa parte dos 371 parques eólicos em operação no país. “Em fevereiro deste ano, a potência eólica instalada na matriz elétrica nacional alcançou uma marca equivalente a uma usina hidrelétrica do porte de Belo Monte”, comemora Elbia Gannoum, presidente executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica). “Em 2019, os ventos serão responsáveis por cerca de 10% de toda a capacidade de produção de energia elétrica no Brasil”, estima.
Há boas razões para desenvolver o potencial eólico por aqui. A primeira delas é que, além de ser abundante em terras tupiniquins, essa é uma fonte de energia limpa e renovável, algo muito significativo em tempos de combate ao aquecimento global e às mudanças climáticas. Apesar de ser o décimo maior produtor de energia eólica, o Brasil lidera o ranking mundial de crescimento do uso dessa fonte alternativa, mais amiga do planeta. Para ter uma ideia, entre 2003 e 2015 o governo federal destinou mais de R$ 19 bilhões em financiamentos do BNDES para iniciativas ligadas à energia eólica. “É interessante notar que o maior potencial de exploração eólica está exatamente no Nordeste, nos estados mais carentes do Brasil. Isso é bom porque é uma oportunidade de crescimento econômico, de mudanças sociais”, diz Elbia.
Outro aspecto favorável que os ventos trazem é a geração de empregos, que já somam mais de 40 mil postos de trabalho no setor. “Sem contar que para receber financiamento do BNDES, é necessário que 80% de todo o maquinário seja produzido em território brasileiro, por empresas nacionais ou transnacionais instaladas no país, e isso acaba incentivando a indústria a se desenvolver dentro das nossas fronteiras”, conta a presidente executiva da ABEEólica.
O avanço tecnológico também tem sido grande aliado ao tornar os equipamentos mais baratos e eficientes, aumentando o interesse dos investidores e criando um círculo virtuoso para todos. Círculo lembra movimento. Vento é ar em movimento. Em muitas culturas, o ar está ligado à mente, ao campo das ideias. Ambos não podem ser vistos, mas sentimos sua presença e experimentamos seu poder.
Bons ventos
Cada estação corresponde a um dos quatro pontos cardeais. Segundo essa cosmologia, esse frio de inverno que experimentamos, por exemplo, é resultado da força do vento do Norte, que purifica a Terra e convida as pessoas a ficar mais fechadas, mais introspectivas, como uma forma de manter o calor. É também um momento de renovação e preparação para a entrada da primavera, quando os ventos do Leste trarão o desa o de sair da toca, de olhar para fora, de mostrar franqueza e disposição.
Seja qual for o vento predominante, ele sempre vem acompanhado de um convite para sair da inércia e tomar uma decisão. Conectar-se com esse poder que rege os ciclos e os ritmos da natureza é um jeito de se alinhar também ao propósito de vida da humanidade, que caminha em direção a um maior cuidado com as pessoas e com o planeta.
Eólica x hidrelétrica
A expansão da energia eólica no Brasil simboliza uma rajada de mudanças na forma como produzimos luz. Até bem pouco tempo atrás, havia um consenso de que as usinas hidrelétricas eram a melhor forma de geração de energia no país. Elas utilizam água, um recurso renovável, como fonte – limpa – de energia. Mas provocam impactos que já não são aceitos por uma parte crescente da sociedade.
Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a construção de usinas hidrelétricas no Brasil já inundou mais de 34 mil quilômetros quadrados de terra e provocou o deslocamento compulsório de cerca de 200 mil famílias. “Defendo que se esqueça do tal potencial hidrelétrico amazônico, em função das populações indígenas e da defesa ambiental. Ainda há uma obsessão por construir mais usinas desse tipo, mas é preciso considerar os graves problemas que elas geram e o potencial que temos para desenvolver outras bases energéticas, como a eólica e a solar”, pontua o especialista Célio Bermann, professor doutor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo.
Para Amyr Klink, o que tinha que ser feito de hidrelétrica já foi feito. “Temos tudo para ser uma nação eólica”, aposta. Em sua visão, da mesma forma que os veleiros são a maneira de viajar mais e ciente do ponto de vista energético, gerar eletricidade a partir da força dos ventos segue o mesmo princípio da sustentabilidade. E com uma alquimia interessante que une natureza e tecnologia humana.
Há muito o que observar e aprender. Quem vive nas alturas, voando ao sabor do vento, sabe bem disso. É o caso do instrutor de pilotagem avançada de parapente Kurt W. Stoeterau, autor dos livros Voando com Ciência, Voando com Consciência e Manual do Parapente Obediente (ambos da Traço Publicações). Em seu website, ele escreve: “Estamos sobre um chão que flutua pelo espaço, através de um vazio sem chão. Todos estamos voando, mesmo os que têm a percepção de estar aterrados nessa densidade, aparentemente sólida e firme”.
Conquistar uma relação assim, mais profunda com esse poder da natureza, começa com o gesto de abrir a janela e sentir o vento na pele, depois nos pulmões. Observá-lo na dança das areias, no caminho dos pequenos frutos e das sementes mais leves. Torná-lo ciência, eletricidade ou divindade. No m, tudo é questão de notar o invisível e ter por ele respeito e gratidão.

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