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Depende do coração

Que nosso coração-mente, nosso kokoro, seja sensível e terno às outras pessoas e seres, pois eles são apenas um reflexo do nosso próprio ser

Monja Coen – Michel Filho / Agência O Globo

Todos os meses, o mestre Yogo Rôshi vinha ao Mosteiro Feminino de Nagoia para liderar nosso retiro. Nós, monjas em treinamento, nos estressávamos nas preparações e nos irritávamos umas com as outras. Entretanto, no dia de sua chegada, como num passe de mágica, ficávamos gentis. Mesmo antes de ele chegar. Com sua presença, então, nos tornávamos seres celestiais. Yogo Rôshi falava inglês, e fui perguntar a ele o porquê dessa situação. Eu também gostaria de ter essa capacidade de trazer harmonia só de pensarem em mim. “Tudo depende do seu coração”, me respondeu.

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Quando cheguei ao mosteiro, também fora visitar a antiga abadessa, que estava no hospital. Ela pedira que eu levasse um poema, mostrando minha compreensão dos ensinamentos. Fui com uma colega japonesa que falava inglês. Ela traduziu para a idosa abadessa. Sem aprovar ou desaprovar, a mestra me disse apenas: “A prática dependerá do seu coração”.
Meu coração. Em japonês, a palavra é kokoro ou shin. Kokoro é o âmago do ser. Toda a nossa vida, como tratamos os outros e somos tratados, depende de nosso kokoro? Há um praticante que reclama muito em minha comunidade. Se vai a uma farmácia, acaba brigando com o farmacêutico. No trânsito, está sempre envolvido em conflitos. Sua vida familiar é de desentendimentos e sofrimento. Veio me pedir orientação, e lhe respondi: “Tudo depende do seu coração”. “Fale mais, Sensei, a senhora também vai dizer que a culpa é minha?”
Acrescentei: “Não é bem assim, mas parte da responsabilidade é sua também. O seu coração signifi ca também a sua mente, as suas expectativas. Você é um homem inteligente,
talvez mais inteligente que a média das pessoas. Isso lhe poderia ser vantajoso se você não esperasse dos outros as respostas que não podem dar. Entretanto, você se torna a palmatória do mundo. Se cometem erros no trânsito, você buzina, grita e acaba entrando em encrencas. Na família, espera que seus irmãos se comportem da maneira que eles não conseguem. Considera todas as pessoas burras. De certa forma, você está estimulando a parte negativa dessas pessoas. Se seu coração nada esperar, poderá observar com maior grandeza o que está acontecendo”.

Seu olhar estava distante. Afastou-se da comunidade por uns tempos. Lembrei-me de quando eu reclamava para a superiora do mosteiro sobre o comportamento das outras monjas, e ela sempre me respondia: “Depende de você. Não seja de porcelana. Porcelana quebra. Seja como a água, que toma a forma do vaso que a contém”. A superiora trabalhava tanto. Era a primeira a se levantar e a última a se deitar.

Durante todo o dia, escrevia, recebia pessoas, fazia palestras, dava aulas, participava das meditações e liturgias. Nas noites de banho (e eram só de quatro em quatro noites que nos banhávamos), ela, que deveria ser a primeira a entrar para apreciar a água quente e limpa, fazia questão de ser a última. Estava ocupada, escrevendo, atendendo as monjas reclamonas como eu.

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