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Eternos começos

Quantas vezes não nos vemos obrigados a dar o start em algo novo? E quantas vezes não ficamos à espera de um sinal que nos ensine o passo a passo para tanto? Nesta reportagem, olhamos para essa força motriz que puxa a vida e, ao tirá-la da estagnação, a engrandece

Eternos começos – Shutterstock

Difícil precisar o instante exato em que as coisas nascem. Quando se vê, estamos inaugurando algo, seja um texto, um trabalho, um relacionamento, uma reflexão. Como resume a escritora, professora e crítica literária paulista Noemi Jaff e no seu Livro dos Começos (Cosac Naify), “começar é o sintoma mais forte do desejo de novidade”. É o nosso motor na direção do inédito, daquilo que queremos desbravar e nos apropriar. É também o olhar pela fresta da possibilidade. Um salto, uma escapada, um poder. Para que começar algo novo? De que jeito? Por onde? Pedimos emprestadas as lanternas de Noemi Jaff e (e suas reflexões em negrito) para enxergar nas sutilezas de todo começo um aprendizado. Inicie a leitura por onde você quiser, pois, como bem observa a professora, podemos dar o pontapé inicial para um projeto a qualquer hora, de qualquer lugar.

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Por que começar?
Como frisa a empreendedora Carol Romano, criadora do Portal AsBoasNovas.com – dedicado a notícias que enfocam soluções para os problemas do planeta – e cofundadora da consultoria Maker Brands, de São Paulo, é hora de começar sempre que algo não nos preenche mais e deixa de fazer o sentido que um dia teve.  
Para dar início a algo significativo, um caminho é se despedir do que se tornou inadequado, como uma roupa que não serve mais porque ficou curta, apertada ou simplesmente porque não traduz mais seu jeito de ser. Um novo horizonte depende de abrir mão da insistência cega. “O que significa, às vezes, largar mão do que pareceu ser uma grande ideia, se, por algum motivo, ela não vingou. E acreditar na capacidade de criar outros tantos projetos”, encoraja a jovem. 
Por nutrir uma inquietação saudável, ela nunca teve medo de mudar de emprego ou iniciar um negócio após o outro. Pelo contrário. O que mais teme é ficar estagnada e, especialmente, deixar de impactar positivamente o coletivo. Agindo assim, movidos pela vontade de acordar recursos, talentos e habilidade, é como se a cada porta aberta – e atravessada – aceitássemos o convite do universo para ampliarmos a consciência, aprofundando os significados da existência e das relações.

Não comece
Fugir da “convocação” para o novo, alerta Paulo Sérgio Oliveirah, terapeuta transpessoal e estudioso de antigas tradições, entre elas, cabala, espiritismo, xamanismo e ioga, de São Paulo, só faz aumentar a resistência à mudança e, consequentemente, o sofrimento; ao abraçá-la, em contrapartida, nos tornamos receptivos a descobertas e reinvenções genuínas.
Para dar vazão a essa força construtiva, contudo, atravessando com confiança o vácuo entre o desejo e sua concretização, é fundamental ter fé nos processos de renovação da vida. “Compreender que, muitas vezes, estamos como as borboletas, em plena fase de crisálida, o intervalo entre o que não existe mais e o que ainda não despontou”, observa a psicoterapeuta junguiana Cristina Balieiro
Quantas vezes nos vemos entre uma separação e a incerteza de um novo amor, uma demissão e a procura por trabalho, a retomada dos estudos e a efetiva imersão numa carreira alternativa? Nessas horas, deve prevalecer a espera sábia. Aquela que intui a iminência de enredos promissores. 

Quem quer mesmo começar não fica inventando questões de profundidade duvidosa
Não dá para atropelar o tempo de reacomodação das coisas. Por outro lado, não convém ficar esperando além da conta pelas condições ideais para só então agir – quando tiver o financiamento, quando largar o emprego, quando fizer um curso, quando se sentir preparado etc. O que diferencia os verdadeiros empreendedores é a capacidade de arriscar, de fazer o melhor com o que têm nas mãos. 
“Vivemos na era do excesso de pensamentos, hiperestimulados pela mídia e pelo coletivo. Às vezes o indivíduo tem dez planejamentos para futuros negócios e não concretiza nenhum. Que ele eleja pelo menos dois aos quais possa se dedicar da maneira mais inteira possível, conectado com seu interior, com sua porção divina”, aconselha Paulo Sérgio Oliveirah. 
Ninguém precisa construir um império em um dia. Uma atitude aparentemente banal como iniciar a leitura de um livro que nos abastecerá com informações e ideias-chave vale e muito porque nos tira de um campo de energia e nos posiciona em outro. Ajuda imaginar que, ao colocarmos a roda para girar – seja com um peteleco –, inevitavelmente ela desencadeará outros movimentos que fogem a qualquer planejamento. Como naquele famoso exercício batizado de “brainstorming”. Deixe brotar o que quer que seja, sem censurar nada a princípio. Desse caldo caótico pode surgir uma grande mola propulsora. 
Como ensinam os mitos de criação do mundo e os rituais de iniciação – marcos divisores das fases da vida –, o que muitas vezes nos assusta, seja pela momentânea falta de sentido, seja pela desordem absoluta, guarda em si a semente da vida nova. “Essas narrativas apresentam uma característica comum, que é começar pelo vazio ou pelo caos”, aponta a psicoterapeuta junguiana Cristina Balieiro, autora de O Feminino e o Sagrado – Mulheres na Jornada do Herói (ed. Ágora), entre outros títulos.
O começo não passa de interrupção de algo que já vinha ocorrendo, mas que ainda não tinha recebido nome
Uma nova postura, estilo de vida ou ofício podem muito bem ser o reflexo de uma ruptura externa – perda, separação, adoecimento, desilusão – que primeiro abala e reformula o nosso mundo interior para depois levar à ação. Ou podem resultar de um lento e constante adubar íntimo que, à certa altura, floresce pelo lado de fora. 
O tão almejado plano B, por exemplo, não precisa significar necessariamente jogar tudo para o alto. Quem prefere não ser tão radical pode apostar numa fórmula moderada e eficaz: dedicar 70% do tempo ao trabalho que garante o pão nosso de cada dia e permite pagar as contas e 30% do dia à pesquisa e treino naquilo que realmente deseja. Procurar um coach não é má ideia.
Se não há outra alternativa a não ser largar a ocupação conhecida e inventar um modo de sobrevivência mais satisfatório, uma proposta curiosa vem da norte-americana Gretchen Rubin, autora de Melhor do que Antes – O Que Aprendi sobre Criar e Abandonar Hábitos (Fontanar). Segundo ela, costuma dar muito certo pegar carona em uma novidade e, de quebra, emplacar um hábito igualmente fresco. Por exemplo, já que vai começar no novo emprego, aproveite e comece a se exercitar na mesma manhã, antes do expediente. Outra possibilidade é unir a mudança para a casa nova ao fi m do consumo de cigarro. Um começo inspira o outro. E a vida vai ganhando contornos surpreendentes.
Por onde começar?
A possibilidade de tecer, sem urgência, um ofício paralelo ao emprego em um banco fascinou a paulista Tamara Galtaroça, 30 anos. “Comecei a indagar que talento poderia gerar renda extra no futuro ou até mesmo uma carreira substituta”, conta. Com calma, pesquisou uma série de cursos até se animar com a consultoria de imagem. “Sempre gostei de psicologia e descobri que esse curso une autoconhecimento e moda, dois ramos do meu interesse”, diz. Antes de se matricular, Tamara passou por uma profissional do ramo a fim de confirmar se estava na rota certa. E, graças ao programa a distância oferecido pela escola EnModa, em Barueri, na Grande São Paulo, conseguiu se formar com tranquilidade, sem precisar sair do banco, sua principal fonte de renda. “Me dedicava aos estudos nos fi nais de semana, cumprindo as atividades obrigatórias semanais, necessárias para passar aos módulos seguintes.” Agora, com o certificado em mãos, pretende se dedicar à nova ocupação durante o tempo livre, fazendo uma escala segura até migrar completamente de atividade. 
Segundo Álvaro Camargo, especialista em gerenciamento de projetos e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, além de contarmos com nossos talentos, precisamos ter uma visão realista de tudo o que cerca a via alternativa. “A pessoa precisa ponderar se lidará bem com a nova rotina, burocracias, logística, fornecedores, funcionários etc.”, avalia. Afinal, um bom cozinheiro pode não ser um dono de restaurante realizado, por exemplo. “Cada função tem pré-requisitos completamente diferentes”, observa o profissional. 
Ter clareza do que nos motiva em direção a um começo ou recomeço também é fundamental, pois, segundo Camargo, além do salário “monetário”, temos de contabilizar o salário “afetivo”, ou seja, o prazer. Tamara, por exemplo, inicialmente sentiu na pele os bons efeitos do trabalho dos sonhos. Daí partiu para a ação. 
Para começar é preciso um salto
Vale lembrar que ninguém precisa embarcar solitariamente em um novo capítulo da vida. Parcerias são muito bem-vindas. “Quando nos unimos a pessoas que compartilham do mesmo propósito e já estão fazendo algo nesse sentido, tudo fica mais fácil e interessante”, defende a empreendedora Carol Romano. Até porque uma pessoa a mais turbina a troca de ideias e complementa nossas habilidades. Composição melhor não há. Também é importante compreender que uma empreitada pode começar miúda, desde que se saiba aonde se deseja chegar. “Se o plano é produzir bolos de cinco andares, comece fabricando cupcakes, depois avance para o naked cake, sempre mirando o objetivo principal: grandes bolos para casamentos”, exemplifica Carol.
Em alguns casos, o “start” significa reformular o que já existe, mas anda desgastado. Quando esse é o desafio, a profissional recomenda nos agarrarmos ao que temos de melhor – nossos mais afiados recursos e habilidades, aquilo que dominamos como ninguém. “Meu conselho é: se fixe nisso, pois esse patrimônio pode ser aplicado em qualquer lugar ou situação”, garante. Se você foi uma ótima líder dentro de uma empresa, por que não liderar um grupo de mães interessadas em conciliar a vida profissional e a maternidade de um jeito criativo? Um lindo e viável projeto pode brotar desse talento relacional transposto para outro contexto. 
O começo é o mais difícil
Pense em um escritor que precisa inaugurar a primeira linha de um romance. É o mais difícil até que o escritor tenha segurança de que pode prosseguir por essa ideia. Assim também é em outras esferas humanas. Ficamos no assustador território das incertezas até chegar ao fim do túnel e sua promessa de luz. Como bússola, Sócrates, um dos fundadores da filosofia ocidental, oferece uma reflexão. Pergunte-se: “Você vive a vida que quer viver? Ou vive a vida que pensa que o outro quer que você viva?”. E fique tranquilo se ainda não souber a resposta. O mais importante é começar a pensar a respeito. 
Em segundo lugar, para saber o que quer da vida, faça pequenos experimentos. Especialmente cursos e pequenas viagens para fora da zona de conforto. “Se é um pequeno experimento, não tem problema se vai dar certo ou não”, tranquiliza David Baker, um dos fundadores da The School of Life, que tem filial em São Paulo e ajuda a colocar em perspectiva as principais questões humanas. “Sócrates diz que a gente encontra máscaras pelas quais observa o mundo. Todos nós começamos vestindo uma máscara com uma imitação daquilo que desejamos. Mas muitas pessoas param aí. É preciso investigar se a máscara é perfeita para você ou se é necessário fazer mudanças, trocá-la, adaptá-la, até que, por fim, ela não seja mais uma máscara, mas uma personalidade autêntica.”
O mundo se abre ao começador como um dia de sol
Vigoroso combustível para quem quer abrir alas na vida de um jeito leve é explorar a imaginação, a sensibilização e o lado lúdico do cotidiano. Como fazem os artistas e profissionais ligados à criação. O processo criativo desse pessoal – que vive da arte de conceber o novo – rende dicas valiosas que podem ser aplicadas ao nosso dia a dia, atiçando a vontade de sair da mesmice. 
A escritora Noemi Jaff e, por exemplo, tira proveito de uma conversa, uma reflexão, uma lembrança, um acontecimento real, um sonho. O arquiteto paulista Flavio Butti se abastece de referências diversas: fotos, arte, viagens, cenas do cotidiano. “Eventualmente, de algo que vejo e julgo interessante surge uma ideia completamente diferente para outro contexto”, palestra”, conta a artista plástica paulista Nina Pandolfo, que, depois de capturar esses insights, se apressa para descarregar a inspiração no papel. Assim, o inesperado se vê convidado a atuar nas mentes permeáveis aos detalhes da vida ao redor. Já a também artista plástica paulista Isabelle Tuchband sempre começa pelo mergulho interior. “Os primeiros esboços nascem dentro de mim, dentro da minha alma, nunca fora. Criar é uma necessidade vital, igual a respirar”, compara. 
Na vida é a mesma coisa. Começamos e recomeçamos sempre que o desejo de viver com plenitude fala mais alto – ou simplesmente a vontade de sentir que somos centelhas tão criativas quanto a própria Criação. “O mais importante é que a inércia se interrompe e uma história, que sempre, por menor que seja, muda o fluxo do mundo, está a caminho”, poetiza Noemi.