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O que sustenta um preconceito?

O professor de ética e filosofia da USP e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro fala a respeito das raízes da discriminação e sobre como devemos deixá-las para trás e nos reconhecer como iguais de vez

Renato Janine Ribeiro – Juan Esteves

A discriminação de pessoas por causa de sua cor, gênero, classe social ou orientação sexual, entre outros motivos, embora muitas vezes tenha origem em um passado remoto – colonial ou mesmo milenar –, fervilha na atualidade. Os ataques violentos a homossexuais nas ruas de São Paulo e os mais recentes episódios, os comentários racistas na internet contra a atriz Taís Araújo e a jornalista Maria Júlia Coutinho, entre outras globais, demonstram como a questão é contemporânea e urgente. 

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O Brasil é o país campeão de assassinatos de transgêneros e os registros apontam a morte de um LGBT (sigla que inclui homossexuais e transgêneros) a cada 28 horas. No congresso, projetos de lei como os do senador Eduardo Cunha (5069/2013, que penaliza o aborto, ou 7382/2010, que criminaliza crimes contra heterossexuais, mas não dá o mesmo direito a homossexuais), ainda encontram seus apoiadores. Mas esse cenário não invalida outro. “O movimento maior da sociedade hoje é na direção da igualdade de direitos. Os preconceitos são cada vez mais vistos como injustificáveis, imorais e indecentes”, afirma o professor de filosofia e ética da USP Renato Janine Ribeiro. Na conversa a seguir, ele diz que cabe a nós assumir a responsabilidade por interromper esse comportamento impensado. “O preconceito contra o negro, por exemplo, não é culpa de ninguém vivo hoje. Mas somos responsáveis por encontrar o caminho de saída.” 

O preconceito no Brasil é uma herança escravocrata? 
Sem dúvida. A escravidão é o que mais pesa para que hoje exista preconceito em duas direções: contra o indígena, morador da terra; e contra o negro, o escravo africano. Até chegou-se a discutir, na América espanhola, se o índio tinha alma ou não, ou seja, se era humano ou não. Já os negros eram considerados pessoas inferiores, aptos mais dos pessoas inferiores, aptos mais dos pessoas inferiores, aptos mais ao trabalho braçal, brutal, do que ao trabalho braçal, brutal, do que ao trabalho braçal, brutal, do que ao trabalho braçal, brutal, do que a qualquer outra coisa. Isso trouxe a qualquer outra coisa. Isso trouxe a qualquer outra coisa. Isso trouxe outro problema à nossa cultura, que outro problema à nossa cultura, que outro problema à nossa cultura, que é o preconceito contra o trabalho é o preconceito contra o trabalho é o preconceito contra o trabalho é o preconceito contra o trabalho manual e até contra o trabalho em si. 
Como seria essa discriminação contra o trabalho? 
Um dos maiores problemas que o Brasil enfrentou no século XX é  o de que havia um ideal de se ganhar  dinheiro sem trabalhar. Conseguir um emprego público era uma das das vias para isso. Como uma pessoa de classe média ou alta poderia arranjar  um cargo em que pudesse faltar à vontade. É a história de pendurar o paletó na cadeira e sair. Atualmente, o preconceito contra o trabalho diminuiu muito, mas ainda não se tem no Brasil uma valorização das atividades que exigem esforço físico como  os da Europa e os EUA.
O passado colonial ajuda a explicar o preconceito contra negros e indígenas, mas e os tantos outros tipos, como de gênero, orientação sexual, religião, de onde nascem? 
O preconceito é uma viagem narcisista muito forte, em que as pessoas olham para o mundo delas sem considerar o outro. E a discriminação  não é pelo que você faz, mas pelo que você é. Claro, preconceito contra comunista ou petista é pelo que ele faz. Ele escolheu, poderia não ser petista ou comunista. Agora, preconceito contra negro, índio, mulher e homossexual é pelo que a pessoa é. Mas, de modo geral, o movimento da sociedade hoje é na tendência da igualdade de direitos. Os preconceitos são cada vez mais vistos como injustificáveis, imorais e indecentes. 
A discriminação contra as mulheres também tem origens históricas?
Ao contrário do preconceito étnico, que tem raízes muito claras no Brasil, a discriminação de gênero é algo mundial e tem origens milenares. Ao longo da história, embora de vez em quando algumas mulheres tenham podido ser rainhas em seu país (não esposa do rei, mas a governante, o que era permitido em Portugal, Inglaterra e Espanha, por exemplo), isso era uma exceção em um conjunto enorme de preconceitos contra as mulheres. Uma das grandes mudanças que ocorreram ao longo do século XX é que a força bruta foi se tornando menos importante do que a inteligência. Estamos no primeiro momento da história em que a força física deixa de ser tão relevante para definir hierarquia. Os homens eram mais poderosos, por muitas razões, mas incluía-se o fato de que eram eles que lutavam, manejavam espada, lança, uma série de equipamentos que demandavam força. E as mulheres fi cavam em segundo plano. Hoje se vê a crescente importância da inteligência. Mesmo em países que têm um preconceito forte contra as mulheres, como o Irã, elas são mais numerosas nas universidades do que os homens. Mesmo na Arábia Saudita, um dos países mais contrários aos direitos humanos que se tem no mundo, está havendo uma formação melhor das mulheres. Isso torna a mudança na situação do preconceito de gênero irreversível, e é algo mundial.

O preconceito por classe no Brasil chega a ser superior ao étnico? 
Se você distinguir mulheres de um lado e negros e indígenas de outro, há um ponto importante: os negros e indígenas na grande maioria do Brasil estão em classes mais pobres. As mulheres estão em todas as classes. O preconceito contra elas é de gênero. Já negros e indígenas sofrem uma dupla discriminação. Nos EUA, se tem uma classe média e rica negra há muito tempo. Então, em qualquer lugar aonde vá um negro, se ele estiver bem-vestido será considerado pertencente ao ambiente. No Brasil, não. Se tiver um negro de terno e gravata, muita gente vai considerar que é um segurança, não um milionário ou cientista.
Como mudar esse cenário e secar a fonte que nutre o preconceito? 
Está na hora de esquecer esse passado colonial. Nós nos separamos de Portugal há quase 200 anos. O que fizemos ou deixamos de fazer nesses dois séculos é coisa nossa. O que herdamos de Portugal de bom e de ruim está no passado. Precisamos parar de falar do Brasil colônia e começar a pensar no fenômeno das discriminações – que vêm, sim, da conquista colonial, mas seguem pelo Império e as sequelas continuam até a atualidade. Ainda hoje tem gente chamando negro de macaco, mesmo negros de classe alta e média, como a moça do programa do tempo da rede Globo [a jornalista Maria Júlia Coutinho, do Jornal Nacional, que sofreu ataques racistas na internet no ano passado], uma mulher que tem todo o prestígio.
Qual o papel da política nisso?
 A sub-representação dos grupos historicamente discriminados é escandalosa. Em um artigo que escrevi para o jornal Valor Econômico (A Sub-Representação de Mulheres, Negros e Gays Mata Mulheres, Negros e Gays. A Reforma Política Pode Mudar Isso. Mudará?, de março de 2015), eu comparava o percentual desses grupos na população e na Câmara: as mulheres são 51,3% das pessoas que vivem no país, mas no Congresso não passam de 10%. Os afrodescendentes formam 51% de nossa população, mas, na Câmara, são apenas 8,9%. Segundo o Relatório Kinsey, teríamos hoje 10% de homossexuais na população – mas apenas um deputado é assumidamente gay, Jean Wyllys, do PSOL do Rio de Janeiro. Menos de 0,2% da Câmara. Em outras palavras, mulheres, negros e homossexuais acabam muitas vezes votando em pessoas que não representam seus interesses, assim como os pobres fazem em grande parte. Por que só um homossexual assumido na Câmara? Você pode pensar: ele perde voto se disser que é homossexual. Pode perder para a eleição majoritária, mas em eleição proporcional, você poderia ter uma bancada homossexual assim como tem uma ruralista e uma evangélica.
Se a representação no Congresso fosse proporcional, o que melhoraria? 
Seria praticamente impossível passar certos tipos de lei que hoje são propostas. Por exemplo, todos esses projetos do deputado Eduardo Cunha [é de sua autoria o projeto de lei 5069/2013, que prevê penalizar qualquer pessoa que incite ou ajude uma gestante a abortar, ou o P.L. 7382/2010, que criminaliza a heterofobia, sendo que a homofobia não é considerada crime no Brasil] talvez não estivessem sequer sendo cogitados. Não estou dizendo que as mulheres seriam a favor do direito de aborto, mas que haveria uma discussão maior. Você também teria dificuldade de manter uma política que massacra os negros, como as ações policiais violentas contra eles, por exemplo.
A punição contra o racista funciona?
 É mais do que justo você punir, afinal, a pessoa está cometendo um crime. A lei também educa, ensina às pessoas que elas têm que ter limite. Veja o problema da internet. No Facebook as pessoas mandam ver no que querem escrever sem nem pensar nas consequências. Os processos por causa desses insultos têm um caráter pedagógico. As pessoas têm que ser capazes de se autoconter. A sociedade não é o espaço onde você fala o que quer podendo ofender os demais.
De onde nasce essa necessidade de agredir sem pensar?
 Irresponsabilidade, somada a um bônus de desigualdade social. Há pessoas com mais dinheiro que, no Brasil, se sentem no direito de ofender os atendentes mais pobres. Isso lhes dá prazer. Hoje, em um mundo em que todos nos sentimos inseguros de nossas posições, ofender alguém sem medo de punição funciona como compensação por essa insegurança. Mas essas pessoas não teriam coragem de fazer isso em Paris ou Miami. Por isso, é preciso educá-las, punindo essas condutas. A punição, no caso, não é pelo prazer de punir ou de se vingar, é para cumprir um papel educativo: para que se instale entre nós uma convicção da igualdade.
Como outros países evoluíram na questão do preconceito? 
Os EUA seriam um bom exemplo? Os EUA melhoraram muito, mas também porque tiveram quase uma guerra civil na década de 60 na luta dos negros por seus direitos. Os confl itos eram muito grandes e até hoje existem. Cada vez que um policial branco mata um negro e é absolvido há motins. Existe uma razão em se revoltar. Eu sou contra o uso da violência, mas quando não resta mais nada, você tem pelo menos que compreender. Mas nem tudo é o caminho dos EUA, a formação histórica deles é muito diferente da nossa. Lá você teve negros prósperos – universitários e empresários – em pleno período de preconceito. No Brasil, a discriminação racial sempre foi mais sutil, nunca chegou à segregação explícita, mas a prosperidade de negros ainda é muito rara. 
A antropóloga Lilia Schwarcz diz que no Brasil a grande maioria não se diz preconceituosa. Por outro lado, diz que conhece alguém que é. Uma contradição, não? Na verdade, somos preconceituosos e temos vergonha disso? Qual a explicação para esse comportamento ainda existir então? 
É como se nossa dignidade estivesse ligada a não termos preconceitos. O tema da democracia racial tinha a ver com isso. Quando havia a segregação racial nos Estados Unidos, muitos brasileiros se sentiam orgulhosos de não termos esse problema. Descobrir a dimensão do preconceito no Brasil é coisa recente. E fervilha, principalmente nas redes sociais, onde o preconceito contra nordestino, pobre e gay, para não falar das mulheres, é escancarado.
A política de cotas contribuiu? 
Houve toda uma política de incentivo para os negros entrarem nas universidades nos EUA, mas com um sistema bem diferente do nosso de cotas. Para entrar em um curso concorrido de Harvard, por exemplo, seleciona-se certo número de candidatos por um exame (como aqui se faz o Enem), mas a atribuição final das vagas muitas vezes passa por ver como as pessoas se adaptam ao grupo. E há três fatores importantes que são usados em algumas universidades lá: formar uma classe multiétnica, multicultural e também com pessoas com experiência de voluntariado em causas sociais. É praticamente excluída a possibilidade de ter uma classe só de brancos, só de elite. E é positivo terem feito trabalho social. O que significa: procura-se um aluno menos egocêntrico do que o que temos no Brasil. Aqui um dos problemas no ensino superior público e gratuito é que os alunos privatizam o diploma, não sentem que devem nada à sociedade pela formação que tiveram. Esse é um limite da nossa política de inclusão nas universidades públicas: continuamos formando alunos egocêntricos, mesmo que esses alunos não sejam mais somente brancos. Você pode introduzir negros, indígenas em maior número, mas continua tendo uma questão de pouco comprometimento social na nossa formação.

Quais têm sido os avanços contra o preconceito em nosso país?
 A própria política de cotas foi um passo enorme que o Brasil deu. Não só ela mas uma série de outros incentivos. O trabalho de educação indígena que o governo vem fazendo, por exemplo com a criação de distritos de saúde indígena dentro do Ministério da Saúde. Isso gera um fortalecimento de pessoas que antes eram descartáveis. A situação não acabou, vai levar ainda um tempo, mas estamos no caminho certo.
Estamos ficando mais tolerantes? 
Existe uma diferença entre a tolerância forte e a fraca. A própria palavra tolerar já tem isso no seu bojo: não é que você goste de uma coisa, você admite. Você não precisa ser homossexual para respeitar os homossexuais, não preciso ser de esquerda para respeitar o princípio democrático que legitima a atuação da esquerda, e por aí vai. Em uma tolerância fraca você apenas suporta o outro, você não o ataca. Mas, em uma tolerância forte, você aprende com o outro. Você pensa: é diferente a cultura deles da minha, existe algo que eu possa aprender com essas pessoas e costumes? Um exemplo de tolerância forte é a que temos no Brasil em relação ao budismo. Cada vez mais há pessoas interessadas em aprender com ele.

E por que com o budismo há essa maior abertura? O sr. conseguiria explicar o que falta para as outras questões de discriminação terem o mesmo tratamento?
Na verdade, o que disse é que há uma tolerância fraca quando você considera o outro errado e talvez até despreze suas ideias, mas por condescendência acaba tolerando que a pessoa se expresse. E há uma tolerância forte, que é quando se sente que há o que aprender com o diferente. A Igreja Católica, que até o papa João XXIII (1959-63) era intolerante, caminhou para essa tolerância forte, que pode levar ao respeito a outras religiões e até mesmo ao ateísmo, como caminhos diferentes para chegar a Deus ou ao Bem. 
Em que ponto de tolerância estamos na evolução contra o preconceito? 
A tendência é começar pela tolerância fraca e depois passar para uma mais forte. Do ponto de vista legal, você não pode obrigar uma pessoa a gostar de quem ela não quer, seja negro, homossexual ou mulher. O que tenho que conseguir é que essas pessoas sejam respeitadas. Agora, para a sociedade seria mais importante que a cultura dessas pessoas fosse valorizada. A não violência contra o outro é algo que se pode e deve impor por lei. Mas para se criar uma tolerância forte vamos depender dos costumes. É algo que se vai construindo com o tempo e depende de políticas de governo. Para contribuir na questão do gênero, na hora de introduzir brinquedos na escola, por exemplo, não fazer separação radical entre o que é de meninos ou de meninas ajuda. Disponibilizar brinquedos indígenas e ensinar sobre cultura africana (o que hoje é lei) são outras iniciativas que mostram o papel da educação para reduzir o preconceito.