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Não é mera coincidência

Quando a vida parece desgovernada, o melhor a fazer é escutar o que ela tem a dizer e ficar atento aos movimentos de mudança. De onde menos se espera, pode surgir algo para colocá-la de volta no trilho

Não é mera coincidência – Choner/Shutterstock
Quem nunca desejou que a vida fosse sinalizada como as estradas? Siga em frente. Dê a preferência. Conserve-se à direita. Reduza a velocidade. Sentido proibido. Retorno. Desvio à esquerda. Pare. Última saída. Não são poucos os momentos em que dois ou mais caminhos surgem na nossa frente e ficamos em dúvida sobre qual nos conduzirá ao lugar que queremos chegar. Ou que temos a impressão de estar na via errada, mas não sabemos se o certo a fazer é recuar, avançar ainda mais ou pegar a pista inversa. As circunstâncias em que nos sentimos diante de entroncamentos ou rotatórias sem placas são corriqueiras, mas parecem não existir para algumas pessoas. Elas recebem sinais que apontam claramente para a melhor escolha e, de uma maneira que nem sempre conseguem entender, vão parar no lugar certo e na hora certa, onde acontecimentos decisivos as esperam. Quando extrapolam as fronteiras do anonimato, as histórias dessas pessoas geralmente são vistas como fatos comuns enfeitados em narrativas místicas ou românticas. Mas não pela ciência, que há muitos anos tem levado bem a sério esse fenômeno definido pelo psiquiatra e psicólogo Carl Gustav Jung como sincronicidade ou coincidência significativa. Não se trata de coincidências simples, como pensar em alguém e receber um telefonema desse alguém, mas das que aparecem para transformar nossa vida de alguma forma, como nos levar ao encontro de um grande amor, ao emprego que sempre almejamos, a lugares ou situações onde nos sentiremos mais plenos e felizes. Sincronicidade é, em outras palavras, quando ocorrem eventos simultâneos ligados por um mesmo significado e sem causas conhecidas.
O físico Leonard Mlodinow, autor de O Andar do Bêbado: Como o Acaso Determina Nossas Vidas (Zahar editora), diz que interpretamos o mundo a partir de um olhar limitado, que nos faz acreditar que a fórmula para obter o sucesso, seja em qual área da vida for, é somar habilidade, esforço e preparação. Pensar que as coisas acontecem como esperamos que elas aconteçam é o mesmo que se fechar para o novo. Perdemos excelentes oportunidades quando optamos por viver cercados pelas paredes do mundo concreto, que subestima a influência do acaso. “A realidade que percebemos não é um reflexo direto das pessoas ou circunstâncias que a compõem, e sim uma imagem borrada pelos efeitos randomizantes de forças externas imprevisíveis ou variáveis”, afirma Mlodinow.
 
Um mundo em conexão
Derrubar as barreiras da superficialidade do nosso pensamento não é algo que acontece de uma hora para outra. É preciso direcionar o olhar para dentro e, ao mesmo tempo, para o todo. No livro Sync: How Order Emerges from Chaos in the Universe, Nature and Daily Life (Sincronia: Como a Ordem Emerge do Caos no Universo, na Natureza e na Vida Diária), o matemático Steven Strogatz observa que tudo no universo acontece em sincronia. O movimento do Sol e da Lua, o nosso ritmo cardíaco, a respiração, as ondas cerebrais, a mobilidade das nossas células. Segundo ele, tendemos a repetir no ambiente externo o que acontece dentro do nosso corpo. Dançamos juntos, cantamos em coro, tocamos em bandas, casamos nossos aplausos em espetáculos. É um comportamento comum a todos os seres vivos, como os pássaros que coreografam voos em longas distâncias e os grilos que cantam em uníssono em noites de verão. “Sincronia é uma espécie de balé cósmico que acontece em palcos que vão do nosso corpo para o universo como um todo”, define. Simone Magaldi, fi lósofa e fundadora do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), faz uma analogia entre a mente e o iceberg para mostrar como a nossa relação com o mundo é mais ampla que o modo como aparentemente se revela. “A ponta do iceberg é a consciência. A parte de baixo, muito maior, o inconsciente pessoal, que é tudo o que vivemos e que ficou guardado. E há também o inconsciente coletivo. Segundo Jung, não nascemos como uma tábula rasa, mas com arquétipos de toda a humanidade. Eles correspondem com tudo o que está em volta do iceberg, como o oceano, o ar, a terra. Tudo está no inconsciente coletivo e faz parte de nós”, explica, ressaltando que os fenômenos sincronísticos são capazes de romper o tempo e o espaço. De acordo com a filósofa, eles podem aparecer sob a forma de sonhos premonitórios, pressentimentos, sensações e intuições fortes a ponto de mudar a nossa energia psíquica. Para percebê-los, é necessário prestar atenção e acreditar em suas mensagens. “É importante ter momentos de quietude pensando em si mesmo. Deixar os pensamentos virem e ver o que eles trazem. Às vezes pode não vir nada, mas também podem vir grandes insights.” Não existe receita para diferenciar uma sincronicidade real de um alarme falso. No entanto, é melhor dar crédito a esses insights do que deixar passar grandes oportunidades ou correr riscos. “Existem pessoas que cancelam cirurgias em cima da hora. Às vezes, depois nem precisam fazer. E a gente não sabe o que teria acontecido se elas tivessem feito. É preciso confiar que o inconsciente não mente. O mundo pode estar contra nós, mas nós não estamos contra nós”, garante Simone, que fala do assunto com a propriedade de quem coleciona suas próprias coincidências significativas. Aos 7 anos, ela teve um sonho aparentemente descabido para uma garotinha. Nele, aparecia um menino de cerca de 4 anos, pele e cabelos loiros, dizendo que um dia seria seu fi lho. Cresceu tendo o mesmo sonho. Ao completar 30 anos, decidiu adotar uma criança, pois não queria ter fi lhos biológicos. Na mesma ocasião, uma colega de faculdade do marido da filósofa comentou sobre um bebê entregue para adoção que tinha saúde delicada. O casal adotou o menino. Quando o filho completou 4 anos, Simone percebeu que ele era idêntico àquele com quem havia sonhado a vida inteira
Quando o acaso faz a diferença
É nas sutilezas que a sincronicidade habita. No despertador que resolve não funcionar e culmina no atraso que evitará que alguém sofra um acidente aéreo, numa xícara de café que teima em não esfriar para que a pessoa chegue à estação de trem no exato momento em que seu futuro companheiro está embarcando, no telefone que toca trazendo uma notícia que mudará o rumo da vida. O físico Leonard Mlodinow compara essas situações ao efeito borboleta, fenômeno baseado na ideia de que ínfimas alterações atmosféricas, como as causadas pelo bater das asas de uma borboleta, poderiam ter grande efeito na atmosfera global. Foi o que aconteceu com a oceanógrafa Viviane Takao.
Natural de Taubaté, no interior de São Paulo, Viviane decidiu fazer um mestrado em 2009. Estava em dúvida sobre três instituições de ensino, mas acabou optando pela Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, que, além de oferecer a área de estudo que ela queria, fi cava na cidade que admirava mesmo sem conhecer. Durante os dois anos do curso de geologia marinha, usou um único computador do laboratório de informática, sempre no período da tarde. Quando ia fazer o login, aparecia o mesmo nome: Rodrigo. Rodrigo Perovano, um oceanógrafo que fazia doutorado em geologia marinha pela manhã, também via o nome de Viviane no computador, mas os dois nunca haviam se encontrado nas dependências da universidade. Ela voltou para Taubaté, pensou em desistir da profissão porque não estava encontrando emprego e começou outra graduação, mas continuou enviando currículos para trabalhar como oceanógrafa. Foi chamada para uma entrevista numa empresa localizada na capital carioca. Quando começou a trabalhar, finalmente conheceu Rodrigo, seu vizinho de mesa. Apesar da forte afinidade entre os dois, Viviane resistiu às investidas do colega porque era nova na empresa. O primeiro beijo do casal só aconteceu numa viagem a trabalho, no meio do mar, quando os dois participaram de um levantamento geofísico na costa angolana. Desde então, não se largaram mais. Hoje, estão casados. “Creio muito em Deus e acredito que tudo isso foi parte de um plano dele”, diz, sorrindo, Viviane. O antropólogo Darrell Champlin também se valeu de uma sincronicidade para encontrar sua futura esposa. Aos 12 anos, o americano de Salt Lake City sonhou com uma mulher que estava numa festa, dentro de um casarão. Percebeu os cabelos dela úmidos pelo orvalho da noite e o contorno do seu corpo, mas não viu o rosto. Apaixonou-se de imediato. Ele a viu outras 40 vezes mais ou menos, sempre durante o sono. Fez um mestrado em sonhos para entender porque aquela moça insistia em aparecer quando ele dormia, mas não obteve a resposta que buscava. Rosângela Champlin tinha uma certeza desde os 12 anos. Queria se casar com um americano. Chegava a suspirar quando via filmes hollywoodianos. Movida pelo sonho, abandonou a cidade de Córrego do Bom Jesus, no interior de Minas Gerais, e foi para Santos, onde pretendia fazer faculdade, trabalhar e juntar dinheiro para ir aos Estados Unidos. Aproveitando que seus pais estavam no Brasil, Darrell mandou um currículo para o jornal Folha de S.Paulo e foi contratado. Chegou ao país no fi m de 1988. No ano seguinte, um amigo se solidarizou com a tristeza do americano, que tinha terminado um namoro recente, e sugeriu que ele desse uma olhada na seção de encontros amorosos de uma revista popular. Mesmo acreditando que podia conhecer alguém sem essa “ajuda”, ele comprou a revista três dias depois, a única edição em que Rosângela, motivada por uma brincadeira entre amigas, publicou um anúncio dizendo que queria fazer novas amizades. Das cerca de 300 cartas que ela recebeu, só respondeu a de Darrell, que, afinal, era americano. Combinaram de se encontrar no dia 13 de janeiro de 1990, apesar da ida de Rosângela para os Estados Unidos já ter data marcada: março. A subida da serra estava congestionada e Rosângela chegou à estação Paraíso do metrô com mais de duas horas de atraso. Darrell já estava indo embora, mas resolveu olhar para trás uma última vez. De longe, reconheceu a silhueta e os cabelos dela. Sentiu os joelhos bambearem. “Minha vida de solteiro acabou agora”, pensou. Em 40 dias, estavam dividindo o mesmo teto. Estão casados há 25 anos.
Mudança à vista
Muitas vezes, as coincidências significativas acontecem para mudar a rota da nossa vida. “A sincronicidade é uma das alternativas para tirar a pessoa do descaminho, porque todos nós temos um processo na vida de individuação. Algo para o qual nascemos”, defende a filósofa Simone Magaldi. A história do paulistano Rogério Nadin Vicente ilustra essa afirmação. Ele tinha acabado de sair da adolescência quando sua vida sofreu um revés. Aficionado por computadores, estava fazendo faculdade de tecnologia em processamento de dados, mas foi forçado a interromper as aulas e o estágio para tratar de uma doença pneumológica chamada pneumotórax. Foi parar na UTI. Os dois dias em que permaneceu sob cuidados intensivos fi zeram o jovem de 18 anos repensar a carreira que ainda nem havia começado. Observou o trabalho da equipe médica no centro cirúrgico, refletiu sobre a importância dos profissionais da saúde para quem está vulnerável num leito de hospital e se flagrou emocionado. Mesmo antes de receber alta, decidiu trocar os computadores pelo jaleco. Concluiu o curso que estava pela metade, prestou vestibular novamente e começou a estudar medicina. Rogério optou por especializar-se em pneumologia, a área responsável por colocar sua vida num rumo diferente do que tinha traçado e seguiu firme no propósito. Durante a residência, recebeu o convite de um colega que morava em Blumenau, Santa Catarina, para trabalhar na cidade catarinense. Resolveu recomeçar a vida lá, com a mulher, que estava grávida. “Há escolhas sutis cujas consequências que terão no futuro não entendemos. Às vezes, um pequeno detalhe faz toda a diferença”, reflete.
A experiência de José Francisco Matulja também o fez mudar de direção. Ele havia chegado ao limite. Vivia estressado, reagia mal a tudo, estava fi cando doente. O motivo de tanta insatisfação era o trabalho como diretor de turismo na prefeitura de Rio das Ostras, no Rio de Janeiro. Não que ele não gostasse de turismo, mas se sentia desmotivado em trabalhar para políticos. Quando não aguentou mais, pediu demissão. Em seguida, recebeu um e-mail de um amigo pedindo ajuda para levar o veleiro que estava pilotando de volta ao Rio de janeiro, pois havia enfrentado uma travessia difícil pelas águas do Caribe. José Francisco foi encontrá-lo em Fortaleza. Como a embarcação começou a apresentar problemas, impossibilitando o retorno dos dois, resolveu ficar mais uns dias no Nordeste, ao sabor das surpresas que a viagem sem roteiro traria. Em uma conversa, o amigo sugeriu que ele visitasse a Chapada do Araripe, um sítio arqueológico localizado na região do Cariri. José Francisco passou uma semana conhecendo as escavações. De lá, foi para a Chapada Diamantina. Sentiu-se reabastecido pela energia da natureza e das pedras espalhadas pelos lugares por onde passou. Quando voltou para casa, uma amiga lhe ofereceu um curso de cristais e ele percebeu a conexão entre os acontecimentos desde que abriu mão do cargo público. “Para mim, essa viagem foi o grande norteador. Se fosse para definir o que mudou em uma palavra, essa palavra seria liberdade”, resume José Francisco, que hoje trabalha como tecnólogo em turismo, fotógrafo, ambientalista, terapeuta holístico e escritor. Histórias como essas podem acontecer a qualquer momento, com qualquer um de nós. Basta ficar atento às setas enviadas pela vida, que podem aparecer em cores vivas ou desbotadas, às vezes quase imperceptíveis em caminhos embaçados por nevoeiros. Quando as seguimos, elas nos levam a destinos surpreendentes.

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