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A montanha e o trovão

Ioga e kung fu se cruzam na origem e na essência. Pensando nisso, os professores Adriana Miller e Argemiro Carneiro Neto associaram as duas artes. O resultado foi uma combinação de estabilidade, potência e autoconhecimento

A montanha e o trovão – Marco Pinto
Há muito tempo, no Templo Shaolin, famoso mosteiro budista localizado nas montanhas chinesas, o indiano Bodhidharma ensinou aos monges técnicas de respiração e movimentos de combate para que suportassem as austeridades da vida espiritual sem adoecer. Esses exercícios, cuja origem não se sabe a data precisa, seriam os fundamentos do que hoje chamamos de kung fu. As técnicas de respiração, por sua vez, são as mesmas usadas na ioga. O nome muda – pranayama na Índia e chi kung na China –, mas o significado é igual: domínio da energia. Embora as duas ciências sejam ainda mais antigas, basta saber que Bodhidharma viveu no século 6 para ter uma ideia de que ioga e kung fu são velhos conhecidos. “Ambos são instrumentos de autoconhecimento, transformação pessoal e realização”,
elenca a arquiteta e professora de ioga Adriana Miller, de São Paulo.
“E estão amparados por uma forte tradição filosófica: hinduísmo e budismo no ioga, e budismo, taoismo e confucionismo no kung fu”, acrescenta. Por meio de posturas e exercícios respiratórios, no caso do ioga, ou de rotinas, sequências de movimentos fluidos e definidos do kung fu, o corpo se fortalece e a mente se acalma. Meses atrás, cientes dessas semelhanças, Adriana e o professor de kung fu Argemiro Carneiro Neto, o Miro, decidiram juntar as duas artes milenares, engatando uma aula depois da outra. “Foi uma espécie de laboratório”, conta Miro. “Tivemos a ideia de somar as duas práticas e convidamos os alunos para experimentar.” O resultado impressionou. As aulas são dadas em sequência. Primeiro kung fu, estilo louva-a-deus do norte, depois ioga. Os dois professores, inclusive, participam um da aula do outro. A analogia das práticas com a simbologia da montanha e do trovão vem do I-Ching, texto clássico que é base do taoismo. “Uma das principais características da montanha é a estabilidade, e essa é uma busca muito presente no ioga”, explica Adriana. Na sua procura pessoal por edificar-se, tijolo a tijolo, ela conheceu o kung fu. “Sinto que ele bota a montanha em movimento com a força e a alegria de um trovão”, descreve. Quem constrói uma montanha interna é tolerante por saber-se forte. Já aquele que tem em si mesmo a potência de um trovão conhece seu vigor e sua agilidade – e, exatamente por isso, cultiva a bondade, a serenidade e o contentamento. O fato de as duas práticas convergirem em muitos aspectos não significa que elas precisam necessariamente ser praticadas juntas.
Cada uma é muito completa em seus propósitos. Mas, em tempos de dispersão e pouca disciplina, uma prática acaba ajudando a complementar e a reforçar os ensinamentos da outra. Como se uma mesma história fosse contada ao praticante em duas versões (alguns fatos se repetem e vão fi cando mais claros). Por exemplo: ambas contemplam variações da postura do guerreiro, com braços e pernas abertos – uma perna para a frente flexionada, a outra para trás esticada. Sua repetição vai ajudando a reforçar a mensagem de fi rmeza, foco e direcionamento. Outros detalhes que o praticante deixou passar na primeira aula são captados pelo corpo e pelo espírito na segunda. No kung fu, existe uma interação maior com o outro durante as simulações de luta enquanto a ioga propõe um caminho mais individual na execução dos movimentos. São formas diferentes de estar e de se relacionar com o mundo. Primeiro dinamismo, agilidade e expansão, depois a permanência, a flexibilidade e a calma. Ao final das aulas, a sensação é de leveza e alegria.
Em busca do divino
Ioga é uma palavra de origem sânscrita que significa união. Foi desenvolvida na Índia, como um sistema científico de autoconhecimento e busca de liberdade, e seus princípios foram compilados há cerca de 2500 anos. Já o kung fu é uma arte marcial milenar que surgiu na China e se baseia na observação dos movimentos dos animais. Não há como ignorar o aspecto físico inerente às duas práticas – corpo mais definido, flexível, relaxado, algo distinto de apenas sentar e meditar. Mas Adriana e Miro enfatizam que as práticas não se resumem a exercícios físicos, que geram algum bem-estar enquanto a endorfina está ativa. O corpo é a porta de entrada para cada aprendizado proposto pela ioga e pelo kung fu, no entanto, para atingir alguma realização, o praticante precisa levar seus fundamentos para todas as esferas da vida. “Com a mente mais equilibrada, os filtros mentais tornam-se mais puros e a visão dos objetos, pessoas e circunstâncias, mais realista”, comenta Adriana. Segundo ela, essa visão mais apurada da realidade se estende ao ego, que tende a diminuir e a tornar-se muito mais tolerante e altruísta, desde que a prática seja bem direcionada. “Do contrário, o praticante pode se tornar agressivo, egocêntrico e arrogante”, alerta a professora. As aulas costumam ser encerradas com a leitura de um texto religioso ou de tradição espiritual. Sem preconceitos: Miro é cristão, Adriana, vaishnava (um dos braços do hinduísmo), e os dois se respeitam, estejam falando sobre a Bíblia ou o Bagavad Gita. “Nosso objetivo é que cada um possa se aproximar de Deus, de uma forma universal”, esclarece Miro. “A gente espera que a pessoa tenha equilíbrio emocional, físico e psíquico para viver e dar seus próprios passos sem se sentir sobrecarregada ou decepcionada.” Quer dizer: força e alongamento são muito bem-vindos, mas a proposta é manter a mente tranquila e encontrar um sentido mais profundo para a vida. Adriana resume: “Não é religião. Mas a gente quer, sim, que cada um encontre um caminho e não fi que na superficialidade das coisas. Aí, de quebra, fica forte, flexível… feliz.”
Impressões de uma aprendiz 
Depois das aulas de kung fu e ioga, Marila Loureiro Gomes, fisioterapeuta e instrutora de pilates e ioga, conta como foi unir, pela primeira vez, as duas práticas milenares
“Minha relação com a ioga não começou hoje. Busquei a prática há um ano e meio, quando eu estava passando por uma dificuldade pessoal, uma transformação. Eu procurava uma fortaleza, algo que me fizesse refletir. Como tenho muita afinidade com a atividade física, fui bem racional ao procurar o exercício como ajuda. No fundo, a ideia era essa evolução pessoal. Que me ajudasse a enxergar melhor as coisas e me fortalecesse – de dentro para fora. No fi m das contas, eu aprendi a refinar a minha percepção e cheguei a um estado de felicidade. E esse estado independe da coragem que eu buscava. Ela acabou vindo como consequência. Porém, a sensação de bem-estar ao sair das aulas era o que mais me confortava. O que eu compreendi hoje, depois de fazer também uma aula de kung fu, é que esse estado de alegria parece mais palpável. Eu me senti segura e encorajada com os golpes e as posturas de defesa. Até pensei: por que não fi z isso antes? Os princípios das duas práticas são os mesmos: a concentração, por exemplo. O tempo todo você tem que estar atento. Ambas trazem sensações positivas e bem interessantes, que a gente persegue em muitos momentos da vida: equilíbrio, tranquilidade, coragem, bem-estar, leveza. Mas, ao mesmo tempo, de formas diferentes.”

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