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Linhas da vida

Ao bordar nossa própria história, podemos desmanchar o que não deu certo, olhar as coisas pelo avesso e descobrir que o resultado é só beleza

Linhas da vida – Shutterstock

Uma árvore majestosa, de tronco firme e imponente, com folhas miúdas que se espalham pelo ar. Assim foi um dos primeiros bordados da pedagoga Talita Araújo Martins Ribeiro, hoje professora do ofício. Nos galhos, suas duas fi lhas, uma neta e um bebê enrolado em uma manta. Era um novo membro muito desejado pela família, mas que não chegava. Colocá-lo ali, naquela árvore da vida, foi uma forma de evocá-lo, enquanto o desenho, como um todo, recuperava as mais deliciosas lembranças. “No momento em que eu bordava minhas fi lhas, pensava no tempo em que elas eram crianças. A concentração na própria linha e no tecido fazia minha mente não sair dali, daquelas memórias”, recorda Talita. Agora ela ensina outras mulheres a bordarem suas próprias histórias. Por meio dessa atividade ancestral, de um dos ofícios mais antigos que se tem conhecimento, observamos uma metáfora da vida: bordar é tempo para rever nossa trajetória e também desmanchar o que não ficou tão bom, encontrando restauração. “Quando meu marido teve câncer, comprei um linho de primeira qualidade e disse a ele: ‘Vou bordar sua cura’”, conta Talita. A cada uma das 16 sessões de quimioterapia, ao longo de oito meses, ela sentava ao lado dele e preenchia um pedacinho do que se tornou uma paisagem multicolorida – como se a alegria daquele desenho revertesse a dor do momento.

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O poder terapêutico do bordado é passado por Talita nos cursos livres que ela ministra em diversos locais de São Paulo, como a Associação Palas Athena. A técnica usada é a do bordado livre, que tem como precursora no Brasil a família Dumont – clã mineiro em que a mãe, dona Antônia, cinco fi lhos e alguns netos bordam coletivamente. Cada um faz um pouco e, assim, já ilustraram mais de 20 livros de autores como Jorge Amado, Rubem Alves e Marina Colasanti. Ao contrário do bordado tradicional, que tem entre os mais conhecidos o ponto-cruz, no estilo livre não existe um desenho pré-definido para ser recheado, mas um esboço. A partir apenas de alguns riscos, são traçados os contornos, laçadas, nós. A imagem vai ganhando forma ao longo do processo. Também não há compromisso com proporções e realismo. Peixes podem nadar a favor e contra a correnteza de um rio, ou adultos podem ter o mesmo tamanho de crianças – assim aconteceu com as filhas de Talita em seu primeiro trabalho, todas representadas como meninas, como sua saudade pedia.

Com Sávia, uma das irmãs Dumont, Talita descobriu sua paixão por bordar, há sete anos. Ela nunca tinha se interessado pelo assunto até fazer uma oficina que propunha usar linha e agulha como meio de expressão. “Depois, uma colega me contou que uma das irmãs Dumont viria a São Paulo. Fiz o curso e foi irreversível”, conta Talita, que espera pacientemente todos os dias o relógio bater as 6 da tarde para sentar-se na poltrona da sala de casa e, livremente, desenhar com linhas e agulhas os motivos que mais lhe comovem e contar histórias transbordantes de energia e afeto.

Terapia com as mãos

 Em sua oficina mensal Bordando a Vida, na Palas Athena, Talita ensina cerca de 16 pontos. Mas os aprendizados vão muito além. A atividade permite se concentrar no momento presente, à medida que se presta atenção na cor e textura da linha e do tecido, como uma meditação. “Não ter medo de desmanchar algo de que não se tenha gostado é outro ensinamento. É como na vida, é preciso ter coragem de desfazer o que não está bom”, assinala. A tendência é querer abandonar um bordado já na primeira dificuldade. Aí entram a perseverança e o compromisso com o trabalho, o sentimento de responsabilidade por aquilo. “Também falo muito sobre o avesso do tecido, de não ser aquela bagunça de linhas passando. Manter uma ordem ali, indiretamente, estimula um cuidado consigo mesmo, uma descomplicação”, afirma. Esse lado oposto do pano, que ninguém vê, pode justamente ser o mais revelador. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer chegou a afirmar que a vida poderia ser comparada a um bordado que, no começo, vemos pelo lado direito e, no final, pelo avesso. “O avesso não é tão bonito, mas é mais esclarecedor, pois deixa ver como são dados os pontos.”

Nas aulas, a paisagista Ana Cristina Collier percebeu como se cruzavam algumas linhas de sua vida. Ela já frequentou cinco vezes o curso oferecido por Talita na Palas Athena. Para fugir daquelas deprês de final de domingo ela buscou as aulas pela primeira vez. O resultado foi o painel Memórias de Nazaré das Farinhas, alusão à cidade no interior da Bahia onde passava as férias na infância. O pai de Ana Cristina tinha uma fábrica de tecidos na cidade. Aliás, todo um braço de sua família era de tradição tecelã. O avô, francês, técnico têxtil, imigrou para o Brasil contratado por uma indústria do ramo. Acabou casando-se com a fi lha do dono, que veio a ser a avó de Ana Cristina. “Deve vir daí meu gosto por paninhos”, constata Ana, que sempre os teve espalhados pela casa. Já os bordados, ela via a mãe, que sofria de problemas psíquicos, fazendo. “De certa maneira, fui ensinada que bordar era uma espécie de cura. Era a dela, e agora está sendo a minha”, afirma. Ana ainda vê um paralelo entre o ofício com as linhas e agulhas e o desenho de jardins, sua profissão de tantos anos. “O bordado é uma paisagem”, diz ela, que sempre usa plantas e pássaros nas cenas que elabora. A diferença é que, em vez de lidar com materiais brutos como pedra, argila, vasos e terra, agora ela trabalha com a delicadeza dos fios. “Coloquei o paisagismo no pano, de uma forma mais sutil”, conta ela, que, depois de deixar de exercer sua antiga profissão e ver os filhos saindo de casa, encontrou um novo sentido na vida com o bordado. “Brinco que agora, se tudo estiver ruim, ainda tenho meus paninhos.”
Algumas vezes, a ideia de cura pode ser quase literal. Para Clara Araki, outra aluna de Talita, esse fazer manual se entrelaçou em seu esforço de superação. Clara teve um acidente vascular cerebral e ficou com dificuldades no movimento das mãos. O bordado, para ela, é uma maneira de restaurar suas habilidades motoras, ponto a ponto. “E acho gostoso que seja em grupo. Ao mesmo tempo que você se concentra no que faz, ouve as histórias das pessoas e se inspira nelas e em seus desenhos”, diz.
 
Mulheres em roda
Mais que companheiras de curso, as mulheres que bordam juntas acabam tornando-se confidentes. Falam do tempo e também das dificuldades e alegrias que atravessam – sem perder o fi o da meada. Quando chegou a vez de a pedagoga Rosângela Saorin Ghiraldini contar sua história, a colega do lado se entusiasmou: “É muito interessante”, como querendo dizer que já conhecia. Rosângela teve três fi lhos em um período de apenas dois anos. Os segundos foram gêmeos. Nessa fase dedicada somente à maternidade, ela decidiu desencaixotar o material de bordado herdado da mãe. “Na época, há mais de 20 anos, comprei um curso de bordado à distância, por correspondência. Foi um entusiasmo passageiro, mas não fui adiante”, conta. Ao retomar o trabalho em recursos humanos, continuou bordando pessoas, como dizia sua terapeuta, mas nunca esqueceu das benesses das linhas e agulhas. “O bordado exercita a paciência e traz autoconhecimento. Você pode achar que não é capaz, mas é. Ajustando a técnica, os óculos, a mão, você consegue”, anima ela, tentando convencer a todos sobre as vantagens do ofício. Sem dúvida, no estilo livre não há cobranças. “Minha tônica é a liberdade de expressão”, diz Talita. Quando se fala em bordar a vida, é essa perspectiva que não pode se perder. Pois colocar-se no que se faz é importante, assim como nunca deixar de lado o prazer.

Em um dos livros ilustrados pela família Dumont, A Moça Telecelã (Global Editora), de Marina Colasanti, tudo o que a tal moça tecia se concretizava. Na hora da fome, era um lindo peixe, e logo ele estava em seu prato. Até que um dia ela resolveu tecer um marido que, diante do dom da companheira, pediu uma casa maior e, quando ficou pronta, queria um palácio. A moça ficou meses tecendo portas, tetos e salas. E os pedidos não paravam. Até que ela chegou à exaustão. Por fi m, resolveu desfiar o homem e voltou a tecer livremente – assim como se deseja no bordado e, por que não, na vida.

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