Linhas da vida
Ao bordar nossa própria história, podemos desmanchar o que não deu certo, olhar as coisas pelo avesso e descobrir que o resultado é só beleza

Ao bordar nossa própria história, podemos desmanchar o que não deu certo, olhar as coisas pelo avesso e descobrir que o resultado é só beleza
Uma árvore majestosa, de tronco firme e imponente, com folhas miúdas que se espalham pelo ar. Assim foi um dos primeiros bordados da pedagoga Talita Araújo Martins Ribeiro, hoje professora do ofício. Nos galhos, suas duas fi lhas, uma neta e um bebê enrolado em uma manta. Era um novo membro muito desejado pela família, mas que não chegava. Colocá-lo ali, naquela árvore da vida, foi uma forma de evocá-lo, enquanto o desenho, como um todo, recuperava as mais deliciosas lembranças. “No momento em que eu bordava minhas fi lhas, pensava no tempo em que elas eram crianças. A concentração na própria linha e no tecido fazia minha mente não sair dali, daquelas memórias”, recorda Talita. Agora ela ensina outras mulheres a bordarem suas próprias histórias. Por meio dessa atividade ancestral, de um dos ofícios mais antigos que se tem conhecimento, observamos uma metáfora da vida: bordar é tempo para rever nossa trajetória e também desmanchar o que não ficou tão bom, encontrando restauração. “Quando meu marido teve câncer, comprei um linho de primeira qualidade e disse a ele: ‘Vou bordar sua cura’”, conta Talita. A cada uma das 16 sessões de quimioterapia, ao longo de oito meses, ela sentava ao lado dele e preenchia um pedacinho do que se tornou uma paisagem multicolorida – como se a alegria daquele desenho revertesse a dor do momento.
Com Sávia, uma das irmãs Dumont, Talita descobriu sua paixão por bordar, há sete anos. Ela nunca tinha se interessado pelo assunto até fazer uma oficina que propunha usar linha e agulha como meio de expressão. “Depois, uma colega me contou que uma das irmãs Dumont viria a São Paulo. Fiz o curso e foi irreversível”, conta Talita, que espera pacientemente todos os dias o relógio bater as 6 da tarde para sentar-se na poltrona da sala de casa e, livremente, desenhar com linhas e agulhas os motivos que mais lhe comovem e contar histórias transbordantes de energia e afeto.
Terapia com as mãos
Em sua oficina mensal Bordando a Vida, na Palas Athena, Talita ensina cerca de 16 pontos. Mas os aprendizados vão muito além. A atividade permite se concentrar no momento presente, à medida que se presta atenção na cor e textura da linha e do tecido, como uma meditação. “Não ter medo de desmanchar algo de que não se tenha gostado é outro ensinamento. É como na vida, é preciso ter coragem de desfazer o que não está bom”, assinala. A tendência é querer abandonar um bordado já na primeira dificuldade. Aí entram a perseverança e o compromisso com o trabalho, o sentimento de responsabilidade por aquilo. “Também falo muito sobre o avesso do tecido, de não ser aquela bagunça de linhas passando. Manter uma ordem ali, indiretamente, estimula um cuidado consigo mesmo, uma descomplicação”, afirma. Esse lado oposto do pano, que ninguém vê, pode justamente ser o mais revelador. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer chegou a afirmar que a vida poderia ser comparada a um bordado que, no começo, vemos pelo lado direito e, no final, pelo avesso. “O avesso não é tão bonito, mas é mais esclarecedor, pois deixa ver como são dados os pontos.”
Em um dos livros ilustrados pela família Dumont, A Moça Telecelã (Global Editora), de Marina Colasanti, tudo o que a tal moça tecia se concretizava. Na hora da fome, era um lindo peixe, e logo ele estava em seu prato. Até que um dia ela resolveu tecer um marido que, diante do dom da companheira, pediu uma casa maior e, quando ficou pronta, queria um palácio. A moça ficou meses tecendo portas, tetos e salas. E os pedidos não paravam. Até que ela chegou à exaustão. Por fi m, resolveu desfiar o homem e voltou a tecer livremente – assim como se deseja no bordado e, por que não, na vida.