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Revolução na ponta dos pés

Caminhar é um gesto de equilíbrio, de recuperação do contato com o nosso lado mais íntimo e pacífico. E também um jeito prazeroso de se integrar aos espaços coletivos. Vai na contracorrente da tecnologia e da pressa. E por isso mesmo instiga a uma nova ordem. Tocada passo a passo

Revolução na ponta dos pés – Vadim Petrakov / Shutterstock

Olhe para seus pés. Pense somente neles, responsáveis por nos levar para onde quisermos. É nessa hora que tiramos o corpo da inércia e lembramos que temos uma poderosa bomba no peito, além da capacidade de produzir endorfinas, substâncias associadas ao bem-estar. A adesão em massa à caminhada reduziria drasticamente os índices de obesidade do planeta. “Usamos aproximadamente 200 músculos para dar um único passo”, informa a personal trainer e consultora Iva Bittencourt, catarinense radicada em São Paulo. Avalie, então, o quanto o corpo trabalha ao longo de uma boa caminhada. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 300 mil pessoas morrem por ano de doenças associadas diretamente à inatividade física no Brasil. No mundo, esse número chega a 5,3 milhões de mortes por ano. Se caminhamos menos, por exemplo, gastamos menos energia, ganhamos mais peso e passamos a ter distúrbios associados a isso, como o diabetes e os males cardiovasculares. Não é exagero dizer, portanto, que calçar um par de tênis e sair por aí pode salvar vidas. É mesmo uma guinada em prol da saúde. E não só no aspecto físico. Como aponta o filósofo italiano Adriano Labucci no livro Caminhar, uma Revolução (ed. Martins Fontes), correr o mundo com as próprias pernas – escolha ao alcance da maioria de nós –, é um forte catalisador de experiências profundas e transformadoras.

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A começar pelo fato de que para caminhar precisamos necessariamente abandonar o casulo. Trancar a porta de casa, deixar o carro na garagem trocar  o confinamento do transporte público pela brisa fresca da manhã. De repente, a primeira descoberta: o mundo que antes servia de cenário agora nos invade, nos afeta, nos acorda. E também nos devolve nossa envergadura. A gente só consegue prosseguir se respeitar a própria passada, os próprios pulmões. E assim, outra descoberta: podemos transgredir qualquer ordem. Sem depender de carro, moto, bike, metrô, ônibus. O único meio de transporte que requer nossa reverência são eles, os próprios pés – e alguns sapatos ou tênis, parceiros de jornada –, que nos permitem passear pela vida de peito aberto e olhos atentos, voltados a um só tempo para fora e para dentro. Caminhar, como define Labucci, sustenta por si só um tripé: “Não nos apressar; acolher o mundo; e não nos esquecer de nós mesmos”.
Seres pacificados
 “Durante um longo período caminhei todos os dias, em jejum, por uma hora, em ritmo forte nas ruas e na praça do meu bairro. Estabelecia uma questão ou um propósito que ansiava compreender e seguia na decidida caminhada. Os efeitos e os insights me surpreendiam me fazendo persistir a cada novo dia. Observava que o meu mundo interno se ampliava a cada movimento, num divertido ir, vir, sentir, descobrir.” 
Essa rica experiência pertence à psicóloga clínica Neiva Bohnenberger, gaúcha radicada em São Paulo. A exemplo dela, qualquer um pode caminhar por si mesmo, na tentativa de alinhar corpo e mente, exterior e interior. Na solidão da caminhada, nossas vozes internas têm a chance de se sobrepor aos imperativos externos. É aí que podemos nos apaziguar com quem somos ou desejamos vir a ser. “Caminhar permite a lucidez da mente que passa a expressar a verdade de cada um”, destaca Neiva. Sem falar que o ato de deslocar-se no espaço pode ativar registros psíquicos muitos profundos e escondidos. “Um corpo em movimento liberta o que está contido em sua memória”, sublinha a psicóloga. Em outras palavras, andanças regulares podem ser um canal para reconhecer e redimensionar sentimentos como tristeza, culpa e raiva. Experimente. Mais leve e firme na base, o caminhante segue em paz. Com o espírito harmonizado.
Não há mistério algum nisso. “Qualquer atividade corporal que demande uma percepção consciente do gesto nos leva de volta para o universo vivo que somos nós, que normalmente se perde no excesso de pensamentos e hábitos inconscientes”, afirma a terapeuta eutonista Andréa Bomfim Perdigão, de São Paulo. Segundo ela, o contato dos pés com o chão, o foco na respiração e o calor do sol sobre a pele durante a caminhada são excelentes âncoras para serenar o mental. “Por menor e mais breve que seja, a consciência do corpo nos devolve a presença, expande a consciência, de onde vêm potência e criatividade”, complementa.
Quantos cientistas, artistas e pensadores ao longo da história devem suas descobertas e criações a boas caminhadas em vielas, parques, bosques, praias e margens de rios? Arejar a mente através do movimento corporal equivale a limpar e posteriormente adubar o solo. Depois, quando menos se espera, o broto perfura a terra e se mostra à luz. “Não paramos de pensar nunca, no entanto, no decorrer da caminhada, essa função fica mais lenta, intuitiva, incorporada, fresca”, reforça Andréa. 
É por essas e outras que, para a tradição budista, caminhar é um modo de meditar. Desde que nosso foco esteja no corpo que se desloca – sem correria, claro. “Coloque presença e atenção consciente da mente sobre a intenção, o esforço, as partes do corpo, a respiração, as sensações e formações mentais que surgem no caminhar, atentos aos apegos (que surgem das sensações agradáveis) e aversões (que provêm das sensações desagradáveis), de modo a não se apegar a nada, compreendendo a impermanência, insatisfatoriedade e impessoalidade dos fenômenos do corpo e da mente”, explica Arthur Shaker, professor de meditação e pesquisador do Núcleo Neurociências, Mindfulness e Saúde da Casa de Dharma, em São Paulo. Feito isso, prepare-se para colher uma leva de coisas boas. “Energia, tranquilização, fortalecimento do corpo, concentração e serenidade sobre as ruminações e preocupações incessantes da mente. Assim, cultivamos saúde e mente equilibrada”, lista Shaker. 
A postura correta favorece a prática e preserva o físico. “Mantenha o tronco ereto, a cabeça direcionada para a linha do horizonte com o olhar para a frente, os braços  levemente  flexionados e relaxados ao lado do corpo, acompanhando o movimento suave das passadas”, ensina Iva Bittencourt. 
Andar para desacelerar 
Dar prioridade aos pés é também um ato de resistência à ditadura da pressa. Permite desacelerar o ritmo e, mais do que isso, desperta nossa condição humana em contraposição ao primado (e à velocidade) das máquinas em um mundo cada vez mais automatizado. “Toda a tecnologia que nos serve hoje nos confunde e distancia de nosso corpo. Começamos a achar que o tempo natural dele – da digestão, da cura de nossas dores, de nossas reflexões – é excessivamente lento e atrasado”, observa Andréa, que acrescenta. “O movimento nos reorienta. E, com isso, nos tornamos mais capazes de, por um lado, respeitar nossas limitações e dificuldades, e, por outro, festejar nossos potenciais. Dentro da nossa medida mais real, que está longe de se parecer com a ligeireza dos bites.” 
Você já reparou que somente no compasso do vagar chegam até nós flagrantes da vida miúda que nos sensibilizam e nos revitalizam? Pode ser o perfume de uma flor que embeleza a cerca viva de uma casa, o gato dormindo na nesga de sol da calçada, o cumprimento de dois velhos amigos no ponto do ônibus, o sorriso puro de uma criança, o sino de uma igreja, um colorido muro grafitado. Está ao alcance dos nossos pés a oportunidade de desbravar fronteiras e conhecer o nunca antes visto, revisitar o que conhecemos, só que com novos olhos. Tudo aquilo que, para ser devidamente saboreado, requer estado de presença.
Aos apressados, um recado de Leticia Leda Sabino, administradora de empresas e urbanista, ex-carro-dependente e idealizadora do projeto SampaPé, que estimula a exploração corpo a corpo da cidade. “Ao caminhar não existe ‘perder’ tempo se deslocando, porque todo o período de caminhada é cheio de trocas e de experiências”, garante ela, que adora descobrir enquanto anda pela urbe galerias de arte, restaurantes pequenos, escadarias, pracinhas, árvores frutíferas e detalhes arquitetônicos.
A atriz paulistana Ana Flávia Chrispiniano passou a cultivar essa mesma cumplicidade com os espaços públicos desde que vendeu seu carro e se mudou para a zona sul carioca. “Tenho o privilégio de fazer compras, praticar esporte e passear à noite a pé. Sinto que me acalmo e me torno mais contemplativa e sensível em relação ao que vejo no entorno, além de absorver a paisagem por onde passo, o que não acontece quando estamos motorizados”, avalia ela, que, com as próprias pernas, costuma conhecer pessoas e lugares pitorescos, como a floricultura de uma simpática senhora de oitenta e poucos anos e uma loja de artigos russos onde também se ensina o idioma. “Você está indo para um compromisso e de repente um outro lugar ou pessoa atraem seu interesse e trazem uma nova experiência. Essas surpresas dão um colorido especial às tarefas cotidianas”, observa. 
Curiosidade pela jornada 
Mover o esqueleto pode nos levar ainda mais longe do que o espaço físico sugere. Do ponto de vista emocional, superar o sedentarismo nos sintoniza com a vida como aventura, sujeita a riscos e imprevistos. “A curiosidade é parte do experienciar, o que é emocionante e necessário uma vez que abre em nós a possibilidade de nos encantarmos pela vida em si”, opina Neiva. 
Ao agitar os pés alimentamos a energia da busca, bem como a coragem de desbravar novas paisagens (mesmo sem garantia alguma de êxito). É assim, com uma pitada de ousadia e outra de confiança, que recuperamos o entusiasmo e a curiosidade pelo trajeto percorrido. Muito mais do que pelo ponto de chegada. Ótima maneira de amainarmos a ansiedade e nos abrirmos para as muitas surpresas e insights que podem nos alegrar a cada quarteirão. “Não se caminha para chegar depressa. Caminha-se para que as coisas nos alcancem no tempo propício”, ensina Labbucci.
Em harmonia com o entorno 
Quem se coloca em trânsito está também se posicionando contra o isolamento. Uma vez a céu aberto, rodeados por desconhecidos, temos que pedir licença, entrar em contato com o outro, ceder passagem, acenar, cumprimentar, sorrir, bater papo. Voltar a ser parte de um todo muito maior e mais complexo do que a célula privada. É por isso que, segundo Labbucci, caminhar favorece a humildade. “Quem caminha aprende a não se considerar autossuficiente, a ver os outros como semelhantes, dos quais, na imprevisibilidade do caminho, se pode precisar.” (Favorece também a leveza pois o caminhante precisa se restringir ao essencial. Não pode carregar peso extra.) Sim, andar nos torna mais solidários e despertos, assim como as ruas que absorvem nossas passadas. “Caminhar dá um testemunho do cuidado e da atenção com os lugares pelos quais passamos para que outros possam colocar-se a caminho como nós”, defende o filósofo italiano. “Ruas movimentadas e com vida são locais de troca, de vivência urbana, portanto locais mais seguros e de valor para uma cidade”, concorda Beatriz Vanzolini Moretti, diretora de operações do projeto Bela Rua, iniciativa engajada na transformação dos espaços públicos, com sede na capital paulista. Ciente do potencial que toda cidade possui para inspirar quem nela mora, ela nos lembra de algo soterrado pela supremacia dos motores: “A cidade deve ser feita para as pessoas.”
No entender de Labucci, cabe à população exigir das autoridades a abertura de áreas comuns capazes de nos devolver o prazer do passeio. Mas, na visão de Leticia, temos que não só reivindicar e esperar por soluções mas também construir juntos essa almejada realidade. “A cidade só pode ser melhorada pelas pessoas que a usam e experimentam. Caminhar nos faz mais cidadãos”, pontua a urbanista, que nos convida a aderir a esse gesto que é, como ela bem lembra, não poluente, não ruidoso, saudável, sustentável e divertido. Uma bem-vinda revolução!
Reflexologia: cuidar da base  para manter a envergadura 

De acordo com a milenar medicina tradicional chinesa, em cada pé existem aproximadamente 7 200 terminais nervosos. Uma verdadeira concentração de microantenas hipersensíveis. Imagine que fonte privilegiada de sensações e estímulos para resgatar o apetite pela jornada, pé ante pé. “Ao caminhar podemos perceber a vida e a pulsação que existe na Mãe Terra. Podemos sentir que estamos acolhidos na medida em que reverenciamos e tocamos o planeta com algo sagrado que nos sustenta”, filosofa o fisioterapeuta Marcos Tadeu de Oliveira, especializado em acupuntura e reflexologia podal (que trabalha terapeuticamente áreas reflexas dos pés), da clínica Integrativa Terapias Naturais, em São Paulo. Tendo em vista que a nossa morada emana um campo eletromagnético, vale muito a pena, de vez em quando, retirar o calçado e sair pisando na grama, no barro, na areia. “O contato direto dos pés com o solo nos conecta com o magnetismo terrestre e assim podemos renovar as energias, melhorar a disposição, ativar a circulação de retorno, além de equilibrar a pressão arterial e prevenir dores de cabeça, já que a atividade auxilia na redução do excesso de pressão nessa região”, enumera o especialista.