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Toda forma de espiritualidade vale a pena

Uns vão à igreja, à sinagoga, ao centro espírita, outros buscam encontrar Deus durante a prática da meditação, ao ouvir Beethoven, amassar o pão ou até mesmo em uma longa caminhada contemplativa. Para nos conectarmos com o divino que existe em nós e abrirmos o coração

Toda forma de espiritualidade vale a pena – iStock
Entre o céu e a terra cabem in nitos mistérios. Um deles certamente aponta para a necessidade humana de se ligar a algo maior e bem mais profundo do que a realidade concreta. Essa fome interior, que nada tem a ver com o fato de seguirmos ou não uma religião estabelecida, é o que nos leva na direção de Deus, do Espírito, da Fonte, do
Supremo, ou tantas outras denominações “irmãs”, já que a espiritualidade tem muitas faces.
Há quem se curve diante do astro rei todas as manhãs, reze com o terço entre as mãos espalmadas, entoe mantras ou cânticos de louvor enquanto limpa a casa. Ou se deixe levar pelos sentidos e detecte no perfume de uma flor, no ventre de uma mulher grávida ou na abóbada estrelada de um templo a presença de uma Inteligência Superior, que nos conforta e anima na jornada. O importante é que o gesto seja um recolhimento verdadeiro, um ir para um lugar dentro de si onde é possível se conectar à própria
essência. “Penso que essa nossa condição de sempre nos religarmos é uma prévia inevitável e anterior às religiões”, observa o padre e teólogo Márcio Fabri dos Anjos, professor de bioética na Universidade São Camilo, em São Paulo. Em outras palavras, como defendem as mais distintas tradições tanto no Oriente quanto no Ocidente, o Criador não reside em nenhuma instituição, e sim dentro de cada ser humano.
E, se há uma morada para Ele, esta é, sem dúvida, o coração. Para as mais diversas tradições espirituais, o centro cardíaco é a nossa ponte com o sagrado e com nossos
semelhantes. É dali que brotam sentimentos elevados, como a benevolência, a gratidão e o perdão. Tudo de que necessitamos para semear harmonia e paz pelo planeta.
“A única coisa que pode unir os seres sensíveis é o Amor”, sustenta o dalai lama, líder do budismo tibetano.
Alguns estudiosos arriscam dizer que no futuro as religiões perderão a razão de existir. As pessoas irão optar por caminhos espirituais mais livres e que promovam o
desabrochar do amor por tudo e por todos. Nossos passos seriam então guiados por uma ampla e a ada consciência espiritual. “Perfeita expressão interna da verdade, cheia de felicidade genuína, e que você, por sua vez, compartilha com os outros”, como escreveu o indiano Paramahansa Yogananda, no livro Romance com Deus (ed. Self-Realization Fellowship).
Sentir a vida
Em um mundo assolado pelo materialismo e por ideais onipresentes de beleza e sucesso que fazem disparar a ansiedade, o vazio existencial e o desamor, a espiritualidade ressurge como um oásis no deserto. “Até mesmo nas situações privilegiadas, em que pensamos estar satisfeitos, logo surge esse sentimento de que algo nos falta. Temos então a prova de que a vida material não é suficiente. Esse algo que nos falta é tocar nosso próprio potencial de paz”, afirma o lama Gangchen Rinpoche.
Ao abrirmos o peito para essa outra realidade, nos desligamos da racionalidade por um momento e ganhamos uma lufada de ar fresco. Espiritualidade não é pensar o mundo, mas perceber o mundo. “Para isso precisamos desenvolver a inteligência cordial ou emocional, ou seja, a capacidade de sentir a partir do coração”, propõe o teólogo Leonardo Boff, que também delineia a existência de uma inteligência espiritual, feita do sentimento de que pertencemos a um grande todo, que tudo penetra e que gera em nós esperança de que vale a pena viver e conviver com os demais.
Imagine uma lamparina incumbida de iluminar o trajeto mais adequado. “A espiritualidade é uma condição humana pela qual escolhemos nossos próprios caminhos de vida. Então a opção não é ter ou não ter uma espiritualidade, mas sim ter uma que seja boa, construtiva”, pontua o padre Márcio dos Anjos. Na visão de Bel Cesar, psicoterapeuta alinhada à perspectiva do budismo tibetano, de São Paulo, a trilha certa para nós é aquela que confere “um significado suficientemente autêntico para nos manter nutridos pela vontade de viver”.
Deus, Alá, Javé, Tao também se manifestam no entusiasmo que sentimos. Na sua etimologia, a palavra vem do grego en-theos-mós, que significa “ter um Deus dentro”. “Essa energia que nos toma e dá força para superar obstáculos é maior do que nós e está em nós. A isso chamamos de Deus interior. Experimentar o entusiasmo, portanto, significa ser carregado e movido por Deus”, define Boff.
Se aquilo que alimenta nosso espírito e traz puro contentamento acarreta mudanças positivas de dentro pra fora, isso significa que a transformação interior está ocorrendo em níveis profundos. “Conforme nos desenvolvemos espiritualmente, ampliamos nosso próprio potencial de percepção da realidade. Adquirimos uma
maior compreensão sobre nós e sobre os outros”, argumenta Bel. Mas atenção: para que esse crescimento seja sustentável, temos que selar um pacto com nós mesmos. “A espiritualidade cresce à medida que nos comprometemos a nos tornar pessoas cada vez mais lúcidas e  generosas, capazes de beneficiar tanto a nós mesmos como um número maior de pessoas, além do meio ambiente no qual vivemos”, ressalta a psicoterapeuta.
Na visão de Boff, o mundo de hoje precisa desenvolver com urgência uma compreensão que se bifurque nas seguintes direções: o zelo pela Mãe Terra, nossa Casa Comum, tão necessitada de cuidados, e a compaixão pelos que sofrem mundo afora. “Ouvir simultaneamente o grito do pobre e o grito da Terra. Isso nos convoca a ter amor solidário e atuar para proteger e cuidar para que não continuem a gritar”, detalha o pensador. “Vejo o divino muito perto quando experimento a ação de pessoas
que usam de seu poder de modo construtivo. É nisto que a gente experimenta o ensaio de sermos divinos: usar de nosso poder para comunicar o bem”, complementa
dos Anjos.
Muitas são as trilhas
No entender de Jalal ud-Din Rumi (1207-1273), grande místico e poeta sufi – vertente mística do islã –, existem tantos caminhos para a espiritualidade quanto caminhantes. Cada indivíduo saberá em qual direção seguir, se a mente e o coração estiverem quietos o suficiente para compreender os sinais emitidos pelo Universo. Seja parado, em movimento, no silêncio ou ao sabor da música, o cultivo da vida espiritual se a na ao jeito de ser de cada um. Confira, a seguir, algumas veredas capazes de conduzir a esse acesso e acionar o divino em nós.
Pelo som ou pelo silêncio
Ficar inteiramente só, no mais absoluto silêncio, é, segundo Yogananda, uma maneira certeira de experimentar a “suprema alegria da vida” jorrando da alma. Ao nos aquietarmos, permitimos que a consciência se eleve. Novas percepções e insights podem ser assimilados. E podemos experimentar uma verdadeira sensação de paz e unidade, como se cada coisa estivesse no seu devido lugar. Há também quem prefira seguir a vibração dos sons para fazer uma prece. O célebre mantra OM é considerado a primeira manifestação do divino. A repetição dessa palavra faz com que a consciência se conecte com o Supremo. Por isso, quase todos os mantras começam com ela. O som de instrumentos como o tambor, no xamanismo, e do atabaque, no candomblé, também tem a função de propiciar estados mais elevados de consciência. Cânticos religiosos ou qualquer música que toque profundamente o coração são igualmente canais que nos sintonizam com o sagrado.
Na terapia
O espaço terapêutico, não importa a linha seguida, é sem dúvida um lugar para trabalhar a dimensão espiritual do ser humano. Para a psicóloga, arteterapeuta
e escritora Mônica Guttmann, de São Paulo, é impossível separar o aspecto emocional do espiritual. “Quanto mais a pessoa conseguir se libertar de feridas que aprisionam e de emoções que não são saudáveis, porque geram culpa, medo e raiva, mais ela conseguirá se abrir para a verdadeira espiritualidade que é o amor”, ela afirma. A inteireza, que se reflete em força perante as adversidades e compaixão por si mesmo e pelos outros, vem da capacidade de identificar e acolher amorosamente
tanto nossos potenciais e talentos quanto nossas partes mal-resolvidas e pendências com o passado. É por isso que o psiquiatra suíço Carl G. Jung dizia: “Sua visão se
tornará clara somente quando você olhar para dentro do seu coração. Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro desperta”. Claro, esse processo leva tempo. “Acho perigoso a pessoa querer alcançar estágios mais avançados na espiritualidade sem trabalhar fortemente a parte emocional. Surge um hiato entre o lugar em que elas estão e aonde almejam chegar”, alerta Mônica.
Por meio do corpo
Um movimento ou postura pode acionar a energia vital e desencadear uma transformação interior. É o caso do tai chi chuan, arte marcial chinesa milenar. “Desde sua origem, essa arte visa o desenvolvimento da espiritualidade humana na medida em que estimula o desabrochar dos nossos melhores potenciais”, esclarece Ângela Soci, diretora da Sociedade Brasileira de Tai Chi Chuan e Cultura Oriental (SBTCC), em São Paulo. Atualmente, a prática é vista como um sistema de saúde integral. “Isso significa ter um corpo robusto e saudável, uma mente clara, emoções equalizadas e abertura para uma conexão com o espírito.” Também entendido como uma meditação em movimento vagaroso, o tai chi chuan é opção para quem tem dificuldade de permanecer estático enquanto medita ou reza. “Há uma interiorização
durante toda a prática”, destaca Ângela. A atividade ainda estimula o contato com a natureza, antídoto contra o estresse e a insatisfação que sobrecarregam o espírito, e faz o praticante se estruturar internamente. No livro Meditação para Quem Acha Que Não Consegue Meditar (Matrix editora), Sandro Bosco descreve a prática como uma ferramenta de acesso para a paz que existe em cada um de nós. Há diversas formas de chegar a esse caminho, mas, uma vez criada a primeira trilha, defende o professor, fica sempre mais fácil não se perder pelo caminho e atingir o equilíbrio. Essa conexão interna, segundo Bosco, é um bem da humanidade, desvinculado de qualquer religião e sempre acessível.
Nas viagens
A certa altura da vida, há quem rume para um refúgio sagrado afim de buscar as revelações espirituais reservadas aos peregrinos. “Vejo o caminho espiritual cotidiano como um movimento de momento a momento. Logo, uma peregrinação é algo que está a serviço desse movimento do espírito. Não é uma mera viagem de conhecimento, e sim uma jornada da alma”, distingue o paulista Marco Schultz, mestre iogue que há 19 anos lidera grupos de estudos em viagens a importantes centros de peregrinação pelo mundo, como Índia, Israel e Machu Picchu. Segundo ele, vontade de viajar não basta. É preciso ouvir o chamado. “Todo local de peregrinação invoca o sentido mais profundo de reconectar o homem à essência, a algo que não morre em nós, que é o sopro, a inspiração, enfim, nosso Eu maior”, afirma. Para o guia, uma frase sintetiza o espírito dessa verdadeira busca: “Bem-aventurado aquele que marcha, que caminha, que peregrina, porque ele já comunga com o Reino dos Céus, em cada um e em todos nós”.
 
Acessando os corpos sutis
Para ajudar quem sente dificuldade de descer até a camada profunda onde habita o divino, a milenar sabedoria indiana oferece um guia. Segundo essa loso a, o
Eu verdadeiro se reveste de cinco corpos. O corpo físico é por onde acessamos os sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato); o corpo vital, aquela porção suscetível
a desejos, medos e agressividade, por onde flui a energia sutil; o mental, por sua vez, pode ser de nido como uma usina de sentimentos densos, como ansiedade, solidão, inveja e ressentimento (é nessa camada do ser que se desenrola o exaustivo diálogo interno, aquela briga de vozes e pensamentos que se sobrepõem sem dar trégua à mente). Já os corpos intelectual e espiritual são nossas partes mais elevadas. O intelectual domina atividades como a intuição, a inspiração filosófica, científica ou artística, ao passo que o espiritual é a sede das experiências que tocam o sublime, o inexplicável. É, portanto, a porção mais próxima do Eu verdadeiro. Dar atenção a ele faz sair da confusão gerada pelos corpos vital e mental e pacifica.

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