Bebês reborn e saúde mental: Entre o afeto, o luto e polêmicas

Possuem veias visíveis, marcas de nascença, peso compatível com o de um bebê de verdade, cheiro de talco e, em alguns casos, até sistemas internos que simulam temperatura corporal

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Bebês reborn são bonecos hiper-realistas, criados artesanalmente para se parecerem com recém-nascidos reais – Créditos: depositphotos.com / lifesummerlin

Bebês reborn são bonecos hiper-realistas, criados artesanalmente para se parecerem com recém-nascidos reais. Possuem veias visíveis, marcas de nascença, peso compatível com o de um bebê de verdade, cheiro de talco e, em alguns casos, até sistemas internos que simulam temperatura corporal. Surgida nos anos 1990, nos Estados Unidos, essa arte conquistou o mundo com o avanço das redes sociais, onde artistas e colecionadores passaram a exibir suas criações e rotinas. Inicialmente vistos como itens artísticos ou de coleção, os reborn passaram a ocupar outras funções: afetivas, simbólicas e, em alguns contextos, até terapêuticas.

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A função simbólica dos bebês reborn

Na psicologia do desenvolvimento, objetos de transição como mantinhas e pelúcias ajudam crianças a lidar com separações e inseguranças. Mas o que ocorre quando um objeto deixa de ser ponte simbólica e começa a ocupar o lugar do que foi perdido ou sequer chegou a existir?

É exatamente isso que vemos em muitos casos com os bebês reborn. Mulheres que passaram por abortos espontâneos, perdas neonatais, histerectomias, infertilidade ou enfrentam o chamado “ninho vazio” após os filhos crescerem, muitas vezes, encontram nos bonecos, uma forma de ressignificar essas dores. Para essas pessoas, segurar um desses não é uma brincadeira. É uma tentativa consciente, ou não, de reparar afetivamente um trauma profundo.

Entre o cuidado e a dor: um possível instrumento terapêutico?

Na prática clínica, não cabe à psiquiatria o papel de julgar ou patologizar o que não compreende. Há contextos em que o bebê de brincadeira pode funcionar como facilitador emocional. Em pacientes com luto complicado, transtornos de apego, quadros dissociativos ou depressão perinatal, o objeto pode representar uma forma segura de ativar vínculos afetivos ou resgatar o instinto de cuidado.

Em instituições de longa permanência, especialmente com idosos que vivem com demência, relatos clínicos sugerem que o contato com o mesmo pode despertar memórias, reduzir agitação e aliviar sentimentos de solidão. A presença do boneco, nesse contexto, age como âncora emocional.

Mas é fundamental ressaltar: o uso terapêutico só tem validade quando mediado por profissionais qualificados e integrado a um projeto terapêutico claro. Fora isso, existe o risco de reforçar fantasias delirantes, dissociativas ou dependências emocionais que mais alimentam o sofrimento do que aliviam.

Bebês reborn, redes sociais e a cultura da performance

Nos últimos anos, uma nova camada se somou ao fenômeno: o impacto das redes sociais. Canais no YouTube e perfis no Instagram compartilham vídeos de rotinas maternas com bebês reborn: fraldas trocadas, mamadeiras preparadas, passeios de carrinho e até festas de aniversário.

Muitos desses vídeos são, na verdade, encenações com roteiro e estética pensados para aumentar o engajamento com o público. Para além do aspecto simbólico ou afetivo, há aqui também uma estratégia comercial: vídeos bem sucedidos vendem mais bonecos, mais roupinhas, mais acessórios. É um nicho de mercado com seguidores fiéis, fóruns ativos e alto valor agregado.

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Diferentes perfis

A maioria dessas mulheres é colecionadora e se encontra em comunidades com outros do mesmo tipo. Assim, podemos fazer um paralelo com homens que são colecionadores de carros por exemplo, que se reúnem em eventos e fazem parte de todo um universo ao qual o hobby compreende. O cuidado com o boneco, da mesma forma, faz parte de um universo lúdico, organizado e consciente. Mas nem todos os casos são assim.

Em alguns perfis, a minoria dos casos, a linha entre performance e realidade se embaralha. Quando o investimento afetivo se torna exclusivo em detrimento do trabalho, vida social e autonomia, é preciso observar se esse comportamento mascara um sofrimento psíquico mais profundo. O algoritmo das redes sociais reforça bolhas que validam essa fantasia como realidade. A frase “sou mãe de reborn” se torna identidade. E, para algumas, substitui uma função materna frustrada ou ferida. E são esses casos que precisamos observar com mais atenção do ponto de vista psíquico.

A questão não está em colecionar bonecas, carrinhos ou brinquedos – algo culturalmente aceito – inclusive, entre adultos. O ponto central é outro: até que ponto, estamos trocando a vida real por simulações afetivas? Que lugar essas fantasias ocupam em nosso cotidiano?

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Outro ponto de vista

Conversei com Nane Reborns, influenciadora e colecionadora das bonecas, que está imersa neste movimento. Ela me deu o seguinte depoimento pessoal sobre o caso: “Sou colecionadora há quase 20 anos e sempre gostei de bonecas, então minha paixão começou quando vi a primeira vez na TV. Nos últimos dias, a arte viralizou e agora, a bolha estourou. Porém, o que está viralizando são os nossos vídeos de encenação e isso tem causado dúvidas nas pessoas. Mas não passa de uma grande novela, tudo fictício. Somos colecionadoras, mães, estudantes e não paramos nossas atividades diárias por conta dos reborns, nós as vemos como bonecas”.

Por outro lado, em alguns casos, os bebês reborn mimetizam uma maternidade idealizada. Eles não choram, não adoecem, não crescem, não exigem renúncias. Uma maternidade plástica sem as dores e complexidades do vínculo real.

Reflexão

Em um extremo oposto, mas igualmente simbólico, vale lembrar o fenômeno japonês das bonecas adultas com que alguns homens têm se relacionado ou até casado. São comportamentos que, embora distintos, levantam uma mesma questão: o que estamos tentando substituir? Esses casos não devem ser vistos com escárnio, mas com atenção. Eles nos provocam a refletir sobre carências emocionais contemporâneas, dificuldade de lidar com a frustração e o crescente desejo de controle absoluto sobre o afeto. Desejo esse que, ironicamente, exclui o outro real.

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Casos clínicos extremos e dilemas éticos

Em 2013, um caso chamou a atenção da imprensa britânica. Uma mulher, com histórico de perdas gestacionais, chamou a polícia desesperada após o sequestro de um boneco. A babá, desavisada, havia o levado por engano. A mulher, em estado de choque, acreditava que haviam levado seu filho. Embora pareça caricato, o caso escancara o quanto os bebês reborn podem ocupar um lugar ambíguo entre a memória e o delírio ou/e o luto e a elaboração. O brinquedo, por si só, não é patológico, mas pode ser o reflexo de uma dor que ainda sangra. E cabe à saúde mental avaliar o conjunto: o contexto, a função e a frequência e o objeto.

Quando o cuidado vira compulsão

Em algumas situações, os gestos de cuidado com o bebês reborn assumem feições obsessivas. A repetição de rotinas, como dar banho, trocar, alimentar e dormir, passa a ter função ansiolítica, afastando pensamentos dolorosos ou sensações de vazio. Em quadros depressivos, esse cuidado pode representar a tentativa de lidar com a própria desesperança.

Além disso, há um mercado obscuro em torno da temática, no qual empresas prometem cura para a depressão, superação do aborto ou alívio para a solidão. Isso não é apenas enganoso, é antiético. Nenhum boneco substitui psicoterapia. Nenhum objeto resolve um trauma. Tratamento exige vínculo humano, escuta profissional e, muitas vezes, intervenção medicamentosa.

Mais escuta, menos julgamento

O fenômeno dos bebês reborn não é uma excentricidade passageira. Ele escancara feridas emocionais da nossa era: maternidades frustradas, lutos não elaborados, afetos desconectados, desejos silenciosos de cuidar e ser cuidado. Julgar sem compreender é recusar a escuta. Cabe aos profissionais da saúde mental um olhar que seja clínico, mas também empático. O que parece estranho para alguns pode ser, para outros, um fio tênue de sanidade. E, no fim das contas, talvez não estejamos falando apenas de bonecos, mas de amor, ausência e tentativas humanas – ainda que imperfeitas – de cicatrizar o invisível.