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Histórias à prova do tempo

Alguns escrevem livros, outros preferem gravar depoimentos e há quem se aventure a abrir um museu. São muitos os caminhos para manter viva

Histórias à prova do tempo – LiliGraphie/ Shutterstock
Por uma, duas, no máximo três gerações, as histórias das famílias se mantêm frescas na memória. Afinal, o avô conta para o filho, que conta para o neto. Depois disso, os fatos começam a se embaralhar, os personagens perdem características e já não se tem certeza de que tudo aconteceu de fato ou se a narrativa foi sendo floreada pelos narradores. Para garantir que o tempo não apague o passado, cada vez mais gente tem se dedicado à registrar seus caminhos pela vida.
“Todos nós temos uma demanda para preservar nossa alma e ao contar nossa trajetória traçamos o retrato que fazemos de nós mesmos. Isso é socialmente importante, pois os valores da sociedade se alicerçam, em grande parte, nos valores pessoais, responsáveis pela ideologia vigente em cada época”, raciocina a historiadora Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa, em São Paulo. Inaugurado em 1991, esse museu tem como objetivo registrar, preservar e transformar em informação, histórias de vida de toda e qualquer pessoa. Funciona assim, todo mundo pode chegar lá e gravar em vídeo um depoimento, relatando experiências pessoais ou de sua família. “Temos historiadores e jornalistas que orientam os depoentes. Seguindo um roteiro de perguntas eles garantem narrativas coesas”, explica a coordenadora e co-fundadora Rosana Miziara.
Entre os mais de 16 mil relatos do acervo, disponíveis ao público no site e nas salas da entidade, está o do músico Pedro de Oliveira Freire. Filho de Roberto Freire, conhecido psicoterapeuta e escritor perseguido, preso e torturado pela repressão, Pedro tinha mesmo muito a contar. “Sou de falar pouco, mas participar da gravação do Museu da Pessoa foi uma experiência prazerosa. Todas as minhas lembranças estavam vívidas, porém me vi contando coisas que jamais teria revelado à alguém”, diz ele. Em seu depoimento, o músico aborda, entre outros fatos, o drama que viveu quando, na década de 1960, viu seu pai ser preso por lutar por igualdade, enquanto na escola ele brincava com crianças das mais diversas classes sociais. “Na época, eu não entendia porque eu podia ser livre e meu pai, não. Trazer à tona esse sentimento foi, sem dúvida, uma superação”, constata Pedro. Rosana ressalta que ao relatar sua biografia, o narrador vivencia um rico processo de identidade. “Além de eternizar e compartilhar seu relato, há um resgate da autoestima”.
 
Presente de avó
Para Maria Auxiliadora Sales Barreto, o registro da vida do fi lho Marcelo foi muito mais do que apenas perpetuar sua história. Prestes a ser pai, Marcelo sofreu um acidente fatal num voo de trike, aeronave motorizada, similar a asa delta. “A dor da perda era enorme, mas o que mais me afligia era saber que minha neta jamais conheceria o pai”, conta ela, que contratou a editora Biomemories, especializada em biografias de não famosos, para escrever um livro sobre o fi lho. “Foi um processo bastante intenso. Recontar é reviver, é rememorar fatos que nunca mais voltarão”. Apoiada pela terapeuta, Maria Auxiliadora acredita que a confecção da obra a ajudou a enfrentar com mais serenidade o luto. Faz sentido. “Quando se perde uma pessoa amada, parte da energia psíquica que estava atrelada a ela fica solta e causa sofrimento. É como se todo o amor que sentíamos por esse ente querido fosse desperdiçado, por não termos mais aonde depositá-lo. Vincular essa energia psíquica a um projeto de vida pode ser muito produtivo ”, argumenta Maria Julia Kovács, coordenadora do laboratório de estudos sobre a morte do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Mas a psicóloga alerta: “Só escrever não é terapia. Nas terapias do luto, há um profissional que ampara a pessoa na sua elaboração da perda e auxilia nos processos que a levarão a seguir em frente. No entanto, em conjunto, essas duas ações podem ser complementares, com ótimos resultados”.
Outro aspecto experimentado por Maria Auxiliadora é que ao coletar os depoimentos para compor a memória do filho, até ela descobriu aspectos da vida dele que desconhecia. “Fiquei sabendo como ele era com os amigos, no ambiente de trabalho e passagens que acabávamos não contando um para o outro por pura falta de tempo. Foi surpresa saber que ele conversava muito com os amigos a respeito de ser pai. Um deles, o Barbosa, me confidenciou que o Marcelo gostaria de ter uma menininha. E ele teve”, diz ela. “O livro, que a princípio tinha como finalidade apresentar meu fi lho à minha neta, acabou por se transformar num aprendizado também para mim.” Intitulada De Marcelo, para Helena, a obra está concluída e guardada, à espera de que a pequena Helena, hoje com dois anos, cresça e possa conhecer e amar o pai por meio da leitura de suas páginas.
Um memorial para os amados
Não é somente com palavras faladas ou escritas que se pode valorizar e registrar as lembranças do passado familiar. Os fi lhos e netos dos escritores Jorge Amado e Zélia Gattai resolveram proteger e preservar o imóvel em que o famoso casal de escritores morou. “Minha mãe dizia que não queria morrer antes de ver sua casa se tornar um museu. Infelizmente ela se foi antes disso, mas hoje eu estou muito emocionada de realizar o sonho dela”, conta a filha Paloma Amado.
Aberto em novembro de 2014, o memorial A Casa do Rio Vermelho, em Salvador (BA), começou a ser alinhavado por Zélia assim que Jorge faleceu, em 2001. Disposta a devolver ao povo baiano todo amor oferecido ao marido, ela começou, junto com os filhos Paloma e João Jorge, a restaurar o imóvel e tudo o que ele abrigava, do mobiliário ao rico acervo de obras de arte. “Meu pai e minha tia também se empenharam por anos na difícil busca de apoiadores e patrocinadores para o projeto. Mas aí, em 2008, vovó morreu e a tristeza fez com que eles desanimassem”, lembra a neta Maria João, que, ao lado do irmão João Jorge Amado Filho, tomou a iniciativa da empreitada. Finalmente, com incentivos da prefeitura de Salvador e de empresas privadas, os restauros puderam co. Quem visita o local se sente íntimo dos antigos moradores. Pode-se circular livremente pelas salas onde os escritores redigiram seus famosos livros, pela cozinha, que ainda guarda os aromas dos pratos típicos que tanto apeteciam Jorge Amado. Além dos quartos do casal, dos fi lhos e dos hóspedes, bem como pelo jardim que, entre outros atrativos, tem a mangueira, sob a qual estão enterradas as cinzas do casal. E o lago dos sapos – uma espécie de ranário, com sapos e rãs –, que sempre fascinou o escritor. “É um museu que emociona, pois expõe o cotidiano de meus avós. Os livros que eles liam, os objetos adquiridos ao longo de suas vidas, os móveis, enfim, está tudo lá, do jeitinho que Jorge e Zélia queriam”, conclui Maria João. Curiosidade: a Casa do Rio Vermelho, de mais de 1000 m2, foi comprada em 1960 com dinheiro da venda dos direitos do livro Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, para a MGM Studios.
Recordar é viver e se conhecer
Porque é importante preservar a memória? À luz da psicologia, o resgate histórico familiar aproxima as pessoas dos laços que as envolvem. “Isso traz uma sensação de conforto e segurança para quem vive em uma sociedade individualista como a nossa”, argumenta o psicólogo paulista Alexandre Nicolau Luccas. Ao que completa sua colega de profissão, Maria Julia Kovács: “Manter a imagem viva, seja por meio de um livro, de uma gravação ou de um memorial, por exemplo, é uma forma ainda de conservar intacta por muitas gerações a lembrança de fatos e de pessoas perdidas”.
Embora a trajetória da família ou a de um ente querido em particular ainda seja o motivo que mais motive as pessoas à perpetuar as memórias, há quem queira fazer o registro de suas próprias vivências. Escrever sobre si mesmo pode fazer bem à saúde e ajudar a lidar com as próprias emoções. Um estudo feito pela Universidade de Kansas, nos Estados Unidos, acompanhou, durante três meses, 180 mulheres que estavam em estágio inicial do câncer de mama. O resultado surpreendeu: quem transmitiu seus sentimentos para o papel teve metade dos problemas físicos relacionados ao tratamento da doença.
“Ao colocar as emoções no papel podemos observar e reconhecer as projeções do nosso eu, ampliando o aprendizado sobre nós mesmos”, avalia o doutor em Neurociências e Comportamento, de São Paulo,  Júlio Peres. Na Antroposofia, filosofia de vida criada no início do século 20 pelo pensador austríaco Rudolf Steiner e que reúne os pensamentos científico, artístico e espiritual, há uma ferramenta terapêutica que ajuda os pacientes a desbloquearem suas memórias. Conhecida como biográfico, a técnica inclui atividades artísticas, meditação e trabalhos corporais. “Trata-se de uma complementação do tratamento físico, cujo objetivo é fazer com que o indivíduo recapitule a sua existência pelos seus setênios, ciclos de vida divididos de 7 em 7 anos”, explica o neurocirurgião antroposófico Maurício Baldissin, da Clínica de Neurodiagnose & Neuroterapêutica em Jundiaí (SP). E ele continua: “A trama de nossas vivências é o que nos ampara no agora. Vivificá-las pelo esforço voluntário torna mais nítidas as rotas percorridas, mais definidas as linhas da nossa vontade. Isto é autoconhecimento, matéria viva em contínua transformação, que nos fortalece e ajuda nas escolhas cada vez mais sábias e livres em nossas vidas”.

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