Publicidade

Abençoada e simples

As comemorações de fim de ano podem encantar pela singeleza. Com despojamento e muito capricho, a casa abraça um, dois, três ou quantos mais chegarem para se renovar junto dos amores indispensáveis. Sabendo que o mais importante é partilhar e agradecer por tudo o que recebemos

Abençoada e simples – Cultura RM – Brett Stevens / Getty Images
“O Natal é a zona do ano em que, parece, as grandes chuvas penetram e amolecem o coração do homem.” Desdobramento inevitável, “a bondade está presente em toda parte, e sua irmã, a humildade, também”. Como observou o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade na crônica Canto de Natal no Bonde, festejamos o nascimento de Cristo e, logo adiante, nos despedimos do ano consumado com a sensação de que sobre nós paira um manto invisível de ternura e boa-fé. Revigora-se a vontade de sermos melhores para aqueles que nos cercam. Impulso de chegar mais perto e compartilhar afeto. É hora de festejar a possibilidade sempre palpável de renascer. Ao redor da mesa enfeitada com capricho – um dentre tantos jeitos de expressar o amor que nos mantêm enlaçados–nos refazemos das quedas, celebramos os saltos, renovamos pactos com nós mesmos e com o mundo, projetamos sonhos. E torcemos, somando intenções, para que a colheita seja farta e os anos à frente, gentis.
A exemplo do menino Jesus, aninhado na simplicidade da manjedoura, essa reunião dispensa exageros. Podemos aproveitar a ocasião para dar o devido crédito às coisas
delicadas. E, por que não, imperfeitas. Que o prazer do encontro consiga amordaçar aquela vozinha intransigente que não dá sossego enquanto cada miúdo detalhe não
estiver impecável. Firmes nesse propósito, reabilitemos o que há de bom à mão. Que tal colocar louças de origens diferentes para “conversar” entre si em vez de ficar preocupada porque o jogo de xícaras não tem quantidade suficiente para todos? Vale trazer para a festa até algumas um tanto desbotadas, marcadas pelo uso. Todas, à sua maneira, têm sua beleza. Merecem trocar a claustrofobia dos armários pelo frescor da partilha. Ainda mais quando acompanham a família por gerações. Aí, então, viram uma homenagem aos que partiram. Sem, contudo, se ausentar dos nossos corações.
Acredite, misturadas com carinho e algum charme, essas peças são garantia de magia. E de presteza. Afinal, a casa tem de estar preparada para acomodar boa
quantia de vozes e risos. Ninguém pode ficar de fora da roda. E é um prazer incluir um prato na última hora. Visita surpresa. Quanta alegria! Espremendo um pouco
cabe todo mundo. Mais calor. Puro despojamento. Nada contra toalhas de linho, cristais e pratarias. O belo é sempre bem-vindo. Desde que não ofusque a mensagem primordial: importante é estar na vida por inteiro, com liberdade para tentar de novo. E expressar o amor que sentimos, seja através das flores escolhidas a dedo, de doces palavras eternizadas num cartão ou do quitute preparado ao gosto daquele ente querido. Como bem resumiu a poeta goiana Cora Coralina, “nada do que vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas”.
Na família da consultora de feng shui Silvana Occhialini, de São Paulo, o Natal é o momento de reverenciar e agradecer. Segundo ela, a possibilidade de amar e de ser feliz, sem jamais esquecer dos que precisam de ajuda. “Como não estamos sempre juntos, essa data tem de ser preciosa. Com presença, amorosidade e prazer. Portanto, nada de celular e internet”, ela conta. Todos os anos o clã se reúne de maneira descomplicada, dispensando correrias ou quaisquer eventuais tensões relacionadas aos grandes preparativos. O plano é simplesmente ofertar o que cada um tem de melhor. Quem sabe cozinhar prepara algo saboroso; quem leva jeito com as flores cuida dos arranjos; quem é bom com as palavras lidera o brinde, e assim por diante. Vale tudo, incentiva a especialista, desde que a manifestação seja espontânea e alegre quem está se doando. “Entregar nossos dons ao mundo é uma maneira de expandir o amor, de tocar o outro de alguma forma, o que, aliás, deve ser nossa orientação espiritual diária, e não somente um gesto restrito às festas de fim de ano”, ressalta Silvana.
Símbolo ancestral
A psicoterapeuta junguiana Elisabete Lepera, professora da Associação Palas Athena e do Instituto Sedes Sapientiae, ambos em São Paulo, lembra que o Natal é um símbolo arquetípico, ou seja, pertence ao imaginário da humanidade, e não só a uma religião ou povo. “O arquétipo da criança divina aparece em diferentes culturas e
mitologias. Ele representa na psique humana a criança sagrada, pois através dela olhamos as coisas com olhos abençoados, repletos de luz e esperança”, ela ensina.
“Por isso, a árvore de Natal ganha cordões iluminados; a estrela-guia desponta no céu. O brilho retorna ao olhar e, assim, podemos transcender nossas limitações, dando um salto de consciência”, acrescenta. De preferência, brindando em uníssono, entre velas, mimos e gostosuras, ao amor maior que nos mantém pulsando.
No Hemisfério Norte, a celebração acontece no período do solstício de inverno – data que inaugura a estação mais fria do ano, cultuada pelos povos pagãos por milênios. Justo quando as noites são mais escuras e longas aparece a criança divina, que desce à Terra para iluminar nossas passadas. “Esse mito reafirma que no momento mais difícil surge a luz, que a psique sempre pode acordar em outro nível, porque não vê a dicotomia vida e morte, e sim o renascimento a cada ciclo. Na prática, a consciência que sofreu regressa reacendendo a esperança e o amor. Começando tudo outra vez, mas com novo entendimento”, resume Elisabete
Os povos antigos tinham o costume de escolher um pinheiro na floresta e depois iluminá-lo, numa referência ao Sol, astro que traz alento e a certeza de que a vida se
perpetuará enquanto dispusermos de seu calor. Se não der para providenciar um exemplar corpulento, problema algum. Um punhado de ramos bem ajeitados numa jarra ou bule gracioso se encarrega de representar esse símbolo. “O costume vem da árvore da vida da cabala, em que cada ramo sugere um nível de consciência. Além disso, o pinheiro, sempre verde, mesmo em face do clima mais gélido, simboliza a esperança.”
Se os que vieram antes de nós sedimentaram a intimidade com o universo simbólico, não surpreende que o fim do ano nos lance em direção aos rituais. Algo em
nós sabe que nesse momento precisamos trocar de pele. Revisar valores e condutas, manter compromissos, abrir espaço para aceitar uma outra opinião. Perdoar e ser
perdoado. Uma vez mais temos a chance de remoçar o espírito.
Juntos, dividindo o alimento e o que mais vier à baila, temos a possibilidade de nos reconhecer uns nos outros. De fazer valer nossa humanidade e extrair o sumo
dessa festividade. Com olhos curiosos e receptivos, atributo da infância, nos deixamos contagiar pelo desejo de recomeço. “Como posso olhar pela perspectiva do
outro? Observando as coisas de um prisma diferente, transformamos chumbo em ouro. Isso é alquimia da alma. Transcendência”, define a psicoterapeuta.
O calendário rodou e cá estamos. As ruas estão embrulhadas em laços e piscas-piscas; as pessoas, enternecidas. De longe dá para sentir o aroma do assado misturado ao
perfume das frutas cuidadosamente acomodadas na cesta. As crianças correm, mais elétricas do que de costume. As taças reluzem no buffet. Em casas risonhas ou na sala humildemente aprumada para um só, aportamos, de novo, sabendo que o maior presente dessa vida é ter onde se aconchegar. E se reinventar.

Publicidade