Publicidade

Aula de poesia

Só encontra sentido para a vida quem sabe inventar um, pois sentido mesmo não há, diz o poeta maranhense Ferreira Gullar. E, quando o incompreensível se revela no cotidiano, o poema nasce. Sempre como surpresa, descoberta ou, como ele prefere, “espanto”

Ferreira Gullar – Greg Salibian / Fronteiras do Pensamento
Somos seres dotados de uma consciência que nos cobra explicações para os mistérios da vida. Porém, nenhuma delas dá conta da realidade, esse emaranhado de experiências e sentimentos que desa a nossa compreensão. Só nos resta inventar algum sentido para o viver. Defensor dessa tese, o poeta Ferreira Gullar recorre às palavras
para recriar o real. E, de verso em verso, vai semeando delicadezas. “A poesia é, na verdade, um modo especial de relacionar-se com a realidade, de inventá-la”, acredita.
Nos últimos cinco anos, o mestre não escreveu um poema sequer. Estancou, admite sem pudor algum. Com a mesma espontaneidade, sua marca registrada, confessa que
deseja voltar à ativa. Porém, sabe que essa não é uma decisão racional. Para Gullar o poema surge de descobertas inesperadas. De miudezas do cotidiano que se revelam
grandiosas perante seus olhos. “Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia. Só aquilo que não se sabe
pode ser poesia”, atesta.
Ao revelar o pano de fundo de suas criações, Gullar nos apazigua com o imprevisto, com o que foge ao controle e, por isso mesmo, mobiliza nosso íntimo, trazendo à tona sentimentos e sensações – combustíveis da existência. Podemos não ser poetas como ele, mas isso não nos impede de adotar sua maneira de passear pela vida. Receptivos
ao menor sinal de “espanto”, como ele diz. Cientes de que a poesia pode brotar a qualquer instante. Para encantar nossos dias com o frescor das coisas inesperadas.
Da memória afetiva vem a cena que exemplifica seu mecanismo criativo. “Estou na praia, lembro do meu lho que morreu. Ele via aquele mar, aquela paisagem. Hoje
estou vendo por ele. Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos. Aí começo um poema.” Em outro momento, sentado no sofá, é o corpo que “fisga” a sensibilidade
do artista. “Um dia, estava vendo televisão e o telefone tocou. Mal me ergui para atendê-lo, o fêmur de uma das minhas pernas bateu no osso da bacia. Algo do tipo já
acontecera antes? Com certeza. Entretanto, naquela ocasião, o atrito dos ossos me espantou. Uma ocorrência explicável de súbito ganhou contornos inexplicáveis. Quer dizer que sou osso?, refleti, surpreso. Eu sou osso? Osso pensa? A parte que em mim pergunta é igualmente osso? Desse espanto eclodiu Acidente na Sala, relembra durante sua palestra, em setembro, no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, em São Paulo.
Certa vez, ele caminhava pelas ruas do Rio de Janeiro, assoberbado por problemas familiares, quando foi interpelado por um casal. “O senhor é o poeta Ferreira Gullar?
Puxa, nós estávamos agora mesmo falando da sua poesia.” “Aquela conversa súbita me espantou. Naquele momento atribulado eu não estava sendo exatamente o poeta ao qual eles se referiam. Os dois se despediram e eu me questionei: Quem sou eu? Sou o poeta ou sou essa pessoa atormentada por problemas?.” Do confronto consigo mesmo, motivado por um encontro casual, brotou o poema Traduzir-se, que começa assim: “Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém; fundo sem fundo”.
Poeta, crítico de arte, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Ferreira Gullar nasceu em 1930, em São Luís, MA. Radicado no Rio de Janeiro, participou dos principais movimentos da poesia moderna nacional, envolveu-se com a arte política e engajada e viveu no exílio de 1970 a 1977. Em 2002, foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura e, em 2010, recebeu o Prêmio Luis de Camões, a mais importante honraria destinada a escritores de língua portuguesa. É autor de Poema Sujo e Em Alguma Parte Alguma, ambos pela ed. José Olympio, entre outros títulos. Recentemente publicou Autobiografia Poética e Outros Textos (ed. Autêntica), em que re ete sobre a própria poesia.

Publicidade