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Alento de benzedeira

Um pedido cheio de fé dela é capaz de dissipar todo o mal. Como se os santos se despissem dos seus mistérios e nos dessem as mãos sempre que precisamos de proteção e cura

Hambúrguer vegano à base de pinhão – Divulgação
Tudo começou há 34 anos, quando a lha de Sônia Regina Romano Martins nasceu. Ela chorava muito e Sônia não sabia o que fazer para acalmá-la. Procurou uma benzedeira. E a partir daí começou a peregrinar por várias outras. Visitava uma diferente por semana porque elas benziam apenas três dias seguidos. Até que chegou a Tia Domingas, que, com pena da mãe, ensinou-lhe o ritual.
Tia Domingas ensinou algumas rezas e em especial a oração do coração, que funcionou perfeitamente bem para o caso. Nessa reza, o benzedor pede ajuda ao seu santo protetor para que ele interceda pelo benzido. Sônia começou assim, e, quando se deu conta, já estava fazendo benzeduras nas crianças, nos idosos da família e nos seus bichos de estimação.
Em tempos de tecnologia, Sônia abençoa também a distância. Muitas vezes apenas com o auxílio de uma fotogra a, um papel com o nome da pessoa ou mesmo por telefone. Diferente de antigamente, quando só se passava o conhecimento para os parentes, ela ensina seu saber para quem desejar e pedir. “Benzer é uma atividade muito antiga, e todos nós nascemos com esse dom, no entanto ele só dá frutos se tivermos fé”, conta a hoje benzedeira de 59 anos.
Conhecimento dos mais ancentrais do mundo, a atividade aparece com características próprias nas diversas culturas e religiões. A palavra “benzer” vem do latim benedicere e, no dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, significa fazer o sinal da cruz sobre uma pessoa ou coisa, recitando certas fórmulas litúrgicas, para consagrá-la ao culto divino ou chamar sobre ela algum favor do céu.
Segundo Elda Rizzo de Oliveira, antropóloga e autora do livro O Que É Benzeção (ed. Brasiliense), trata-se de um ato de súplica, imploração, de pedido insistente aos deuses para que eles se dispam dos seus mistérios e se tornem mais presentes, concretos, trazendo boas-novas e produzindo benefícios aos mortais. Desse modo, Elda explica que a bênção é um veículo que possibilita a seu executor estabelecer relações de solidariedade e de aliança com os santos, de um lado, com os homens, de outro, e entre ambos simultaneamente.
Na maioria das vezes, os benzimentos estão associados à religião do homem ou mulher de devoção e preceito. E abarcam desde pessoas com relação de parentesco, de amizade, de compadrio, de clientela, até de paroquianismo. Estas últimas executam a bênção, geralmente através de alguma igreja, com o seu estímulo, em nome
dela, que as controla e legitima. Mas também existem os profissionais autônomos que benzem em suas próprias casas.
Elda Rizzo explica que o modo como cada profissional encaminha sua rezação revela a sua formação religiosa e a sua visão de mundo. Um exemplo são as preces católicas usadas por Sônia, que sempre pede o auxílio dos santos católicos. Se ela fosse de outra religião, pediria em seus benzimentos por outras divindades ou até orixás, como acontece quando o benzedor é da umbanda. No ato da graça, podem-se revitalizar determinados signos sagrados, como o das cruzes, símbolo de
redenção para os cristãos. Por isso alguns benzedores seguram o instrumento de suplício e o passam pelo corpo do benzido.
Quase sempre, as bênçãos são praticadas com o objetivo de pedir proteção e boas energias. Entre os judeus, por exemplo, é comum os pais abençoarem seus lhos pedindo a Deus que os guarde. Em geral, o ritual acontece antes das refeições, às sextas-feiras e nas noites de festas. Os hindus estão habituados a ver o sadhu ou homem santo. Ele caminha pela cidade recebendo oferendas de alimentos e dinheiro das pessoas e, em troca, agradece com a dádiva.
As origens
Desde a Antiguidade o ser humano acredita que as rezas e benzimentos têm o poder da cura. Essa crença tem um sentido e encontra respaldo na ideia que nossos ancestrais tinham das doenças. Eles as viam como maldições dos deuses. Fora isso, as mulheres enfrentavam os problemas de saúde administrando chás com ervas acompanhados de muitas orações. Foi provavelmente desses usos que surgiram os tratamentos com ervas medicinais.
Para se ter uma ideia da origem desse saber, é necessário voltar no tempo. Os registros folclóricos revelam traços curiosos nesse tipo de medicina, chamada de mágica e usada desde a época bíblica até a Idade Média. O célebre Papiro Ebers ressalta os poderes de receitas que incluem ervas acompanhadas de rezas.
Se antes tais curandeiros eram respeitados e admirados, da Idade Média para a moderna isso cai por terra. Durante os séculos XVI a XVIII, a Igreja entrava no campo da saúde curando pessoas, e assim passou a concorrer com os benzedores. Desamparados, sofrendo as pressões sociais, eles passaram a ser torturados, punidos e lançados
vivos em fogueiras até a morte.
Brasil
Por aqui, a tradição dos benzimentos chegou pelas mãos dos portugueses e se misturou rapidamente às culturas africanas e indígenas. Para os estudiosos, essas práticas são pertencentes ao catolicismo popular oriundo do meio rural. À medida que os moradores do interior do país se mudam para as grandes cidades, levam em sua
bagagem essa tradição.
O benzedor Javert Fernandes Menezes, 60 anos, recebeu esse legado aos 14 anos por meio de seus familiares maternos que tinham descendência europeia. De uma geração a outra, as rezas foram passadas e chegaram até ele, que se orgulha de sua prática. “Sinto uma gratidão imensa para com nossos semelhantes”, conta ele,
que trabalha com vários tipos de auxílio porque, segundo explica, cada doença exige técnicas e orações específicas.
Do interior de Minas Gerais, Odair Martins Lemes, 40 anos, 24 anos de rezação – que aprendeu com o tio – benze quebranto, sapinho, vento virado, mau-olhado, nervo torcido, bicheira e cobreiro. “Eu rezo e passo receitas de remédios de raízes para as feridas e dores”, afirma.
Ambos, tanto Javert quanto Odair, lamentam que sua profissão de fé esteja encontrando preconceito e que sejam poucos os que ainda querem benzer. Mas o fato é que os benzimentos resistem por alguma misteriosa vantagem.
Eficácia simbólica
Do ponto de vista antropológico, o que explica essa continuidade é o fato de que, diante da aflição, da dor, o ser humano se liberte de alguns preconceitos e se abra para todo tipo de ajuda. Em nosso inconsciente está ncada a informação de que encontraremos as receitas do bem viver com quem tem o dom de conhecer os segredos
da natureza e devoção suficiente para clamar aos deuses e santos.
A eficácia de qualquer processo terapêutico, inclusive a dos benzimentos, é elucidada pelo antropólogo Claude Levi Strauss (1908-2009) como dependente de três condições indispensáveis: “Existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura no poder do próprio
feiticeiro; nalmente, a con ança e as exigências da opinião coletiva, que, juntas, formam uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se de nem e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça”.
A antropóloga Maria Helena Villas Boas explica que os benzedores são importantes porque eles nos ajudam a nos organizar psicologicamente, nos fazendo compreender o nosso caos interno, sutileza que o médico não tem mais tempo de cuidar, já que temos um atendimento cada vez mais caro e rápido. O benzedor acaba fazendo o papel de um terapeuta, que ouve, com carinho e atenção, o benzido. Para outra antropóloga, Sônia Weidner Maluf, da Universidade Federal de Santa Catarina e autora
do livro Encontros Noturnos: Bruxas e Bruxarias na Lagoa da Conceição (ed. Rosa dos Tempos), as benzedeiras ocupam uma posição especial e estabelecem relações de reciprocidade pelos seus saberes e poderes. Seu papel continua vivo e é fundamental na sociedade porque cria um vínculo com a natureza e proporciona alento aos males mais diversos. “A curandeira tem a função de reconstruir um sentido para a doença e através desse processo dar ao cliente as condições de pensar”, esclarece Alberto M. Quintana professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Maria do Rio Grande do Sul e autor de A Ciência da Benzedura, Edusc.
Nessa medicina chamada mágica, os benzimentos pretendem curar o que de estranho foi colocado pelo sobrenatural no corpo ou espírito do doente e extirpar o mal que o faz sofrer. Em algumas regiões, existem diferenças entre os promotores desse benefício: o curandeiro é uma espécie de oficial sagrado habilitado a penetrar no mundo do sobrenatural. Também benze, porque antes de se tornar um curandeiro foi benzedor. Já o benzedor tem o papel mais restrito a rezar sobre o paciente, não receita remédios. Os gestos que pratica são todos idênticos aos da religião dominante.
Dependendo do conhecimento do benzedor, ele poderá tratar os males de causas sobrenaturais como “mau-olhado”, “quebranto”, “calundu”, “encosto”. Ou apenas as doenças revestidas de aspectos naturais, como erisipela, isipra, antraz, arca-caída, cobreiro, fogo-selvagem, ventre- virado, carne-aberta e sol na cabeça.
Há ainda um grupo de questões que são tratadas pela fitoterapia popular, como as garrafadas. Chás, xaropes, banhos, compressas, fricções, pomadas e até pílulas de bênçãos também podem fazer parte do ritual desses senhores das almas. Mas a verdadeira benesse de seus serviços está em sua linguagem mágico-simbólica, muitas vezes só compreendida por quem está aberto.

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