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Bálsamo celestial

Quando a atmosfera ao nosso redor se enche de pressa e angústia e a compreensão das coisas terrenas parece impossível, alguns gestos ajudam a lembrar que estar vivo é participar de um dinâmico jogo do Universo. Olhar para o céu e apreciar as estrelas, de onde viemos, restabelece essa conexão e devolve uma forte sensação de pertencimento

Bálsamo celestial – Shutterstock
No dia 10 de janeiro, o cantor e compositor britânico David Bowie deixou de ser uma estrela na Terra para se unir aos infinitos pontos luminosos do céu – após uma batalha de 18 meses contra um câncer. Pouco antes de partir, o artista brilhou, como sempre. Deixou aos fãs seu derradeiro disco, Blackstar, que sintetiza sua visão sobre a mortalidade. Assim, convidou milhares de pessoas ao redor do mundo a olhar para o alto e se conectar com esse vasto e misterioso “teto” que nos protege noite após noite.
A temática do espaço sideral tanto fascinou Bowie – ele usou essa referência em diversas composições ao longo da carreira que lhe rendeu uma homenagem. Em janeiro, o Observatório Público Mira, na Bélgica, registrou uma constelação com o nome do músico. Visto da Terra, o grupo de sete estrelas parece próximo
a Marte, o planeta vermelho (citado na canção Life on Mars?, de 1971), e forma o famoso raio na capa do álbum Aladdin Sane, de 1973. Bowie, agora, é oficialmente uma fração do cosmo.
Tal deslumbramento com a beleza da abóbada noturna sempre atraiu irresistivelmente o homem. “Os povos antigos enxergavam o céu de um modo metafórico. Para eles, o firmamento era o palco onde se movimentavam os deuses, as grandes forças incompreensíveis e incontroláveis com as quais continuamos precisando dialogar criativamente”, a rma Eliana Atihe, educadora e pesquisadora de mitologia, além de coordenadora de grupos de leitura no Ateliê Ocuili, em São Paulo.
Para os índios americanos, por exemplo, a Via Láctea (um conjunto que hoje sabemos ter de 200 bilhões a 400 bilhões de estrelas) indicava o caminho para a terra dos mortos; ao passo que os incas a tomavam por um rio celeste.
Essas “leituras” faziam parte de uma época em que a vida seguia seu curso ao largo de explicações lógicas, manuais e receitas. Na ânsia por algum entendimento, ainda que intuitivo, o homem contemplava a escuridão salpicada de luz em busca de orientação para o cotidiano, seja por parte das divindades que, segundo a crença pagã, ali habitavam, seja pela dança dos astros. Queriam saber qual era a melhor hora para plantar e colher, parir, singrar os mares, traçar o rumo – basta lembrarmos que os três reis magos, Belchior, Gaspar e Baltazar, leram no céu uma dada conjunção que apontou para o grande evento sediado em Belém: o nascimento do menino Jesus. Essas pistas eram produto da fé e, posteriormente, de cálculos. A astronomia e a astrologia nasceram dessa relação arcaica, em que as pessoas se valiam do simbolismo cósmico para explicar por que planetas transitavam pelo céu e as estrelas formavam desenhos.
Adubo incessante para a imaginação, o panorama celeste levou os antigos astrônomos a identificar animais e personagens míticos entre as constelações. Daí algumas
delas se tornarem os 12 signos zodiacais. “A mitologia providenciava as narrativas para a misteriosa movimentação que os observadores enxergavam no céu noturno. Ou as estrelas forneciam material para os poetas e contadores de histórias. Uma bebe na fonte da outra e é difícil determinar qual das duas vem primeiro”, pondera Eliana.
Na mitologia grega, ela lembra: “As constelações geralmente estão relacionadas a homenagens feitas pelos deuses a guras extraordinárias, tanto humanas quanto animais ou divinas, mortais ou imortais, e que mereceram ser eternizadas no céu a fim de que seus feitos ou suas qualidades pudessem ser eternamente lembrados pelos seres humanos”. A constelação dos Gêmeos, por exemplo, representa os irmãos míticos Castor e Polideuces ou Pólux, um mortal e outro imortal. Eles eram tão ligados um ao outro, tão amigos que, quando Castor morre, Pólux pede aos deuses que o deixem morrer também. Compadecidos, os senhores da vida e da morte resolvem o problema transformando os dois num grupo de estrelas.

Uma fé, uma igreja
Felizmente, esse jeito de se relacionar com o universo persiste. Até hoje muita gente confia no que o firmamento diz por meio de seus múltiplos arranjos ou mapas. “Criada na Babilônia por volta de 1000 a.C., a astrologia identifica a posição dos planetas em relação às constelações do zodíaco e faz uma correlação com a trajetória individual e com as tendências humanas. De acordo com esse saber, as posições das estrelas no céu influenciam as pessoas em seu temperamento, personalidade e ‘destino’”, explica a astróloga e escritora Jacqueline Cordeiro, de São Paulo, sobre essa intensa conexão entre nós e o Cosmos. “Conforme os astros se movimentam, ativam forças e despertam em cada um determinadas situações, sentimentos e inclinações”, acrescenta ela.
A simples pausa para admirar a noite já é, por si só, um bálsamo para o espírito. A capacidade que o Universo celestial tem de nos tocar a alma, despressurizar a mente e
alargar os limites do sentir é imensa.
Se nas grandes cidades, onde atualmente vive mais da metade da população mundial, é difícil enxergar todas as estrelas do céu ocultadas pela poluição do ar e pelo excesso de luminosidade, é mágico o que podemos ver se nos afastarmos 50 km dos centros urbanos. “Mais ideal ainda é observar o céu de um lugar alto, ao menos 2 mil metros acima do nível do mar, em dia seco, ou seja, livre de neblina e nuvens, escuro e sem muito vento”, detalha Kizzy Alves Resende, professora da Escola Municipal de Astrofísica Professor Aristóteles Orsini (EMA), ligada à Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, em São Paulo. Segundo ela, nessas condições é possível apreciar astros localizados além dos limites que costumamos ver. O que faz do Nordeste um dos melhores pontos no Brasil para a observação desses faróis cintilantes.
Quer tenhamos imensas telas polvilhadas de luz sobre nossa cabeça ou uma mera fatia de céu vista da janela do apartamento, não podemos esquecer que somos feitos da
mesma matéria das estrelas: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio principalmente.
O corpo humano conserva os elementos que chegaram à Terra vindos do Big Bang, a explosão que deu origem a tudo. Quer elo mais visceral? À medida que estamos tão profundamente ligados à tecnologia e cada vez mais distantes da natureza, espichar os olhos para essa realidade é ainda mais necessário para nos fazer sentir humanos. “Tanto quanto os antigos, precisamos desse sábio reconhecimento de que somos parte ín ma de um Cosmos de cujo delicado equilíbrio participamos ativamente”, propõe Eliana. Pertencemos a um todo inacabado, que já existia antes e continuará depois que nos despedirmos.
Contatos: Eliana Atihe – elianaatihe.wordpress.com; Escola Municipal de Astrofísica Professor Aristóteles – tel. (11) 5575-5425

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