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Fé no plural

A coexistência de crenças distintas dentro de um mesmo coração prova que os caminhos da espiritualidade desconhecem fronteiras. E, por isso mesmo, fertilizam as sementes de um mundo mais inclusivo

Fé no plural – Shutterstock

Está cravado na Constituição brasileira: todo cidadão tem o direito de seguir o caminho espiritual que bem entender, desde que este não fira a lei. É uma linha justa, possível. Mas, às vezes, percorrida com dor, pois ainda vemos episódios de intolerância explícita em que pessoas são agredidas por causa de suas crenças. Especialmente no que se refere às escolhas de matriz africana. De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, as tradições mais perseguidas são o candomblé, o culto de ifá, o tambor de mina, o batuque e a umbanda, expressão afro-brasileira. “Preconceito diretamente ligado ao racismo em nossa sociedade”, diz a advogada Juliana Ogawa, da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) e do Fórum Inter-religioso da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.

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Esses órgãos buscam abrandar a intransigência religiosa atuando entre os grupos da sociedade civil e nas instituições. Evitando, segundo Juliana, atos condenáveis como o do fiscal da prefeitura que visita determinado templo e faz de tudo para fechá-lo, simplesmente porque o local pertence a um segmento não dominante.
Paralelamente, há movimentos que focam no esclarecimento intensivo por meio de palestras, debates e campanhas. E, do reforço na autoconfiança de quem segue vertentes minoritárias de credos. “O movimento ‘Quem é de axé diz que é’, por exemplo, encoraja praticantes de religiões de matriz africana a assumir suas crenças na pesquisa do Censo. Só assim conseguiremos que políticas públicas direcionadas a essa parcela da população sejam implementadas”, sublinha Juliana, que convida as pessoas a registrarem denúncias na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, na capital paulista, ou em entidades públicas ligadas ao tema.
Diferentes, mas semelhantes
Outra bela contribuição em prol da convivência respeitosa entre seguidores de distintas denominações parte da Rede Ecumênica da Juventude (Reju). Inaugurada em 2007, a entidade aglutina 300 jovens de 15 a 29 anos. “Além de adeptos das mais diferentes linhas espirituais, contamos com a participação de ateus e agnósticos e ainda transpomos a reflexão sobre a tolerância para a esfera sociopolítica”, explica a gaúcha Edoarda Scherer, facilitadora nacional da rede, que se mantém em constante diálogo com organismos eclesiais, governamentais e institucionais, entre eles o Conselho Nacional de Juventude e o Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR), ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e, localmente, paróquias e centros comunitários.
Para ela, toda e qualquer luta pela garantia dos direitos civis vale ser abraçada. “Acima de tudo, é preciso que os espaços se mantenham abertos à diversidade; que o outro, o diferente de você, deixe de ser visto como uma ameaça”, defende. E acrescenta: “A Reju mostra que pessoas heterogêneas são capazes de falar a mesma linguagem de respeito ao sagrado, ao ser humano e à coletividade”. Experiência que concretiza as palavras do mineiro Frei Betto, frade dominicano e escritor: “Na espiritualidade predominam a disposição de serviço, a tolerância para com a crença (ou a descrença) alheia, a sabedoria de não transformar o diferente em divergente”. Assim, muitos seguem cultivando uma fé permeável, que agrega ao invés de apartar, reverencia em vez de julgar e condenar outros meios de se conectar ao divino. Nas próximas páginas, quatro personagens de espiritualidade “mista” contam como esse modo de se relacionar com o sagrado enriquece suas vidas amplificando e arejando suas percepções de mundo.
Resgate das origens
Durante muito tempo, o espiritismo kardecista orientou os caminhos do paulista Alexandre Magno da Glória, 23 anos, assistente de designer gráfico. Essa era a inclinação da sua família. Porém, raízes mais antigas ligavam seus avós ao candomblé, antes de migrarem para o evangelismo. Algo misterioso trouxe esse passado à tona. “Cinco anos atrás, estava perdido, com a sensação de que faltava alguma coisa. Fui a um tradicional ilê [terreiro] localizado na zona leste de São Paulo e me maravilhei”, conta. Após a visita, Alexandre compreendeu que a prévia bagagem seria de grande valia na nova jornada da alma. No espiritismo, elo que continua forte, há muito estudo, leituras, cursos. No ilê, se deparou com o respeito aos mais velhos e à natureza, além do apreço pela humildade e pela pluralidade religiosa. “O candomblé é uma religião muito bonita e simbólica, que zela pela liberdade de etnia e de orientação sexual”, observa. Alexandre ficou com os dois ensinamentos. Transmite passe e ministra palestras aos frequentadores do centro espírita ao qual é filiado. Nem todos ali aprovam sua escolha em duplicata, mas, na maior parte do tempo, ele se sente acolhido e respeitado, sobretudo pelos espíritas que reconhecem na prática africana o contato intenso com as forças da natureza e a forma peculiar de se cultuar o sagrado.
“Certa vez, uma amiga me disse que dessa maneira eu compreendo melhor o fenômeno da manifestação espiritual, já que somo o conhecimento didático do espiritismo e a atuação de forma mais direta com o ‘outro lado’ no candomblé.” Caminhos irmãos que desembocam na harmonia, na crença na continuidade da existência após a morte e na reencarnação, bem como no amor, na caridade e no respeito à vida. “Tanto o espiritismo quanto o candomblé defendem que vamos reencarnar sucessivas vezes até não precisarmos mais regressar a esse plano, já que teremos alcançado a evolução máxima do espírito. Porém, no espiritismo esse aspecto da doutrina é bastante debatido; no candomblé, como não há um livro dogmático, esse ensinamento é mais difuso”, explica.
Duplicar para complementar
Aos sábados, a designer de interiores paulistana Marina Morais, 22 anos, procura o terreiro de umbanda e, em alguns domingos, a missa católica. Ela se sente mais protegida assim, pelo Deus cristão e pelas entidades afro-brasileiras. Sem a sombra da rigidez. “Fui criada na Igreja Católica e, recentemente, me encantei pela umbanda, segmento que causava muita curiosidade e uma ponta de receio”, conta. Os ritos, os cantos e a paz que ela encontra nas giras – o cerimonial dessa tradição – demoveram qualquer resistência e hoje fortalecem seu espírito. “Na Igreja, entrego meus problemas a Deus. No terreiro, as dificuldades ficam automaticamente do lado de fora. Sinto um chamado para cuidar do espírito de forma mais ampla, sem focar em dificuldades específicas”, diferencia, identificando também os aspectos comuns a ambas as religiões: o respeito e o amor ao próximo. O dueto de fé lhe trouxe mais serenidade. “Antes tudo virava uma bola de neve. Não sabia como podiam terminar. Agora ganhei clareza e percebi que as coisas podem se descomplicar”, diz. Enquanto Nossa Senhora Aparecida lhe oferece colo incondicional, a mãe de santo representa a voz sábia que conforta o íntimo e presenteia seus fi lhos com conselhos sob medida. “Me sinto confiante, pois vejo fundamento nas conversas com as entidades. Elas recomendam, por exemplo, acender uma vela para iluminar a vida ou tomar banhos de ervas. Cada qual com uma finalidade diferente. Sempre utilizando de elementos da natureza. É um ritual e ao mesmo tempo uma terapia”, compara.
Múltiplas camadas
Há gente que não se cansa de escavar a existência. Fabrício Trindade, administrador, 34 anos, de São Caetano do Sul, no ABC Paulista, pertence a esse grupo. Atualmente, ele segue os preceitos cristãos e budistas, como também o tantra ioga e o sufismo, vertente mística do islã. Para chegar a tal configuração, foi se abrindo e se entregando aos sucessivos chamados espirituais. Aos 27 anos, fez o curso de biopsicologia – metodologia que propõe o autocontrole das emoções negativas e seus reflexos na saúde e na vida –, ministrado pela psicóloga Susan Andrews, criadora do Instituto Visão Futuro, em Porangaba, interior de São Paulo. Foi ali que conheceu a meditação. Nessa época, se aproximou da doutrina budista e nela encontrou grande sentido, especialmente nos conceitos de desapego e de impermanência. “Minhas emoções ficaram mais equilibradas”, diz. O cristianismo veio na esteira do casamento. “Minha ex-esposa tinha uma devoção impressionante. Fui contagiado por esse amor a Deus e cheguei a fazer catecismo e crisma, paralelamente às práticas budistas.” Já o tantra ioga se apresentou em 2013, novamente em Porangaba, mostrando que a devoção a Deus ou consciência infinita, e ao seu guru, o indiano P. R. Sarkar (1921-1990), aliada à meditação, era a própria fusão dos legados de Cristo e Buda. “O convite desses mestres é para que desapeguemos do ego e nos conectemos a algo maior, ao todo, ao supremo”, sintetiza. Mais recentemente, Fabrício encontrou aprendizado semelhante nas práticas sufis, com sua dança marcada por giros que levam à comunhão com o Criador. Segundo ele, o sufismo lhe acrescentou algo que as outras religiões não tinham possibilitado. Somente com o poeta persa Rumi (1207-1273), mentor dessa vertente que cultiva o amor divino como caminho para a verdade, Fabrício aprendeu a ser “amante de Deus”, como o guru denomina a relação entre o Supremo e o humano. “Isso significa sentir em cada ser, em cada encontro, em cada gesto ou ação a presença Dele”, define o jovem, enaltecendo a intensidade dessa conexão, como se um fluxo incandescente irradiasse do coração enquanto dança, diferente da sensação de paz profunda que costuma sentir ao meditar. “Antes conhecia Deus na teoria. Agora posso dizer que o conheço na prática, por meio da bem-aventurança despertada pelo sufismo”, acrescenta.
Fiel ao que se é
“No meu modo de ver, sempre serei judia”, afirma a monja zen-budista Waho, 51 anos, de São Paulo. Criada numa família liberal, Sandra Degenszajn (nome de batismo da monja), se sentiu livre para percorrer caminhos próprios desde cedo. “Nunca frequentamos sinagoga nem fazíamos o Shabat nas sextas-feiras à noite. No entanto, celebramos o Ano-Novo Judaico, o Pessach e o Dia do Perdão. Ou seja, o sentimento judaico sempre nos acompanhou”, revela. O budismo a fisgou na juventude. “Meu primeiro contato com esse universo se deu por intermédio do tai chi chuan. Roque Severino, meu professor na época, hoje lama budista, nos colocava para meditar. Era maravilhoso.” Tempos depois, Waho assistiu a uma palestra da monja Coen, precursora do zen -budismo no Brasil e se sentiu arrebatada. Tinha encontrado sua mestra. “Descobri que podia conhecer o funcionamento da mente e parar de alimentar o sofrimento para ser mais feliz.” O curioso é que, desde que foi ordenada monja, há oito anos, é ela quem conduz as rezas judaicas nos encontros familiares. “Se nos juntamos para celebrar algo, que esse algo seja realmente celebrado, caso contrário não faz sentido. Isso é parte do ensinamento de Buda”, explica a religiosa, destacando a responsabilidade por nossos atos como um aspecto comum às duas tradições. Em resumo, trata-se daquele velho e infalível parâmetro interno que nos leva a disseminar bons gestos pelo mundo. Atos que, uma vez somados, viram motor da evolução neste planeta.  Outro ponto de convergência entre as duas tradições diz respeito ao perdão. O Yom Kipur (Dia do Perdão no judaísmo) se volta para a refl exão e o arrependimento. “Restringe-se a alimentação, bem como as ações habituais feitas por condicionamento, e pede-se aos judeus que tentem fazer as coisas de maneira mais consciente. Quase que um retiro. Isso pra mim é ensinamento de Buda”, observa a monja. No budismo, ela conta, os adeptos se arrependem a cada 15 dias. Na lua cheia e na lua nova. A cerimônia curta chama-se Ryaku Fusatsu, em que o seguinte verso é recitado três vezes: “Todo carma prejudicial alguma vez cometido por mim, desde tempos imemoriáveis (que lembramos ou não), devido a minha ganância, raiva e ignorância sem limites, nascido de meu corpo, boca e mente (nos arrependemos do que pensamos também), agora de tudo eu me arrependo”.
“Jamais esqueço minhas origens judaicas, porém é no budismo que me sinto acolhida”, confessa Waho. O crucial, ela frisa, citando o dalai-lama, é que a religião de nossa escolha nos torne pessoas melhores. Se para isso for preciso um patchwork espiritual, qual o problema? Somos feitos de diferentes conhecimentos. Por que, com a religião, não poderia ser assim também? Às vezes, o que faz sentido é uma parcela de cada uma das vertentes espirituais existentes. E o indiví duo pode constituir a sua espiritualidade a partir dessa mistura. Nesse sentido, as religiões não são excludentes, mas complementares