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A guru das panelas

A cronista Nina Horta criou o termo “comida de alma”, que nos reconforta e traz para o presente memórias de dar saudade. Conversamos com ela para saber o que há de espiritual no perfume de um ensopado, na reunião à mesa e no cozinhar

A guru das panelas – Ivan Pacheco

O que o ato de amassar o pão, fazer uma comida com carinho e reunir a família ao redor do fogão tem de espiritual? Tudo. Em datas especiais, com comidas especiais, todos sentem o traço de união estreitado pela comida e pelo aconchego dela. Certa vez, viajando pelo interior do Brasil com Carlos Siffert e Olivier Anquier para conversar com as merendeiras e estimulá-las a se orgulhar da comida que preparam, todo dia tínhamos a feitura de um pão lindo. Era um trabalho, um esforço conjunto, cada uma batendo a sua massa e no fi m, sem gastar nada, tínhamos muitos pães perfeitos, um merecido prêmio para o trabalho. E mostrava também que se podia alimentar as crianças com pouco dinheiro, mas muita dedicação. Poderia falar da reverência desses atos singelos mas de profundidade intensa? Ah, muitas vezes um presente de comida te emociona. A mulher paupérrima na casinha de beira de estrada te dando um ovo azul, a única coisa que tinha, enternece. Assim como o cafezinho ralo hospitaleiro, os marrons glacés trazidos em malas dos cafundós só para te agradar…

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A sra. conheceu merendeiras Brasil afora. A religiosidade fez parte dos encontros?

Nossa ideia era fazer com que essas merendeiras se sentissem bonitas, queridas, amadas. Uma delas até disse: “Posso até esquecer o marido em casa, mas o batom não esqueço, não”. Não foi um programa muito espiritualizado. Mas, quando se quer, tudo é religioso. Tratar bem do corpo que Deus nos deu para aproveitar a vida pode ser uma forma de oração. Tem gente que medita praticando esporte. Tem gente que medita enquanto fotografa. A senhora se sente meditando enquanto cozinha algum prato especial? Ai, que vergonha, não. Se eu me distraio, erro. Tenho que prestar uma atenção danada.  Mas um bom pão quente com manteiga é uma espécie de reza muito particular que tenho. Qual é a primeira lembrança que a senhora tem associando comida e datas religiosas? Quando pequena fui convidada – numa cidadezinha do interior onde estava passando as férias – para ser “madrinha de carregar” de uma menininha que nascera lá. E todos comentavam da mesa de doces que teria depois. Minha imaginação foi fabricando uma coisa sem igual. Acabado o batizado fomos nos matar de comer doce. Mas eram latas de goiabada, marmelada, novidade para eles e tristeza total para mim, que fugi para a casa da minha avó.

Casa de vó, fazenda, fogão a lenha… tudo isso pode ser morada de Deus. Fogão a lenha, agora que o doutor Dráuzio Varella teve a coragem de falar que mata (esse tipo de poluição doméstica mata mais do que de malária), me dá medo. Mas o calor em torno do fogão favorece a expansão da alma, da imaginação, da felicidade… dos desejos. Alimento para o corpo e para o espírito: como Nina Horta definiria essa relação? O alimento agrada primeiro o corpo, e um corpo feliz é uma graça de Deus. Todo mundo de barriga cheia e nem precisaríamos de embaixadores e guerreiros e espiões e a malta toda.
Nina Horta nasceu em Belo Horizonte, foi para o Rio e se formou em educação pela Universidade de São Paulo. Escreveu, escreveu, escreveu e se tornou uma das maiores cronistas de comida do Brasil. Foi dona do bufê Ginger, extinto depois de quase 30 anos. Pela escrita com dom de despertar o paladar fisgou também o leitor. De religião, ela sabe pouco, confessa. “Fui criada como católica (não me julgo uma católica verdadeira), mas tenho fé em Santa Theresinha de Lisieux e suas rosas”, responde. Suas crônicas foram reunidas em dois livros (Não É Sopa e O Frango Ensopado da Minha Mãe, ambos da Companhia das Letras), e também podem ser saboreadas no blog que ela tem com seu nome: ninahorta.blogfolha.uol.com.br