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Arquitetura cordial

Edifícios cercados como fortalezas, falta de jardins e de parques, desordem visual. Nas últimas décadas, cidades inóspitas se desenvolveram ao sabor de interesses imobiliários. Mas uma nova consciência começa a ser construída

Arquitetura cordial – Ilustração: Xhanwhan.ai / ShutterStock
O terreno arborizado chama a atenção numa ruazinha da metrópole. Da calçada, os pedestres contemplam as árvores frutíferas que foram preservadas na nesga de terra situada no fi m do quarteirão inclinado. Há passarinhos, borboletas e ar fresco. Enxergam-se também as casas, diferentes entre si e ligadas por uma viela interna que oferece pequenos deleites aos moradores: jardins, pátios com vista para as ruas do bairro, bancos onde vizinhos se reúnem para um dedo de prosa. Apesar dos espaços comunitários, todos os proprietários têm privacidade garantida graças ao posicionamento de janelas e portas. É gostoso passear por ali.
A vila descrita acima não é ficção: criada pela arquiteta Cristina Xavier em 2001, ela fica numa região movimentada da zona oeste de São Paulo e é exemplo de uma arquitetura cordial, pois resgata valores de uma cidade outrora mais humana. Representa um contraponto ao meio urbano abrutalhado de hoje, à arquitetura dos condomínios fechados por altos muros, às grandes torres que não dialogam com a cidade e à ausência de áreas verdes. Exemplos como o da vila, que fogem da padronização imposta pelo mercado, brotam aos poucos na cidade. Embora ainda  sejam raros: “Em geral, o setor imobiliário continua se guiando pelo interesse econômico, que determina o uso máximo dos terrenos e ergue barreiras agressivas entre o privado e o público”, diz Cristina, que fez questão de atuar como incorporadora do projeto para garantir fidelidade na execução.
Outro exemplo em São Paulo segue a mesma trilha. Rodrigo Marcondes Ferraz e seus sócios do FGMF (escritório Forte, Gimenes & Marcondes Ferraz) assinam, também na zona oeste, o Edifício Corujas. “Ele é baixo, aberto, sem grades ou muros isolando-o da rua. Oferece áreas de convivência para os usuários, calçada larga e uma arquibancada para as pessoas usarem na hora do lanche”, conta o profissional. Por ser tão integrado com o entorno, o prédio traz diariamente para as imediações os food trucks, lanchonetes sobre rodas que estacionam em lugares especiais para vender comida boa a um preço acessível. Com tanta gente circulando ali, ganha-se um pouco mais da desejável segurança. Prédios planejados com esses cuidados, embora sejam exceções no cenário, mostram o empenho de alguns arquitetos (e uns poucos empreendedores) em construir uma cidade e uma arquitetura mais amigáveis. “Uma pequena gentileza urbana, como alargar uma calçada, já atrai gente e estimula o convívio”, acredita Rodrigo. Se a essa altura você ainda estiver se perguntando o que, afinal, é cordialidade, devemos deixar claro que não se trata de algo que possa ser medido tecnicamente. Trata-se, isso sim, de um quarteirão gostoso para passear, de um prédio agradável ao olhar, enfim, de alguns lugares que têm o dom de nos tocar a alma e o coração, porque foram pensados para o bem-estar das pessoas. É ali que reside a gentileza.
Por que perdemos a mão
Arranha-céus, caos, trânsito, concreto, concreto e mais concreto. Nem sempre foi assim – basta ver as fotos do cenário urbano 50 anos atrás. O crescimento da população nas últimas décadas e a migração do campo para a cidade incharam as metrópoles, provocando o fenômeno da hiperverticalização, especialmente em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus. Mesmo centros de porte médio vivem essa urbanização descontrolada. Quase tudo é construído com a mesma cara, sem muita atenção à arquitetura e com prazos apertados – desconsiderando a relação com a vizinhança e sua gente. Diante dessa voracidade, a arquitetura, que já nos legou verdadeiras obras de arte, acaba esquecida. Surgem daí problemas sociais, como a gentrificação, palavrão inventado para explicar o processo pelo qual a rápida valorização das áreas centrais acaba expulsando os moradores locais para as periferias.
Essa realidade, ao que tudo indica, permanecerá. Construir é necessário. Precisamos de lugares para morar e trabalhar. O que se discute hoje é o jeito com que isso é feito: “Entregar o planejamento a empreendedores que pensam apenas no lucro e criam novos bairros para atender o que está na moda é uma forma de tornar a cidade pior e menos amigável”, explica Rodrigo. Segundo ele, o arquiteto é essencial para projetar tanto um edifício pequeno quanto grandes obras subordinadas ao poder público, como pontes e viadutos. “A verticalização não é uma vilã”, afirma a engenheira Ana Rocha Melhado, especialista em gestão de projetos sustentáveis e diretora da empresa de consultoria proActive, com sede em São Paulo. A dificuldade, segundo ela, é o desequilíbrio. Faltam áreas verdes, espaços públicos para o lazer e construções que variem no tipo e na altura. Anna Dietzsch, do DBB – Arquitetura da Convivência, explica que é missão do arquiteto equilibrar a balança entre os objetivos claros do mercado imobiliário e os nossos desejos de conviver em espaços mais harmoniosos.
Um bom nível de cordialidade das cidades para com seus usuários pode começar pelas calçadas. Se elas têm degraus e priorizam a entrada de veículos nos edifícios, não são tão amigáveis quanto poderiam ser. Se nas avenidas faltam rebaixamentos para passagens de cadeira de rodas, carrinhos de bebê e idosos, também não. Infelizmente, cenas comuns nas cidades brasileiras, uma vez que o automóvel passou a reger a paisagem urbana já faz algum tempo. “De 50 anos para cá, os espaços começaram a ser pensados para a circulação dos carros, as avenidas se alargaram e ficaram impessoais”, explica Rodrigo Marcondes Ferraz. “Praças, largos, pequenos comércios e casas deram lugar às grandes vias de tráfego. É uma bola de neve: mais coisas interessantes são derrubadas para que se construam novos viadutos e avenidas”, diz ele.  “Uma cidade cordial prioriza o pedestre e mantém microcosmos de convívio ao longo das ruas”, lembra a arquiteta Anna Dietzsch, que tem boas lembranças dos 15 anos em que viveu perto do Lincoln Center, em Manhattan. “Apesar de estar num grande centro, eu conseguia andar a pé para todo lado. Mantinha uma rotina de cidadezinha, ia tomar o café no mesmo lugar todo dia, conhecia a dona da floricultura. Em São Paulo, estamos perdendo essa interação, o carro quebrou a linha da convivência”, observa ela.
Nova consciência
É um alívio, contudo, perceber que boa parte da sociedade está sensibilizada com as questões sobre o futuro urbano. A responsabilidade tem feito cada vez mais pessoas pensarem sobre que cidades deixaremos para as novas gerações. No mundo todo, tenta-se manter o que ainda temos de gentileza à nossa volta. Em Istambul, na Turquia, uma onda de protestos começou em 2013 quando as autoridades resolveram transformar um dos últimos espaços verdes da cidade em shopping, ideia engavetada depois das manifestações. Movimentos populares brigam pela manutenção de parques, pela preservação de construções históricas e pela ocupação de locais públicos – e rapidamente seu clamor se propaga pelas redes sociais. Em Recife, o movimento Ocupe Estelita quer impedir a construção de 12 edifícios de até 40 andares no cais José Estelita, uma área histórica no centro da capital pernambucana. Na capital paulista, acaloradas discussões também se travam em torno do destino do Elevado Presidente Costa e Silva, o Minhocão, inaugurado em 1970 para desafogar o trânsito. Há quem defenda a extinção dessa via que suja a paisagem da cidade – passa a poucos metros das janelas dos apartamentos, invadindo a privacidade dos moradores e encobrindo a arquitetura art nouveau de alguns prédios – e há quem queira apenas transformá -lo numa estrutura mais aprazível, como o High Line de Nova York, um parque suspenso de cerca de 2 quilômetros de extensão, com espaços de caminhada e contemplação, que substituiu uma linha férrea desativada. As questões urbanas tocam especialmente as gerações jovens. São elas que formam os coletivos (movimentos que reúnem pessoas interessadas em defender um direito de qualquer natureza). Há grupos em prol da preservação de construções históricas, rios e praças, entre outros. Abrir mão de posições individualistas para pensar no bem-estar coletivo é o começo do caminho para se chegar à cidade e à arquitetura que todos queremos. E depende de cada um de nós. “Cada cidadão, em sua esfera de competência, pode cuidar de seu território, a começar pela manutenção da calçada em frente de sua casa”, lembra a arquiteta Silvana Cambiaghi, autora do livro Desenho Universal: Métodos e Técnicas para Arquitetos e Urbanistas, da Editora Senac SP. O arquiteto Fernando Brandão, da  YBYPY Arquitetura, concorda e lembra que os cidadãos também devem participar ativamente no planejamento da cidade: “Não cabe só ao arquiteto o processo de transformação do meio ambiente. Todos podem e devem interferir”, diz ele.
A famosa tese da acupuntura urbana, elaborada pelo arquiteto e urbanista curitibano Jaime Lerner, propõe melhorar a saúde da cidade tratando-a ponto a ponto. Fachadas vivas, cobertas por folhagens, ciclovias e mobiliário urbano (pontos de ônibus) atenuam a aridez do concreto. Prédios mais integrados com a cidade, com térreo livre ou café e livraria, convidam as pessoas a visitá-los. Se os grandes empreendimentos encabeçados pelo poder público são polêmicos e demorados, uma boa saída é mudar nossa própria atitude em relação ao meio – como estão a calçada, a praça do bairro, os muros da casa? Essas transformações instantâneas são centelhas que provocam grandes ações e despertam a consciência coletiva: vamos reivindicar direitos, mas também cumprir deveres. Não adianta nada alguém cobrar gentilezas da cidade quando não respeita nem as vagas reservadas nos estacionamentos.

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