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Cuidemos da Amazônia

Em expedição pelo Rio Negro, escritores participantes do projeto Navegar é Preciso 2015 compartilham suas preocupações e deslumbramentos acerca deste tesouro mundial

Reinaldo Moraes, Eliane Brum e Joca Terron – Divulgação

Lá fora, o Rio Negro se esparrama manso.
Parece até um imenso lago. Enquanto isso, dentro do IberoStar Grand Amazon,
barco sede do projeto Navegar é Preciso 2015, promovido pela Livraria da Vila e
pela Auroraeco Viagens, escritores convidados compartilham o universo da
criação literária e contam histórias. Muitas histórias.

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Para esses autores, fabular é preciso.
Sem a força simbólica da escrita, fica difícil digerir o real. Mas é ele que se
apresenta a todo instante. Afinal, estamos na Amazônia. Patrimônio natural
seriamente ameaçado, como evidenciou o relatório “O Futuro Climático da
Amazônia”, assinado por Antonio Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE), divulgado em 2014. O estudioso analisou 200 artigos
internacionais sobre o clima e a Amazônia e concluiu que nos últimos 40 anos
foram devastados 40% desse território – 9 campos de futebol por minuto; 500 por
hora.

“A gente já matou muito a Amazônia.
Não podemos nos esquecer disso”, enfatiza o poeta e cronista gaúcho Fabrício
Carpinejar
, autor de dezenas de livros, entre eles, Para Onde Vai o Amor? (Bertrand Brasil). Ele admite que, uma vez
cercado pela magnitude da região, reverenciamos aquilo que, no dia a dia,
desprezamos. Seu olhar sensível enxerga além das aparências e nos brinda com a
poesia escondida nos fatos. “Vivemos num mundo maniqueísta e aqui tu vê o
quanto as coisas, mesmo tortas, imprevistas, são bonitas. Tu percebe o quanto
uma árvore submersa dez metros tem todo um viço e toda uma responsabilidade de
jogar frutos para os peixes. Então, aquela árvore que aparentemente está sem
servir aos moradores, está servindo aos peixes para servir aos moradores”,
observa o poeta urbano e inquieto, rodeado por água e floresta. Combinação
incomum para quem se afina mais ao asfalto do que à vida selvagem. Mesmo assim,
o mergulho é inevitável. “Para uma pessoa intensa como eu, essa viagem de cinco
dias pelo Rio Negro equivale a um mês, porque não se trata apenas do contato
com a natureza e sim do contato com a natureza humana na natureza, ou seja, o
quanto tu tem que refazer teu gesto com o outro. Aqui não há como fugir do
convívio”, ele comenta. E nos lembra que toda relação, seja com nossos
semelhantes, seja com o meio ambiente, é uma oportunidade de “reciclar a
ternura”.

Não é todo dia que artistas e público
têm a oportunidade de conviver e trocar tantas descobertas. Ainda mais no curso
de um rio amazônico. Ciente desta raridade fadada a durar cinco dias, o
escritor e roteirista paulistano Reinaldo Moraes, autor de Pornopopéia (Objetiva), entre outros títulos, flagrou uma série de
contrastes. “Experiências opostas se equilibraram de maneira quase mágica:
privacidade e convívio, a vivência de adentrar a selva através de um grande rio
amazônico e o conforto urbano do navio, o ócio restaurador e as intensas trocas
intelectuais entre todos os presentes, escritores ou leitores. Foi, em suma, um
grande e inesquecível privilégio”.

O navegador e palestrante paulista Amyr
Klink
, que não se considera um escritor profissional, embora seja um exímio
contador de causos, tanto por meio da fala quanto através da escrita, também se
deslumbrou a valer. Nos momentos de contemplação silenciosa dentro da lancha,
seus olhos, que tantas maravilhas já testemunharam pelo planeta, percorriam admirados
o que, segundo ele, é um dos maiores complexos de navegação do mundo, tendo em
vista a quantidade de embarcações que circulam hoje pelos rios amazônicos. Com
a autoridade de quem conhece e respeita o que a natureza criou, Klink deixou
seus alertas. Para o autor dos Best-sellers Mar
sem Fim e Cem Dias entre Céu e Mar,
ambos pela Cia das Letras, a questão ambiental na região é consequência da
questão social, segundo ele, não abordada com a devida propriedade. “A Amazônia
abriga hoje um complexo contingente de habitantes e de atividades. Quem vive
aqui sofre pressões das fronteiras agrícolas, da ocupação irregular, do crescimento
desordenado das cidades. O debate em torno da preservação precisa levar essa
realidade em consideração”, opina. E faz uma triste revelação. “Não tenho
planos de navegar pelos rios daqui por causa da violência. Há muitos assaltos a
barcos promovidos por gangues”.

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No entender do navegador, a
deficiência educacional na região Norte está diretamente ligada à precariedade
social. E, para sanar essa fissura, ele sugere uma estratégia de guerrilha.
“Precisamos atacar com força a velha problemática da educação. Encontrar formas
efetivas de qualificar os professores, melhorar o processo de aprendizagem,
estabelecer um programa de ensino que alcance todas as comunidades etc”.

Testemunha
ocular

Por essas e outras, a jornalista e
escritora gaúcha Eliane Brum, autora de A
Vida que Ninguém Vê (Arquipélago) e Meus
Desacontecimentos (Leya), entre outros títulos, vem denunciando desde 1997
as mazelas desse gigante descaradamente violado. De lá pra cá, ela já visitou a
região cerca de 15 vezes. Dar voz aos seres “invisíveis”, que vivem à margem da
sociedade, seja onde for, tem sido sua grande motivação. “Fui descobrindo que
não há uma Amazônia, mas várias. Cada uma muito diversa. Uma riqueza de fauna,
flora, línguas e jeitos de ser e estar no mundo. No entanto, índios,
ribeirinhos e quilombolas não são considerados gente”, denuncia. Segundo a
jornalista, pesa sobre tais populações o ranço ideológico disseminado pelos
governos militares, que viam esse ecossistema como um corpo a ser explorado.
“Sempre com a ideia de um vazio que precisava ser colonizado”, sublinha.

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Esse mesmo modo de pensar é, na
perspectiva de Eliane, responsável por grandes obras de altíssimo impacto
humano e ambiental, como a hidrelétrica de Belo Monte, que está sendo construída,
à revelia dos ambientalistas, na bacia do Rio Xingu, no norte do Pará. “Precisamos
olhar para a Amazônia com um outro olhar, porque são os povos indígenas, ribeirinhos
e quilombolas que vão nos ensinar a viver de forma integrada. Afinal, esse patrimônio
é nosso para quê?”, questiona.

Para quem ainda acha que essa
problemática não lhe diz respeito, um lembrete crucial: “A Amazônia tem um
papel estratégico na regulação do clima do planeta e, sobretudo, do Brasil”,
destaca Eliane. Para se ter ideia, uma árvore amazônica de grande porte libera por
dia mil litros de água na atmosfera por meio da transpiração; a floresta
inteira, 20 bilhões de toneladas de água por dia, segundo dados do relatório “O
Futuro Climático da Amazônia”. São esses “rios aéreos” que chegam ao sudeste e
ao sul do país, trazendo chuvas. Tão necessárias.

E pensar que nossos filhos e netos
correm o risco de ver aquela imensidão verde se converter em savana ou mesmo
num deserto. A não ser que algo seja feito para impedir esse lamentável
desfecho. “Antonio Nobre defende que precisamos não só parar de desmatar, como
também reflorestar as áreas devastadas”, repassa a jornalista. E, para isso,
todos os setores da sociedade precisam urgentemente selar uma aliança e
interferir no debate. “Disso depende a vida de todos nós”, ela frisa.

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Eliane regressará aos confins da
Amazônia quantas vezes sentir o chamado dessa terra. Mas não o fará por
obrigação profissional. É o amor à floresta e ao seu povo que a pegará pelas
mãos. “Este é o lugar onde eu mais gosto de estar no mundo. Me sinto muito
conectada com tudo ao redor. Para mim, a Amazônia é o centro do Brasil. Nós,
brasileiros, é que ainda não percebemos isso”, dispara.

A falta de interesse ou mesmo a
ignorância acerca desse colosso negligenciado preocupa o escritor e designer gráfico matogrossensse Joca
Terron
, autor de A Tristeza
Extraordinária do Leopardo-Das-Neves (Cia das Letras), entre outros
títulos. “O mais deslumbrante é saber que a Amazônia está lá, silenciosamente
cumprindo sua parte como o motor do elevador que a gente pega e do qual nada
sabemos. A preocupação essencial é que deixemos aquela vastidão ser destruída
sem escrúpulos. É algo grandioso demais para ficar sob a responsabilidade
humana”, desabafa ele, que, no decorrer da viagem, deixou a imaginação fluir
para longe.
“Esperava encontrar aquele clima misterioso dos navios, e
encontrei. O mistério ficou ainda maior por causa da temporada de cheia do Rio
Negro. Parecia que estávamos navegando algum rio do Congo em ‘O Coração das Trevas’, de Joseph Conrad
[escritor ucraniano, 1857-1924]”, compara.

Única cantora do grupo, a paulista
Fabiana Cozza, que lançou recentemente seu quinto CD Partir, contagiou a todos com seu profundo respeito pela natureza –
temática que inspirou o repertório do show apresentado no Grand Amazon. Nos
passeios de lancha, ao longo da trilha pela mata ou mesmo durante o banho de
rio, Fabiana cerrava os olhos por alguns instantes e, com grande devoção,
entoava preces ou cantarolava canções. Afinal, estava adentrando um espaço,
para ela, sagrado. “O candomblé, minha religião, me trouxe o entendimento das
forças da natureza e da vida inspirada nessas forças”, ela explica. E nos
lembra do óbvio, tantas vezes negado. Nossa estatura humana diante da magnitude
ao redor. “Essa imensidão de rio tem uma força e uma grandeza muito maior do
que a nossa existência. É reconfortante pensar assim porque a gente
redimensiona o nosso tamanho no mundo”.

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A cantora aproveitou a jornada para
refletir sobre a agitação de quem, como ela, vive em cidades grandes.  “O excesso de ruído nos acelera e, com isso,
gera ansiedade. Adoecemos. Eu mesma já fui muito acelerada. Perdi cabelos por
causa do estresse, ganhei peso. É uma doença do nosso tempo. E, depois disso
tudo, mudei muito”, confessa. Prestes a desembarcar no porto de Manaus, Fabiana
faz um balanço dos dias e noites a bordo: “Volto mais energizada, calma e
consciente. A Amazônia não é mais uma floresta com dois pulmões. Um deles já
está bastante deficiente. Precisamos estar muito atentos”.

Assim como Fabiana, os participantes
do evento navegaram por águas fartas de beleza e poesia. Aqui e ali, um mesmo comentário
alimentava as conversas: Quanta inspiração! A exemplo da maioria dos
passageiros, a fisioterapeuta paulista Marisa Weingrill pode vivenciar o
casamento de duas paixões. “Há muito tempo vinha ‘namorando’ essa proposta de
unir literatura e viagem. Antes de embarcar, li pelo menos um livro de cada
autor convidado. Com isso, aproveitei demais os debates”, festeja. Informada
sobre o projeto por BONS FLUIDOS, a médica carioca Flávia Navi, por sua vez,
celebrou em plena Amazônia uma nova fase de vida. “Foi a primeira vez em muitos
anos que viajei sozinha. Encarei essa jornada como uma oportunidade de
encontros: com novos amigos, ídolos literários e comigo mesma”, revela e
acrescenta: “Foi emocionante ouvir o relato dos autores e descobrir que suas
inquietações e dificuldades cotidianas foram fundamentais para que pudessem se
tornar pessoas mais autênticas, sensíveis e destemidas diante da vida”. Já o
psicanalista Caio Garrido, de Ribeirão Preto, enaltece a mistura de sensações.
Todas elas únicas. “O silêncio da noite, o mergulho no rio, a história dos
antepassados que por ali passaram, além do encontro com os colegas viajantes,
potencializam a experiência de tal forma que é impossível sair ileso de uma
viagem como essa”.