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Deixe a noite entrar

Em uma analogia com as dores da alma, ela é tão parte do ciclo da vida quanto a alegria e o Sol. Apenas tem um papel diferente

Deixe a noite entrar – Getty Images
Você gostaria que fosse possível não sentir dor? Gostaria de ser absolutamente imune a estímulos que machucam o corpo, a mente ou o espírito? Antes de responder, é preciso saber de uma informação importante. Existe um distúrbio chamado síndrome de Riley-Day, que provoca, de fato, insensibilidade a qualquer estímulo doloroso. Como não sabem o quão ruim é ter um dedo machucado, uma perna quebrada, as pessoas que sofrem dessa síndrome não sentem necessidade de se proteger e acabam se ferindo com frequência. E gravidade. Sem a noção do perigo, tendem a proteger pouco a si mesmas e a morrer jovens. A ausência de dor lhes impede a sobrevivência. Entre as emoções, algo semelhante acontece. Preferimos não sentir medo, sentimento costumeiramente visto como algo ruim. E esquecemos que ele também é fundamental à autopreservação. Necessidades vitais são assim. Não há lado melhor ou pior. São complementares. Como o dia e a noite.
Podemos entender que nem tudo é agradável à primeira vista. Podemos afirmar que é melhor ser alegre do que ser triste. Podemos até preferir o dia à noite. Mas não podemos negar as qualidades que ela tem. “Inicialmente, antes de dominar a produção do fogo, sentíamos medo das trevas, de seus sons e da quase impossibilidade de vermos a distância. Quem sabe por isso elas eram associadas a um período que deveria ser vencido”, reflete o geógrafo Paulo Varella, professor de astronomia do Planetário de São Paulo e acostumado às leituras da natureza. “Mas, hoje, nas noites límpidas, o céu estrelado, como contraponto, inunda-nos com a sensação de tranquilidade, de beleza”, acrescenta. Sabemos que a escuridão é prenhe de significados, uma outra forma de ver, que continua a despertar a nossa curiosidade, a meditação, o conhecimento. E passa a ser esperada, e não mais temida. Apenas à noite, por exemplo, podemos ver a Lua e as estrelas. Arquetipicamente, essas pequenas luzes são como faróis iluminando suavemente conteúdos impossíveis de ver de dia. “Nossa vida, assim como a escuridão do Universo, é, em sua maior parte, misteriosa. A luz da Lua, reflexiva (pois é um reflexo do Sol), não acaba com a noite, permite que ela exista, que se possa andar nela, percorrer os mistérios”, diz o psicoterapeuta Camilo Ghorayeb, professor da Associação Palas Athena, em São Paulo. “A luz do Sol, ao contrário, ilumina tanto que ofusca nossa visão de profundidade,
servindo apenas à ideia de que o mundo reluzente é tudo que existe e importa.” No escurecer, enxergamos outros contornos. A melancolia, a dor humana estão lá. Sussurrando que ser triste dói. Outra sensibilidade assume o comando. Acolhe a nossa própria solidão e abre espaço para aconchegar a do outro também. Pode ser que a noite dissolva o homem e que o dia recomponha, como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade no livro O Sentimendo do Mundo. E abraçar esse ciclo engrandece. Pois “o ser humano é”, como descreveu outro poeta, o mestre sufi Rumi, “uma casa de hóspedes”. Toda manhã chega alguém. Chegam alegria, tristeza, maldade, falta de sentido, raiva. E todos merecem ser tratados honradamente, porque podem estar arrumando o espaço para a sua evolução espiritual. “Agradeça a quem vem, porque cada um foi enviado como um guardião do além.” Sejamos, pois, bondosos anfitriões de nós mesmos.

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