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Juntos por um propósito maior

Eles não enxergam distância, limites ou perigos quando precisam salvar alguém. Ainda assim, têm a sensação de que mais recebem do que doam. Saiba quem são os trabalhadores das organizações humanitárias

Juntos por um propósito maior – Arthimedes / Shutterstock
Se alguém perguntasse a você quais são os seus sonhos para o mundo, é muito provável que sua resposta coincidisse com os versos de Imagine. Que não existisse nada pelo que matar ou morrer, nenhuma religião, necessidade de ganância ou fome. Um mundo só, com todas as pessoas vivendo em paz. Quando compôs a canção, John
Lennon se confessou um sonhador e disse acreditar que não era o único. Tinha razão. Sempre que vemos uma criança em situação de vulnerabilidade, desnutrida, um adulto sendo agredido ou injustiçado ou famílias perdendo tudo o que têm, desejamos nos mudar para o planeta retratado na música. E, mesmo que a maioria de nós não faça nada além de sonhar com esse lugar perfeito, muitas pessoas não medem esforços para levar socorro e esperança a vítimas de guerras, desastres naturais, doenças graves e pobreza extrema. Psicóloga e pesquisadora da Universidade de São Paulo, Cristiane Izumi Nakagawa, explica que o que as leva a enfrentar riscos e abandonar o conforto de ter um endereço fixo é a capacidade que elas têm de se colocar no lugar de quem passa por uma tragédia. “Depois das duas grandes guerras, foi instaurada uma sociedade que se encontra anestesiada pela violência. A frieza veio como uma condição para sobreviver nessa comunidade. Essa indiferença, que impede que a gente enxergue quem sofre, só é quebrada através da identificação com outro ser humano.”
Os motivos que levam a esse olhar solidário podem variar. Mas todos, sejam voluntários ou funcionários de organizações humanitárias, ao engajarem-se na doação de tempo e proteção ao outro, atribuem um novo significado à palavra amor.
Trabalhando pela paz
Foi na faculdade de relações internacionais que a brasiliense Graziella Leite Piccoli teve a certeza de que trabalhar com conflitos armados e refugiados era o que ela queria fazer pelo resto da vida. Depois de anos estudando a fundo direito internacional humanitário – e como promover o entendimento entre os povos –, foi apresentada pelo professor que mais a inspirou durante a graduação como candidata para uma missão do Comitê Internacional da Cruz Vermelha na Guatemala. Sair do Brasil não era um obstáculo, já que Graziella tinha morado fora do país anos atrás. Em 1995, assumiu o cargo de assessora na área de implementação de direito internacional
humanitário, numa região que incluía a América Central, o México e o Caribe. Correu o mundo pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Passou pela Croácia, Peru, Uzbequistão e países vizinhos, Uganda, Afeganistão, Jordânia, Iraque e Filipinas. Atualmente ocupa o posto de chefe de delegação regional adjunta em Bangcoc,
na Tailândia, sendo responsável também pelo Vietnã, Camboja e Laos. Seu trabalho consiste em promover projetos junto aos meios de comunicação desses países e
supervisionar outros programas da Cruz Vermelha em parceria com governos, polícias, forças armadas e universidades.
A vida pessoal de Graziella foi construída durante esses 20 anos de carreira. Entre uma missão e outra, conheceu um médico italiano no Uzbequistão, casou-se com
ele em Kabul, no Afeganistão, e teve lhas gêmeas nas Filipinas. A família precisa adaptar a rotina sempre que muda de país, mas isso está longe de ser um problema. Desa o para ela é conviver com a insegurança que existe em países como o Afeganistão e o Iraque. Já precisou deixar o escritório às pressas porque havia um carro-bomba estacionado na residência ao lado. “Os conflitos armados dos últimos dez anos mudaram de cara. Está mais difícil dialogar com as partes em conflito. A começar porque é complicado identificar quem está no comando. E as condições de segurança para os trabalhadores humanitários são mais escassas. A aceitação da nossa presença é, porém, muito importante para que possamos chegar às pessoas que precisam da nossa ajuda”, diz.
Em sua jornada, a profissional conheceu pessoas especiais e compartilhou das histórias e dores delas. Um momento marcante aconteceu em dezembro de 1998, quando era chefe do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Beli Manastir, leste da Croácia. Ela acompanhava os casos de pessoas presas durante o conflito armado nos Bálcãs (a guerra civil na Iugoslávia) e queria levar para casa uma senhora croata que estava terminando de cumprir a pena numa prisão de mulheres. A certa altura, no entanto, recebeu um telefonema do presídio informando que a detenta tinha cometido uma falta e demoraria mais um mês para ser liberta. Como sua missão estava no m, pediu autorização para ficar lá mais um tempo. No dia da libertação, Graziella, o motorista e a intérprete esperaram a senhora do lado de fora do presídio. A mulher se despediu do guarda, caminhou sobre a neve perguntando repetidamente: “Será que isso está acontecendo de verdade?”, cruzou o portão e abraçou os três. No caminho de casa, emocionou-se vendo a destruição que a guerra tinha causado. Encontrou a mãe acamada e recebeu um abraço singelo das filhas adolescentes que não via havia cerca de cinco anos. A cena não saía da cabeça de Graziella. “Pensei que seria um momento de grande felicidade e senti tudo muito sóbrio. Talvez por
todos os desa os que teriam ainda pela frente. E porque as consequências daquela guerra eram ainda muito palpáveis”, conta. Com essas passagens, aprendeu a dar valor a cada minuto. Desenvolveu a habilidade de lidar com as próprias emoções e com o desespero de quem vive uma tragédia. Sabe que nem sempre é possível corresponder às expectativas das pessoas, devolver a vida que tinham antes. Mas, quando vê tanta gente ao seu lado se esforçando para fazer do mundo um lugar melhor, renova sua crença na humanidade. “Quero transmitir para as minhas lhas essa conscientização de que há muito ainda por fazer, mantendo a solidariedade para com o próximo como cavalo de batalha.”
Beleza no meio do caos
Vanessa Kamila Moratti é obstinada desde que se entende por gente. Aos 15 anos, viu uma propaganda da ONG Médicos sem Fronteiras. Correu para a internet, imprimiu os requisitos para trabalhar lá e os colou na porta do seu quarto. “Um dia quero conseguir tudo isso”, disse para si mesma. Decidiu fazer faculdade de psicologia, conseguiu uma bolsa para estudar inglês na Inglaterra, fez trabalho voluntário com crianças no Egito na época da Primavera Árabe e, enfim, alcançou sua meta. Sofreu ao se despedir da família em Londrina, mas nunca colocou sua escolha em dúvida. Em 2012, desembarcou em Nablus, na Palestina, para sua primeira missão. Em apenas uma mala, levava o que costuma carregar em todas as suas viagens a trabalho: o MP3, um bom livro para se distrair, um filme,algumas mudas de roupa e poucos pares de sapatos. Sua rotina era participar de uma reunião de segurança pela manhã, receber os encaminhamentos dos pacientes, que antes tinham
conversado com uma assistente social, e ir até as casas deles, já que os soldados não permitiam que eles passassem livremente de uma região para outra. Kamila, como prefere ser chamada, atendia crianças que tinham visto a casa ser invadida no meio da madrugada e os pais serem agredidos. Muitas tinham saído da escola, perdido a casa, os brinquedos e, em alguns casos, até os pais. A psicóloga as estimulava a expressar seus sentimentos e também tratava dos pais para que eles tivessem condições de oferecer segurança emocional aos lhos. Durante os dez meses de missão, ainda atendeu soldados torturados. Um deles, capturado em Israel, ficou dez anos preso. Quando voltou para casa, a esposa era a chefe da família e o lho de 12 anos o chamava de “homem do espelho”, porque só o via pelo espelho do presídio. Não foi fácil
reassumir a própria vida.
Depois disso, Kamila foi duas vezes para o Sudão do Sul. Ficou numa tribo sem energia elétrica e água encanada. Tanto o hospital quanto o alojamento da equipe foram
montados em tendas. Além do conflito étnico, que havia exterminado boa parte dos homens, e da violência sexual contra as mulheres, os sobreviventes sofriam de fome e de uma epidemia de cólera. As mulheres tinham muitos lhos porque sabiam que poucos iriam sobreviver, mas não conseguiam cuidar deles porque estavam cansadas, deprimidas e se sentiam culpadas por terem sido abusadas sexualmente. A psicóloga as ajudava a lidar com suas perdas colocando todas juntas, para que umas escutassem as outras e percebessem que sentiam a mesma dor. Certa vez, Kamila tirou fotos das crianças, pendurou em árvores e perguntou o que elas estavam sentindo em cada imagem. Também pedia que elas expressassem suas emoções em desenhos feitos nas árvores com carvão, argila e barro, já que um simples lápis as assustava. Era assim que rompiam o silêncio. Aos poucos, mães e lhos foram melhorando. As mulheres voltaram a cantar suas músicas e contar as histórias que ouviam dos pais desde a infância. Conseguiam até dormir melhor. “Ir para esses lugares é encontrar o belo onde ele parece não existir – no sofrimento. São pessoas que passam por tanta dor, e ainda assim estão ali, batalhando. Não se veem como vítimas.”
O maior desa o aconteceu na Serra Leoa. Ela ficou em dúvida se deveria correr o risco de ser contaminada pelo ebola, pois não sabia se seu socorro às vítimas seria eficaz. “Cheguei à conclusão de que valia a pena porque muitos pacientes tinham ansiedade, medo da morte, sentimento de culpa por serem os únicos sobreviventes de uma família, por terem contaminado alguém que amavam ou vergonha de terem sido contaminados. Era importante ajudá-los a elaborar essas perdas e não desistirem
de lutar”, lembra. Vestida com a roupa de proteção contra o vírus, ligava a televisão para os pacientes, levava revistas, lia cartas e fazia brincadeiras para combater a solidão deles. Mas o que mais fazia mesmo era ouvir. Eles queriam falar sobre questões mal resolvidas, pedir perdão, dizer algo importante ou ter alguém para segurar a mão antes de morrer. Além de amparar os doentes terminais, Kamila ajudava os sobreviventes a serem reinseridos na sociedade. Ela os abraçava para provar que
eles estavam curados. Ficou enternecida com a história de uma mulher que tinha perdido toda a família. “Ela encontrou um menino de cerca de 3 anos que também
havia cado sozinho e formou com ele uma nova família”, conta. Antes de partir para a Ucrânia, sua missão atual, ainda trabalhou num campo de refugiados sírios no Líbano. “O que eu sei hoje não vem só da psicologia. A gente vê tanto sofrimento que não se importa mais com coisas fúteis. Tudo o que passei me fez acreditar que eu posso fazer a diferença – mínima que seja –, e isso me fez ser mais positiva em relação à vida. Por mais que ela possa ser difícil, é preciosa.”
Brasil: destino dos sonhos
Quando se lançam ao mar Mediterrâneo, os sírios veem os países ricos da Europa como última esperança para continuar vivendo. Para muitos deles, contudo, o porto seguro desejado é o Brasil, país que mais recebe pedidos de refúgio na América Latina. Hoje, há 2077 sírios aqui, sem contar os que aguardam resposta para suas solicitações de abrigo. Apesar do apoio que recebem da comunidade árabe, eles se deparam com uma grande provação quando chegam: conseguir um emprego. Essa é uma das missões do Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus), localizado na região central da capital paulista.
Andrey Brito, um jovem formado em relações internacionais, é coordenador do programa Trabalho e Renda do instituto. Entre suas atribuições estão as tarefas de sensibilizar as empresas para a causa dos refugiados, captar as vagas, visitar os locais em que eles moram, como bairros da periferia e casas de acolhida, e divulgar as vagas para eles. Dos 857 cadastrados no sistema da instituição, 171 são sírios, mas também há africanos, colombianos e haitianos (embora os haitianos não sejam refugiados, porque não são perseguidos por motivos políticos, raciais, religiosos ou de nacionalidade, nem pertencem a um determinado grupo social, vivem em situação de vulnerabilidade em seu país).
Como é difícil comprovar a qualificação profissional, muitos refugiados com nível superior acabam trabalhando como garçons, ajudantes de cozinha, cuidadores de idosos, empregados domésticos e vigilantes. Andrey só oferece vagas com carteira assinada e tira todas as dúvidas para que eles se saiam bem na entrevista. Ainda assim não é um processo fácil. “A gente tenta convencer as empresas a aceitarem os refugiados mesmo com um português bem básico, até porque eles podem desenvolver o idioma no ambiente de trabalho. Também tentamos quebrar o preconceito racial e religioso, que muitas vezes atrapalha a contratação”, diz. Andrey, que é voluntário como todos no instituto, se diz recompensado quando vê a interação entre brasileiros e refugiados. “É muito estimulante ver as pessoas comprometidas com esse propósito de ajudar outros seres humanos que estão em uma situação que a gente também poderia estar passando.” Se aprender o português é o primeiro
passo para conquistar a independência financeira no país, a vida aqui tem que começar na sala de aula. Na Casa do Migrante, que faz parte da organização católica Missão Paz, a maioria dos alunos tem entre 25 e 35 anos e é formada por homens. Renné Alegria, um peruano que chegou ao Brasil há 22 anos, é professor voluntário da turma de aproximadamente 30 alunos (haitianos, congoleses, nigerianos, togueses e africanos de outros países). Além do português, fala francês, espanhol, inglês, árabe, alemão e mandarim, e coleciona diplomas como o de letras, linguística e biologia. Todos os alunos recebem um lápis e um bloco de anotações. Para motivá-los, o professor entrega uma folha com uma música conhecida por eles, como as populares Ai se eu te pego ou Chora, me liga. À medida que eles copiam a letra da canção,
as dúvidas começam a surgir. Então o professor estampa a lousa branca com o vocabulário nas diferentes línguas. “Sempre gostei de ensinar. E, como estrangeiro, sei que quando a gente vai para outro país é difícil assimilar a cultura”, avalia.
Cada um dos 110 moradores da Casa do Migrante tem direito a uma cama, espaço para colocar os pertences, refeições, atendimento religioso e de primeiros socorros. Também podem lavar a roupa, assistir TV e comemorar datas especiais. Sabem que carão lá por no máximo três meses.
Apesar de nem todos estarem dispostos a aprender a língua portuguesa, cerca de 500 alunos já passaram pela sala de aula de Renné em um ano e meio. E alguns querem continuar estudando mesmo depois de sair da casa. É o caso de um nigeriano de 20 anos que quando chegou ao Brasil passou dois meses no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, SP. Sem ter dinheiro ou emprego, ficou totalmente perdido. Foi acolhido na Casa do Migrante, onde permaneceu por dois meses, frequentou as aulas e recebeu ajuda para conseguir uma colocação profissional. Hoje, tem salário garantido e mora no local de trabalho. Depois do horário de expediente, ainda vai para a sala de aula do professor Renné. Uma forma de continuar evoluindo e demonstrar gratidão. “Quando vejo os alunos contentes, agradecendo, percebo que estou colaborando com o aprendizado. Vários me escrevem mesmo quando voltam para os seus países.” Essa é a contribuição do professor peruano para quem almeja um futuro no Brasil. Uma mão sempre estendida para levantar quem, momentaneamente, está vulnerável

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