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Orgulho compartilhado com quem passa na rua

Sabe aquelas casinhas tradicionais paulistanas que ainda resistem em meio ao avanço da verticalização urbana? O artista João Galera começou a eternizá-las em desenhos de nanquim, seu instrumento de poética resistência

Quando uma casinha, por mais singela que seja, desaparece da paisagem urbana, muito se perde com ela. A lembrança dos quintais, o chão de cacos vermelhos, as grades
trabalhadas, a geometria de arcos e colunas, o pequeno jardim frontal exibindo sua graça aos passantes, bem como a conversa de fim de tarde na calçada. E, quando uma leira de sobrados típicos some no buraco negro da especulação imobiliária, é hora de recuar e questionar: que tipo de progresso queremos para as nossas cidades?
O antropólogo e artista plástico paranaense João Galera, radicado na cidade de São Paulo desde 2011, lançou essa reflexão por meio do projeto Antes Que Acabe. Tocado pelo banimento dessas construções – datadas, aproximadamente, de 1920 a 1960 –, em favor da verticalização da cidade de São Paulo, ele passou um ano inteiro engajado na missão de observar, fotografar e posteriormente desenhar fachadas de moradas localizadas em Pinheiros, Vila Madalena, Vila Mariana e Bela Vista, cada qual com sua cultura e estilo arquitetônico próprios. “Por se tratar de um trabalho iconográfico que captura a percepção do passante, decidi não me aprofundar em dados estilísticos ligados às edificações para não viciar o meu olhar nem priorizar alguma casa por seu valor histórico ou arquitetônico”, explica Galera. Nesse caso, sua arte vira
instrumento de resistência e preservação da memória, entendida como um legado coletivo. “Temos em mente que a memória está nas grandes construções, nos monumentos e museus. Esquecemos que ela também está no nosso cotidiano; nas casas, nas ruas, nas construções e nas pessoas ‘anônimas’. No momento em que percebemos isso, passamos a valorizar mais esse patrimônio”, sustenta o artista, que dedicou em média sete horas para cada composição.
Os registros deram origem a uma exposição Antes Que Acabe, que ficou em cartaz no Museu da Casa Brasileira nos meses de junho e julho de 2016, e também ao livro homônimo, publicado em parceria com a Mandacaru Design (R$ 70). A obra reúne 58 desenhos em nanquim fartos em detalhes que agram nuances da vida privada, além de indícios pessoais impressos por cada morador. Um vaso ao lado da porta, uma janela entreaberta, ores no beiral ou trepadeiras esparramadas nos lembram
que as cidades guardam a história de pessoas, com seus hábitos, gostos, sonhos e afetos. “São marcas que se extinguem no anonimato dos grandes conjuntos edificados pela especulação imobiliária”, denuncia Galera, que chama a atenção para o discurso de algumas empreiteiras. “Elas vendem os apartamentos como se os moradores fossem viver em um bairro bucólico de lindas casinhas, que, no entanto, são demolidas por essas mesmas empreiteiras. Contradições da cidade que tenta apagar sua história.”
O guardião da memória urbana faz um trabalho de formiguinha. Sabe que jamais seria capaz de reverter o que está consolidado pelo viés econômico. No entanto, pode,
como artista, sensibilizar o olhar dos passantes para uma paisagem em vias de extinção. “Muitas pessoas vieram me falar que agora andam pela cidade e reparam nas casinhas existentes. Acho que essa percepção pode ajudar na valorização dessas moradas, apesar da agressividade da especulação imobiliária”, pondera o artista.
Letícia Sabino, administradora e urbanista, idealizadora do projeto SampaPé, que estimula a exploração corpo a corpo da metrópole, lembra que as cidades normalmente criam processos de preservação através da classificação de edifícios como patrimônio histórico/cultural/arquitetônico, o que culmina com o tombamento de alguns
imóveis. Porém, a grande discussão é: como e quem define o que é patrimônio para uma cidade? “Esse posicionamento tem que ser tomado de forma coletiva e mais participativa. Os órgãos responsáveis deveriam mediar esses processos envolvendo a população e facilitando o acesso à informação a fim de estabelecer elementos urbanos que devam ser preservados para manter a história, a orientação e os interesses de uma cidade”, ela defende.
É aí que as casinhas de nanquim de Galera extrapolam o âmbito artístico. “Iniciativas como essa garantem acesso a informações e novas perspectivas que podem iniciar processos de preservação e tombamento de imóveis pela população ou ao menos conservar memórias da cidade de forma consciente e responsável”, sublinha Letícia, convicta de que cidades autênticas e inclusivas oferecem maior qualidade de vida a seus habitantes. “Para isso é preciso que sejam capazes de manter sua história e incluir as pessoas no processo de desenvolvimento”, reforça.
Até o momento, a maioria das casinhas imortalizadas por Galera continua de pé. Não sabemos por quanto tempo resistirão. Infelizmente, uma em especial, localizada em Pinheiros, ficou de fora do projeto. “Quando fui fotografá-la para posteriormente desenhá-la, já tinha sido demolida. Desenhei então o tapume que encontrei e inseri a composição no final do livro, com o título Essa Não Deu Tempo.”

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